Um estilo de animação pouco usual, elementos de realismo fantástico e expressionismo, além de Mamoru Oshii na produção. Mesmo com todas estas características, Fuujin Monogatari é um anime desconhecido. Contudo, ouso afirmar que este anime entra fácil no meu rol de melhores slice-of-life já produzidos. Neste texto vou tentar explicar os motivos desta pérola escondida do estúdio Production I.G ser um anime completamente único e imperdível.
Fuujin Monogatari, um anime de 13 episódios, chegou ao ar na temporada de outono de 2004, tendo seus episódios exibidos de 11 de setembro de 2004 até 26 de fevereiro de 2005. Trata-se de um anime original, ou seja, não foi baseado em nenhum mangá ou livro. Como dito acima, o estúdio responsável pela sua produção foi o Production I.G, famosíssimo por animes como Shingeki no Kyojin, Psycho Pass, Haikyuu!! e Kuroko no Basket.
É digno de nota o fato de ter o grande Mamoru Oshii na produção (Ghost in the Shell, Tenshi no Tamago). Contudo, não resta claro qual foi a real atuação e se ouve alguma contribuição criativa dele nesta série. Nos bancos de dados ele é creditado como produtor e supervisor. O diretor de Fuujin Monogatari foi Junji Nishimura. O interessante é que ele muitas vezes trabalhou com Oshii, como no caso de Urusei Yatsura, onde foi diretor-assistente e também trabalhará em Vlad Love, o próximo anime de Oshii.
O anime chama logo a atenção pelo estilo de animação diferenciado e arte única, a qual prioriza a fluidez ao invés do realismo, o que lembra bastante o estilo de Maasaki Yuasa (Devilman Crybaby, Ping Pong the Animation). Também possui algo de abstrato ou cubista, visto que ângulos são mais presentes que curvas. Os otakus mais puritanos podem vir torcer o nariz, mas Fuujin Monogatari é um anime lindíssimo, que faz um uso espetacular dos elementos do cenário, sem medo de ousar. O vento, o Sol, os cenários, tudo possui uma poética própria, mais fantástica do que precisa, com fortes elementos expressionistas.
Pois bem, falando sobre do que se trata a obra, Fuujin Monogatari é um anime que retrata o cotidiano (slice of life) de um grupo de estudantes, com toques de fantasia, que no presente caso está mais para um realismo fantástico, onde os elementos sobrenaturais não são o foco da trama e nem sobrepõe o cotidiano das personagens. Quanto ao nome do anime, Fuujin Monogatari, este pode ser traduzido como “Contos do deus do vento”. Em inglês o anime recebeu o título de Windy Tales.
Quanto ao enredo, adaptando a sinopse oficial, seguimos um pouco da vida de Nao, uma das únicas duas participantes do clube de “câmera digital”, que gosta de ficar tirando unicamente fotos do céu e das nuvens. Em certa ocasião a menina encontra um gato no terraço do colégio, que é justamente o seu local preferido, combinando com sua personalidade reflexiva. Estranhamente, o gato consegue flutuar, como se manipulasse o vento ao seu redor. A garota tenta se esgueirar no parapeito em vista do achado e acaba caindo, mas antes de se esborrachar no chão, ela é segurada pelo vento e desse suavemente, isso por intermédio do professor de matemática Taiki, que não por acaso é um manipulador do vento.
De outro lado, outras personagens importantes são Miki, a outra participante do clube, a qual acompanha Nao em suas aventuras. Jun, o interessante romântico de Miki, que ajuda as meninas em diversos momentos. Ryoko, uma garota solitária que alimenta os gatos “voadores” todos os dias e que nutre uma paixonite estudantil pelo professor Taiki.
Nao, Miki e Jun resolvem procurar o gato voador, acabando descobrindo que não é somente um gato, mas há uma infinidade de gatos que ficam flutuando ao sabor do vendo e utilizam a escola para descansarem. Descobrem também que o professor Taiki veio de uma vila afastada que é o lar dos manipuladores do vento, e que todo ano ocorre um festival que visa garantir a segurança do Japão contra as forças da natureza. Sem pensar duas vezes, durante as férias de verão, os jovens viajam sozinhos atá a localidade para aprenderem mais sobre o vento.
