Kuro – Fofura e horrores abissais, uma combinação perfeita.

 

Eu sou uma pessoa que gosta muito da mistura entre elementos fofos e macabros. Animes e mangás como Gakkougurashi!, Puella Magi Madoka Magica, Made in Abyss e Alien 9 sempre me chamam a atenção. Penso que essa combinação de opostos gere bons frutos quando bem trabalhada. E é justamente nesta categoria que se encaixa o mangá kuro, um conto de fadas macabro sobre uma menina chamada Coco e seu dia a dia com um gato de estimação que mais parece um ser abissal extraído diretamente da mente obscura de um autor como H. P. Lovecraft.

Kuro, que em japonês significa simplesmente preto, é um mangá que foi serializado de 24 de maio de 2011 até 17 de junho de 2016, contando com 23 capítulos em três volumes. Kuro foi lançado na revista Tonari no Young Jump, a mesma onde ainda é publicado One Punch-Man. A autoria de Kuro é de Soumatou. Pesquisei um pouco sobre este autor descobri que na verdade é um duo de artistas, sendo Nori que cuida da estória e design, e Hisshi, a pessoa que desenha. Fora os doujinspossuem alguns mangás publicados em diversas revistas.

Vamos à sinopse: Coco é a única habitante humana de uma enorme e ricamente decorada mansão. Mesmo que se possa pensar que sua vida é solitária, ela passa os dias brincando e cuidando do seu gato preto de estimação, Kuro. Logo se percebe que não é um gato dos mais comuns, o formato de sua boca e dentes não são exatamente o que se espera de um gato. Coco aparentemente não percebe essa situação, vivendo diversas aventuras e aproveitando o máximo do tempo juntos. Neste ponto, o mangá mais parece um slice of life com toques macabros, o que não deixa exatamente de ser.

Coco, aproveitando os dias em sua  mansão juntamente com Kuro, não percebe a terrível realidade que a cerca. Para todos os habitantes da cidade, o mero ato de andar nas ruas pode representar um perigo mortal, tudo em virtude de sinistras forças que habitam o mundo. Criaturas negras como a sombra se alimentam das cores e parasitam seres vivos são uma realidade que todos os humanos remanescentes são obrigados a encarar todos os dias. Mesmo com os devidos cuidados, todos estão suscetíveis a cometer uma acidente e sumirem para sempre.

Apenas Coco é ignorante desta situação macabra. E é com essa ignorância que a menina vive dias pacíficos com o seu gato monstruoso Kuro e com as poucas amigas que possui na cidade, já que a menina, assim como a mansão, são mau vistos pela maioria dos moradores. Como já é de se esperar, os seus pacíficos dias de uma abençoada ignorância estavam fadados a terminar. E é na medida que estes mistérios vão sendo paulatinamente revelados que a trama se desenvolve e toma ares complexos e grotescos.

O que chama a atenção logo de cara no mangá é o fato de não parecer necessariamente uma história de terror. Tudo é muito colorido e bonito, a protagonista Coco é extremamente fofa e carismática. Mas é justamente nisto que reside o pulo do gato! E não estou falando do Kuro! Os autores foram extremamente felizes em inserir o elemento bizarro de uma forma a causar uma leve estranheza ao leitor.

É possível perceber que no começo da obra apenas Kuro é o “estranho”, com a sua boca monstruosa, mas Coco não se dá conta disso. Todos os primeiros capítulos se desenrolam como um fofíssimo slice of life. Mas nós sabemos que tem algo errado, que não se encaixa nesse retrato da felicidade, e este elemento dissonante não é somente o gato, diversas vezes podemos ver criaturas monstruosas espiando pela janela. Além disso, o habitantes da cidade compartilham de nossa estranheza em relação à Coco, tirando pouquíssimos personagens que a conhecem e gostam dela.

Outra coisa que chama bastante a atenção quando se depara com a obra pela primeira vez é o fato de ser um mangá colorido (apenas alguns capítulos extras são em preto e branco). Embora os mais ortodoxos apreciadores de mangás possam torcer o nariz, no presente caso foi uma grata surpresa, pois a arte do mangá apenas se torna mais rica com a paleta de cores escolhida, como pode ser visto com as imagens que acompanha este texto. 

