Punpun, e amadurecer pela dor.

Quando eu terminei de ler Punpun, eu chorei por três dias. Não foi choramingar ou lacrimejar, eu realmente chorava e soluçava nos mais variados momentos: antes de dormir, enquanto tomava banho, e algumas vezes tive que sair da mesa do jantar para chorar desesperadamente no banheiro. O momento do mangá que mais pesou em mim é o monologo do capítulo 145, quem leu sabe do que eu estou falando e pode até pensa: “ok, é trágico, mas é pra tanto?”.

Pode ser que não seja para tanto, eu sei disso. Mas também não é um exagero, algo mais estava acontecendo e eu só fui entender agora, olhando para trás e analisando com calma estes eventos. Então o que me deixou assim? O caso foi uma coincidência: Punpun foi o mangá certo na hora certa. Eu terminei de ler a obra algumas semanas depois da morte do meu pai. O desfecho do mangá foi um doloroso choque de realidade que me fez desengasgar tudo que estava preso. “Desengasgar” é realmente a palavra, é aquela sensação que sobe pela garganta, que destranca tudo por dentro.

Antes de mais nada, contextualizando Oyasumi Punpun, este é um mangá que se resume na jornada da vida de um garoto. Punpun, o protagonista da história, é retratado simbolicamente como um passarinho quieto, e acompanhamos a sua vida desde a sua infância até a maturidade alcançada depois dos vinte anos. É uma história humana, muito honesta nos detalhes e absurdos da vida, sobre um herói trágico que se perde em uma obsessão por uma garota da sua infância, e como este herói transtornado e traumatizado amadurece.

É incrível o quão absurdo e identificável ele pode ser com os leitores, no meu caso eu enxerguei muitas semelhanças entre a minha vida com a do Punpun, especialmente enquanto eu atravessava a infância, na criança quieta e assustada. Também teve situações aonde eu não me identifiquei com o protagonista, mas que eu percebia que podia ser eu, se as coisas tivesse acontecido de outra forma.

Eu confesso que não sei lidar com traumas, eu me fecho e tento fugir, assim como o Punpun, e com isto, acabei esperando um final feliz para o mangá, como se buscasse uma maneira de me reconfortar sobre a tragédia da minha própria vida. E até estava tudo indo bem, o mangá mantêm o leitor alimentado de esperança, pelo menos até o final.

Vou avisar que eu vou entrar em spoilers. Mais precisamente, vou discutir justamente o desfecho da história, então se pretende ler sem saber de nada sugiro parar por aqui, mas se não for um problema, vem comigo que vamos tocar o dedo na ferida.

Tudo no romance de Punpun parecia dar errado, e não é que deu tudo errado mesmo? Aiko morreu, ela que era o grande amor e obsessão que movia o Punpun. Mas morrer é o destino de todos, nada novo. Contudo, o impacto da morte de Aiko alcança outro patamar, ela não morreu uma única vez, mas em dobro. A primeira vez fisicamente, depois de tanto terror e sofrimento, tanto físico como psicológico. Depois de acabar com seus sonhos ela se enforcou. Isso por si só é tragédia o bastante, mas Asano vai além, matando ela novamente, só que desta vez ele mata a ideia dela, a memória dela, borrando a sua existência na vida da única pessoa que realmente se importava se ela existia ou não.

Asano matou Aiko de uma forma lenta e cruel, eliminando a sua memória ao negar o desfecho romântico que se construiu até o desfecho cruel. Isso é sadismo, mas existe um propósito por trás disso, uma visão de mundo que torna isso tudo mais que um show de horrores, mais especificamente uma potente ferramenta que me forçou uma catarse.

Após a morte de Aiko, Asano desenvolve uma série de questionamento sobre o passado, criando dúvidas de uma forma inesperada. Essa é a segunda morte de Aiko, além dela, Asano mata a magia do mangá, ele suja a beleza das cenas mais belas, elimina o amor, o romantismo. Toda a obsessão some, toda a intensidade e paixão dão lugar para uma fria realidade e um personagem estoico e indiferente. Esse é o toque de genialidade, esse é o dedo na ferida. Eu tinha acabado de perder alguém pra mim, ouvir que a morte não tem uma conclusão satisfatória foi incrivelmente doloroso, e que o certo é de certa forma entender e aceitar que por mais bonito, traumático ou injusto que foi seu passado, ele está definitivamente morto. A mensagem final é essa, amadurecer para o Punpun foi entender que nada é como ele lembra, e tudo que ele lembra já se foi. Nada se torna justo ou belo, nem Punpun paga pelos seus crimes, nem recebe a recompensa pelo seu sofrimento.           

Eu já li e já ouvi sobre a ideia de que o passado está morto. Este é o fundamento de várias filosofias e religiões. Mas você realmente consegue sentir que seu passado morreu? Você realmente entende que quem estava com você não está mais? Nem nunca mais estará? Foi aceitar isso me fez chorar por três dias. Entender é uma coisa, mas aceitar é outra totalmente diferente. Foi justamente com o Punpun que a ficha caiu, de que eu realmente perdi alguém, e que eu realmente perdi meu passado. O mangá vai além e martela pra deixar ainda mais claro que você também perde a si mesmo. Aquela criança que brincava com os amigos está morta também, suas aventuras bobas na escola, seu quarto, tudo e todos estão mortos, não dá pra voltar, não dá pra mudar.

E agora? E daí que você gostava mais daqueles tempos? Nem a memória registra aquilo como aconteceu, as lentes da nostalgia distorcem muita coisa. E com isto, um novo ciclo está surgindo, novas crianças vivem seus romances inocentes e suas aventuras secretas. Não acho que a realidade seja tão horrível, mas certos aspectos nós tentamos ignorar, e eu ignorei, por isso não amadureci até esse episódio. E sem internalizar este fato não dá para compreender outras coisas na vida. Você corre o risco de acabar como o Punpun, se destruindo por causa de uma memória de uma garota só para descobrir que hoje ela não é a mesma, e nem você é.

Ninguém é o mesmo, mas nem por isso tudo está perdido. As coisas geralmente não são tão emocionantes ou belas quando estão acontecendo no presente, nem tão atrativas quanto as suas expectativas para o futuro. Botar o pé no chão e valorizar a existência morna do presente é um puta clichê, mas é a grande e entediante verdade, banal como o encontro de Punpun com seu antigo colega de classe. A vida segue. No último olhar direcionado ao Punpun vemos o que ele conquistou, mesmo sendo tão desequilibrado. Amigos, pessoas com todas suas esquisitices e defeitos. Mesmo com todos os defeitos do protagonista, com seus erros e perversões, e mesmo sem querer, constatamos que ele construiu laços, conheceu pessoas, possuindo um presente para cuidar e cultivar. Essa é a ideia no último painel que vemos dele. E eu tenho minha realidade.

Oyasumi Punpun pode não ser o melhor mangá já feito, mas eu consigo entender o motivo dele uma das, se não “a” obra mais marcante que eu já li? Talvez cada um de nós tenha algo que nos fez acordar para a vida, que nos levou a analisar algo de maneira racional e clara. Ainda assim é tão fascinante o potencial de uma escrita sincera e ousada, faz você querer continuar lendo na esperança de algum dia entender mais  coisas, e aceitar as coisas que talvez você já saiba.

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