No respectivo vilarejo eles conhecem Yukio, a jovem viúva do irmão falecido de Taiki. Há entre os dois uma tensão amorosa mal definida. O próprio fato de Taiki abandonar o vilarejo para dar aulas em outro lugar corresponde ao seu desejo de afastamento destes assuntos mal resolvidos. Voltando aos três jovens, no vilarejo eles aprendem o básico da manipulação do vento e presenciam o importante ritual. A manipulação do vento consiste em uma manifestação que está ligada aos sentimentos, sendo mais interior que exterior.
Nota-se que manipular os ventos não consiste em voar, mas simplesmente redirecionar o fluxo do vente e até criar redemoinhos dependendo da intensidade do praticante. Os gatos, por exemplo, não voam, apenas se deixam levar pelo vento. Nao, Miki e Jun retornam à cidade grande e continuam seu cotidiano escolar, só que agora com o diferencial de partilharem um segredo sobre o domínio dos ventos.
Até esse ponto Fuujin Monogatari é capaz de enganar. Ao visitarem o vilarejo e conhecerem os rituais de manipulação do vento, bem como a tensa relação entre Taiki e Yukio, parece que o anime seguirá desenvolvendo estes mistérios em uma narrativa linear. Entretanto, não é isto que acontece, a obra torna-se completamente episódica, sendo que nenhum episódio possui ligação com o seguinte. Claro que há uma continuidade temporal e eventos que ocorreram em episódios anteriores vez ou outra repercutem em episódios diversos, mas em todos há um começo, meio e fim, ou seja, são “fechados”.
No fim das contas, a manipulação do vento não é um elemento decisivo, mas apenas acessório. Também não há grandes desenvolvimentos sobre o tema além de descobertas e aprimoramentos pessoais das garotas, afinal de contas estamos falando de um slice of life. As tramas de cada episódio possuem narrativas típicas gênero, onde o vento exerce diversas funções auxiliadoras, tanto como catalisador de alguma ação ou como um elemento propiciador de reflexões psicológicas.
Embora se trate de um slice of life, tenho que ressaltar que foge do habitual, não há os típicos dramas escolares, as cenas de comédia pastelão e outros clichês do gênero. Fuujin Monogatari é exponencialmente mais introspectivo, um anime que foge dos extremos, mantendo uma boa dose de calmaria e reflexão. Todas as histórias presentes nos episódios são de aquecer o coração, mas não são excessivamente dramáticas. O anime não apela ao drama fácil. Mesmo com o elemento fantástico, o enredo de cada episódio é absurdamente humano e plausível de acontecer com qualquer um de nós.
Neste texto não vou falar individualmente de cada episódio, o que alongaria muito o texto e o tornaria enfadonho, além do que, retiraria um pouco do prazer de conhecer verdadeiramente o anime passo a passo. Contudo, devo deixar registrado que Fuujin Monogatari possui, além do elenco principal e corriqueiro, bons personagens secundários, os quais enriquecem cada episódio com seus dilemas ou histórias de vida.
Vou somente citar alguns exemplos. Tem um episódio muito bom, um dos meus favoritas, que o pai de Nao tira carteira de motorista para motocicletas e compra uma moto em segredo, surpreendendo a família. Nesse caso é um homem de meia idade querendo se desafiar, sabendo que está em uma decrescente de força e disposição. Também é uma forma de experimentar uma juventude já perdida. Daria muito bem para analisar esse episódio individualmente e renderia muita coisa bacana. Mas só quero dizer que a dinâmica entre pai e filha nesse episódio foi algo incrível, não por ser algo absurdo, mas por ser absurdamente realista, tão realista que raramente se vê em um anime.
Há um subgênero do slice of life pouco difundido que em inglês recebe o nome de atmosferic slice of life. Em suma, seriam aqueles animes onde a atmosfera exerce mais força que as ações das personagens. Geralmente animes ou mangás calmos e reflexivos. Outros slice of life “atmosféricos” que eu poderia citar: Yokohama Kaidashi Kikou, Aria the Animation, Haibane Renmei, etc.
Nesse mesmo panorama temos os iyashikei, uma categoria onde Fuujin Monogatari se encaixa perfeitamente. Os animes iyashikei são aqueles que exercem de maneira proposital, ou não, efeitos “curativos” na audiência. A definição deste estilo utiliza realmente o termo curativo, mas não se trata de curar doenças de forma literal, mas faz referência ao aspecto relaxante destas obras, onde há pouco conflito ou este é completamente ausente, que de certa forma é “uma cura da alma”.