A deslumbrante arte de Kuro nos transmite uma atmosfera de conto de fadas, mas não qualquer um, é como se tratasse de algo mais obscuro, como os contos originais dos Irmãos Grimm, antes de passarem pela “retificação” da Disney e de outras forças interessadas em retirar tudo que há de macabro nestas histórias antigas. O mangá também me fez lembrar do filme Coraline e o Mundo Secreto, baseado na obra de Neil Gaiman, em virtude das semelhanças em matérias de ambientação e cores. O design das criaturas também foi muito bem desenhado e planejado, dando a entender que é realmente uma narrativa de horror.

Mas é somente uma narrativa de horror e fantasia super fofíssima e bem desenhada? O buraco é mais embaixo. Como eu já disse acima, os mistérios vão sendo revelados a conta-gotas. Os capítulos são curtos e pouca coisa geralmente acontece, por isso é importante se ater aos detalhes. Por exemplo, cada comentário de algum dos moradores da cidade é relevante. Outro detalhe é que são poucos os personagens, o que acaba criando uma atmosfera intimista, onde vemos como estes personagens interagem e pensam sobre a situação da Coco.

Por exemplo, temos o médico da cidade que parece ter um carinho pela Coco e saber muito mais do que aparenta. A professora Brenda que não tem medo realizar visitas frequentes até a casa de Coco juntamente com sua filha Sesame. Maria, a qual possui inicialmente uma reação de “tsundere” para com Coco, por também ter tido uma tragédia na família envolvendo os monstros, mas que ao longo do mangá passa a nutrir uma amizade sincera pela protagonista. Digna de nota ainda é a Milk, uma menina da idade de Coco que não possui amigos, encontrando em Coco uma amiga verdadeira. Curiosamente, Milk, ao longo da obra, passa a nutrir sentimentos possessivos em relação a Coco, passando a possuir traços de uma “yandere”, só a título de curiosidade.

Quanto à todas as perguntas e mistérios levantados em Kuro, estes são razoavelmente resolvidos? Assim como em muitas obras lovecraftianas, nas quais Kuro tirou clara inspiração, os mistérios estão além da compreensão humana e os autores se empenharam em revelar as respostas aos mistérios apresentados até certo ponto, deixando diversas perguntas no ar.

Não vejo o fato de não explicar tudo como preguiça ou falta de criatividade, pois em obras onde é abordado um terror cósmico de caráter sobre-humano, não raras vezes um final misterioso e ambíguo exerce um efeito melhor, já que propicia um uso da imaginação para completar os horrores apresentados. Ao contrário de uma narrativa onde todos os pontos são meticulosamente apresentados e explicados. O próprio “mistério no ar” exerce uma função estética neste contexto.

Mas claro que essa ambiguidade de informações vai apenas até certo ponto, não temos um desfecho totalmente aberto, pois é plenamente possível entender tudo que aconteceu com Coco e seu gato assustador. Somente os desdobramentos destes eventos continuam envoltos em mistério. Assim como a própria origem dos monstros de sombra apresentados na série. Em alguns capítulos extras, há uma exposição sobre o passado da cidade, características destas criaturas que “sugam” a cor dos seres vivos normais, informações sobre a mansão e trabalho dos pais de Coco, etc. Mas não há exatamente uma explanação sobre qual seja a origem destes monstros. O que, sinceramente, não faz falta alguma.

Agora quero adentrar no que penso ser o mistério principal de Kuro e que ficou deliberadamente em aberto, especificamente sobre a natureza da própria narrativa, se é algo factual ou apenas uma metáfora psicológica dos traumas de uma menina. A partir daqui terão spoilers mais fortes, mas que são necessários para o aprofundamento dos meus pensamentos sobre o mangá.

Com o desenrolar dos capítulos de Kuro, percebe-se claramente que Coco esteve envolvida em uma tragédia e que aparentemente seus pais morreram. Além disso, seu gato sumiu e foi substituído por um gato monstruoso. As pessoas da cidade evitam ou sentem pena de Coco, além de odiarem o gato, por aparentemente fazer parte da mesma raça de monstros de sombras e ser medonho, mesmo que para nós seja fofinho até mesmo com aquela boca com dentição circular que mais parece uma lampreia.