Não só meramente pelo conteúdo do anime que ele se enquadraria como um iyashikei. É o todo que faz Fuujin Monogatari ser especial. Nesse conjunto eu poderia citar estes elementos: uma trama episódica agridoce, feliz e melancólica na medida certa; uma trilha sonora fabulosa; e por último, uma arte diferenciada, a qual assumindo um viés abstrato e surrealista intensifica as nuances reflexivas da obra.
Geralmente quando eu gosto muito de um anime, acabo vento todos os episódios muito rapidamente, mas com Fuujin Monogatari foi diferente. No máximo eu assistia um por dia, não só pelo fato da obra não possuir ganchos, mas o anime realmente exigia que não fosse apreciado de forma apressada, isso seria uma afronta. É realmente gostoso ver um episódio, refletir sobre ele, manter o sentimento bom. Essa experiência eu estendi por umas três semanas até terminar a obra.
Depois do término sobrou um gosto de quero mais, uma nostalgia gostosa mas dolorosa, ou seja, o próprio Mono-no-aware. Quem acompanha o Dissidência Pop regularmente sabe muito bem que esse termo aparece vez ou outra em meus textos. Na minha análise sobre Yokohama Kaidashi Kizou eu me estendo bastante na explicação deste conceito, então eu recomendo a leitura. Mas para resumir, mono-no-aware é um conceito que pode ser traduzido como uma empatia para com as coisas efêmeras. É ter a noção de que tudo é transitório nessa vida. Essa é uma constatação dolorosa, mas agradável, quando conseguimos perceber a beleza nas coisas passageiras.
Tem um diálogo muito interessante lá pelos episódios finais, onde Nao está de cama na enfermaria conversando com o professor Taiki. É um dia chuvoso em plena estação de floração das cerejeiras. A menina o questiona se não seria interessante utilizar os poderes de controlar o vento para afastar as nuvens de chuva e assim poder apreciar as cerejeiras no auge. O professor diz que não, os usuários do vento não podem simplesmente alterar o que existe ao seu bel prazer e cita um trecho de um antigo poema, o qual vou citar livremente, que diz mais ou menos o seguinte: “Por acaso só podemos apreciar as flores no seu auge ou a lua somente quando está cheia?” As flores cobrindo o chão não são mais bonitas? Nisto que consiste o mono-no-aware.
O mono-no-aware se manifesta justamente nos momentos mais aparentemente banais. Além deste caso das flores de cerejeira, posso citar diversos outros exemplos, como na própria graduação das personagens principais e o fato de irem estudar em escolas diversas no ensino médio. Esse é uma imagem batida nos animes, mas ilustra muito o conceito do mono-no-aware, e Fuujin Monogatari mostra essa passagem de tempo de uma forma bem criativa. No último episódios temos cenas variadas de três momentos temporais totalmente distintos e que não são exibidas em ordem cronológica: o presente do anime, uma cena em um café onde Nao e Miki conversam sobre suas novas escolas e Nao, já adulta, em seu apartamento. Não houve choro nem momentos de drama, mas mesmo assim é impossível não sentir uma certa nostalgia ou um aperto no peito.
mono-no-aware é um conceito tipicamente oriental, mais especificamente oriundo do zen budismo. Por isso, não é raro ver esse elemento em animes. Por isso, dificilmente vemos o mono-no-aware em obras agitadas e com muitas cenas de ação, pois demanda uma contemplação mais atenciosa. Fuujin Monogatari consegue com maestria criar momentos reflexivos, tanto pelos seus diálogos, os quais são muito bons, como pela direção de arte competente.
A câmera foge das personagens humanas e se perde em diversos detalhes, seja na luz solar, nas folhas que caem, nos gatos flutuando por aí, na chuva, nas nuvens, nos reflexos da janela, e principalmente, no vento, claro! O vento é um personagem sutil no anime, mas que exerce sua influência de forma constante. No mundo real, o vento em si é invisível, mas o percebemos na maneira que ele interfere nos seres vivos e objetos, como no movimento de uma nuvem, numa folha seca sendo carregada ou quando ele faz subir a saia de uma garota desprevenida.
Penso que para o anime o vento represente também algo nesse sentido, como se atuasse exercendo o papel de um catalisador de momentos. O vento sempre esta lá para ressaltar algo ou chamar a atenção de alguém para uma pessoa ou objeto. Não por acaso, o poder de manipular o vento brota dos sentimentos. Vemos vários exemplos no anime de como um coração conturbado pode criar fortes rajadas de vento.
Fuujin Monogatari vai ainda mais além, ele dá uma “roupa” para o vento. Podemos vê-lo se movimentar e dançar pelos cenários, envolvendo objetos e pessoas. Não são apenas risquinhos que mudam de cor ao melhor estilo dos mestres expressionistas, mas sim a própria alma do anime. É como se o vento fosse mesmo o espírito das coisas. Ainda falando do vento, temos o sopro de nossa respiração, pneuma em grego. Para os antigos filósofos da antiguidade clássica, o termo significava algo místico, o “sopro da vida”. Nada mais condizente com Fuujin Monogatari.
O espetáculo visual do anime é coroado por uma trilha sonora fenomenal. As faixas são semelhantes, mas isso não é um problema, pelo contrário, possuem um efeito mesmerizante. Dá vontade de fechar os olhos e relaxar, caso isso não o fizesse perder as cenas do anime!, como no caso das faixas Toumei na Kumo e Kaze no Hajimari. É como ouvir um sonho. Se esta música não gera sentimentos bons, então eu não sei de mais nada.
Essa trilha sonora maravilhosa foi composta por Kenji Kawai. O cara manda muito bem, tem muita trilha boa em seu currículo. Ele é outro que sempre trabalha com o Mamoru Oshii. Sem dúvidas é uma parceria frutífera. Kenji trabalhou em obras como: Ghost in the Shell, Mob Psycho 100 e Patlabor. É um monstro das composições. A trilha sonora de Fuujin Monogatari me lembra muito a trilha sonora composta por Joe Hisaishi para o filme Hana-bi, do diretor Takeshi Kitano. O sentimento é o mesmo, a sensação de se estar em um sonho, abraçado por uma música que lhe envolve suavemente. É realmente difícil descrever sons, então vou deixar um exemplo aqui neste texto:
A abertura e o encerramento também merecem destaque. No caso da abertura, Kaze no Uta, interpretada por YuU, temos uma composição doce e suave, foge um pouco do habitual, que pede que aberturas sejam animadas e encerramentos melancólicos. Fuujin Monogatari inverte este padrão e apresenta uma música alegre e bem humorada para figurar como encerramento, Yuuhi no Iro dake, por Windy-S.
É uma pena Fuujin Monogatari ser um anime tão desconhecido. Talvez isso seja uma coisa boa, pois fosse o contrário, eu não teria o prazer de encontrar um anime tão gostoso de acompanhar, como quem acha uma boa recordação em um baú velho, um tesouro escondido. Sei que isto soa um pouco egoísta, pois seria melhor que a série tivesse o merecido crédito, mas fazer o quê né? É assim que me sinto. O que posso fazer agora é desejar que outras pessoas venham a conhecer esta obra de arte magnífica, e espero que meu texto possa ajudar de alguma forma.
Se eu pudesse definir Fuujin Monogatari em uma frase, seria algo como “assistir um sonho”. Isso mesmo, penso que defina bem esse anime que é uma curiosa mistura de uma arte visual diferenciada com uma trilha sonora notável. Para finalizar, não tenho dúvidas em afirmar que Fuujin Monogatari é um dos melhores slice of life que tive o prazer de conhecer, senão o melhor! Nem preciso dizer que recomendo de coração este belo anime. Espero que tenham gostado do texto e até uma próxima!
E para finalizar, vou compartilhar outras screenshots que tirei de Fuujin Monogatari, é muita coisa linda que não pode ficar somente para mim:
Vou deixar aqui no final algumas sugestões de textos do Dissidência Pop sobre obras analisadas que possuem elementos de iyashikei e/ou mono-no-aware:
Yokohama Kaidashi Kikou – O amor pela impermanência e o “mono-no-aware”.
Sora no Woto – Garotas fofas, música, guerra e um mundo pós-apocalíptico, tem como ficar melhor?
Haibane Renmei: Une ille qui a des ailes grises.
Omoide Emanon – Quanto pesam as memórias?
Sasurai Emanon – Um novo ponto de vista sobre a imortalidade.
Zassou Tachi yo Taishi wo Idake. Como um cotidiano pode ser divertido.
Aoi Uroko to Suna no Machi – A simbologia das águas profundas.
Silent Blue – Mergulho subaquático e discussões psicológicas.
Little Forest, que tal aprender a cozinhar? [Volume 1]
Little Forest, que tal aprender a cozinhar? [Volume 2 – Final]