Mesmo neste contexto, Coco não se dá conta de nada, vive em um paraíso idílico com o seu gato. Não é difícil deduzir que Coco possa estar apenas evitando os eventos traumáticos ocorridos com ela, pois ao fugir da realidade, foge da dor que ela lhe ocasiona. Já é bem estabelecido na psicologia e na própria psiquiatria que pessoas podem realmente esquecer ou apagar as memórias de eventos traumáticos, sendo uma forma que o inconsciente cria para proteger o ego consciente. Assim como tiramos o dedo do fogo quando nos queimamos, instintivamente nossa mente cria mecanismos para fugir do que acredita ser doloroso.

Como são mecanismos complexos e instintivos de nossas mentes, não há nenhum julgamento sobre as consequências de se apagar memórias. Apenas há um forte impulso de fugir do sofrimento imediato, mesmo que a longo prazo a situação se torne mais problemática. Além disso, é errado falar em “apagar” eventos traumáticos da memória, o mais correto seria esconder ou ocultar, já que uma hora ou outra a realidade pode vir a tona, o que certamente será um choque e envolve muita negação enquanto a gradual retomada da consciência ocorre, assim como aconteceu com Coco, que ao longo do mangá passa por diversas crises de negação.

E sobre o gato demoníaco? Qual seria sua função, ou o que ele simboliza? Segundo o enredo, fica meio que definido que Kuro realmente não é o gato de Coco, mas como a criatura monstruosa o parasitou e tomou a sua forma, pode ser que suas memórias e afeto por Coco tenham sobrevivido na nova criatura de alguma forma. Por isso o gato a protege com seus poderes sempre que vê algum demônio das sombras.

Claro que apenas dizer que Coco evitava a realidade por estar traumatizada e que o gato monstro apenas tem memórias herdadas do gato original é muito óbvio. Tem mais alguns detalhes e teorias interessantes sobre esta situação. Kuro confortou Coco e viveu com ela mimetizando os comportamentos de um gato normal. Foi somente com a ajuda dele que Coco conseguiu manter em pé por tanto tempo a sua fantasia de negação da realidade.

No fim do mangá, depois de ter ciência de tudo, Coco não abandona Kuro. Até pensamos por um momento que o gato morreu ao salvá-la, mas de certa forma ele ainda vive nela, como é apresentado no final da obra, quando devolveu a “cor” escura dos cabelos dela, aparentemente sacrificando a sua energia vital. Os dois se fundem e vivem em harmonia. Eu penso que tenha uma metáfora interessante neste simbolismo de Coco ter “assimilado” Kuro, mas antes de afirmar algo é preciso teorizar sobre o que realmente aconteceu com Coco.

Em capítulos especiais vemos que o hobby de Coco é escrever histórias onde ela se aventura com o seu gato Kuro. O interessante é que nestas aventuras o gato possui poderes assim como o Kuro monstruoso que lhe faz companhia. Ou seja, mesmo ela acreditando que o seu gato ainda seja normal, em suas narrativas ela o descreve como possuidor das características do gato monstro. Será que os monstros, mais especificamente Kuro não seria ao invés de algo real uma representação de algo interno de Coco, a qual teria fantasiado toda esta situação como forma de proteção psicológica criada em virtude da perda dos seus pais? Essa é uma possibilidade, mesmo que não tenhamos provas definitivas sobre.

É interessante ver que Coco integra Kuro dentro de “si”, tanto metaforicamente como na realidade do mangá. É como se ela finalmente tivesse entendido a sombra que carrega e finalmente tivesse se libertado do trauma que viveu, podendo seguir em frente. Só que a sombra (Kuro) sai de uma posição dominante e toma uma forma auxiliar. No fim das contas, não importa se o que Coco viveu é real ou não, pois a mensagem continua a mesma, Kuro pode ser um mecanismo para mascarar a dor da perda de Coco, do seu medo da morte e do desconhecido.

Tem ainda no mangá uns recursos narrativos interessantes. Na parte final do mangá há um plot twist bem colocado, sendo que no fim das contas o mangá não é tão pesado como deixa a entender. Além disso, finaliza com uma conclusão de aquecer o coração, embora agridoce, combinando perfeitamente com o estilo de arte do mangá, que misturou com maestria o kawaii com o grotesco.

Então é isso, acho que não tenho mais nada para acrescentar, espero que tenham gostado da minha análise e curtido esta recomendação.

 

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