Battle Royale: Angels’ Border – Revisitando uma querida franquia.

Resolvi escrever um pouco sobre alguns mangás que eu tenho e que mesmo tendo sido lançados no Brasil não alcançaram os grandes holofotes e muita gente nem soube do seu lançamento. Um destes caso foi o mangá trazido para o Brasil pela editora NewPOP em 2014, Battle Royale: Angels’ Border.

Como o próprio nome sugere, trata-se de spin-off da famosa franquia Battle Royale, que para quem não sabe ou até esqueceu, se trata de um grupo de estudantes de uma escola japonesa que durante a viajem de fim do ensino médio acabam entrando em um “programa” governamental de um Japão distópico, o qual consiste em jogá-los em uma ilha deserta obrigando-os a se matar até que apenas um sobreviva. Todos recebem armas aleatórias e uma coleira com explosivos, então não há como fugir do programa, o que torna tudo mais cruel e visceral.

Capa completa da edição nacional.

Angels’ Border, embora faça parte de Battle Royale, foge do lugar comum e da violência exagerada, sendo um spin-off da série original onde o foco são as “meninas do farol”, seus sentimentos durante e antes do jogo, desejos ocultos e amizades. Não posso entrar em detalhes e dar spoilers. Quem conhece da história de Battle Royale sabe que essa é umas passagens mais trágicas da obra e sabe de que meninas estou falando, e quem não sabe de nada, posso adiantar que no jogo, um grupo de alunas se refugiou em um farol, formando uma aliança para a proteção mútua, mas como tudo nesse desafio mortal, as bases de quaisquer relações são muito sensíveis, praticamente um castelo de cartas.

Este mangá acaba compilando duas histórias que não pertenciam originalmente ao livro. Uma delas adapta uma história curta criada para a publicação americana da obra. A segunda é completamente inédita, sendo publicada originalmente no Japão pela editora Akita Shoten, na revista Young Champion Magazine. Importante mencionar que ambas as one-shots foram criadas e roteirizadas pelo próprio Koushun Takami, autor de Battle Royale, portanto são fruto da mesma mente criativa que nos presenteou com essa obra-prima distópica.

Os artistas que ilustraram as duas histórias curtas presentes em Angels’ Border não são muito famosos. Os capítulos são nomeados como EPISÓDIO 1, ilustrado por Ohnishi Mioko, e EPISÓDIO 2, ilustrado por Oguma Youhei. As histórias tratam dos sentimentos de duas garotas que não tiveram muito espaço no livro originalmente, sendo consideradas meras personagens secundárias.

Capa da edição americana.

O mangá propicia a oportunidade delas poderem compartilhar com nós os seus temores e sonhos e que pensam sobre o Japão distópico onde vivem e o jogo mortal que acabam, por falta de sorte, participando. E temos uma curiosidade, Angel’s Border é um spin-off do livro e não do mangá, visto que o nome do professor é Sakamochi como na novela e não Kamon. Claro que essa mudança não faz nenhuma diferença prática em termos de enredo.

Penso ser interessante escrever um pouco sobre o que trata cada capítulo de Angels’ Border. Na primeira história temos como personagem central Haruka Tanizawa, a qual pode ser caracterizada como uma garota alta, atlética e bem disposta, e que nutre uma grande amizade com a representante da classe e líder natural das meninas do farol, Yukie Utsumi, sendo que ambas são do time de voleibol. No livro e no mangá, basicamente nisso se resume a personagem, além do fato que ela seria uma boa cozinheira.

O diferencial de Angels’ Border é justamente adentrar nos sentimentos desta personagem que até pouco nada sabíamos e quase nem lembrávamos o nome, justamente por ser alguém do elenco secundário. Já no começo da história ficamos sabendo que a menina nutre sentimentos românticos pela Yukie. No material original nada sugeria isto, além do fato de ter havido uma piada onde foi dito que as duas formavam um belo casal. Talvez o autor tenha quisto explorar esta possibilidade? 

Capa da edição francesa.

Como é típico em mangás, Haruka sente que está tendo sentimento impuros, que não é normal e se sente culpada ante a possibilidade de “sujar” a pureza de Yukie. Esse tipo de autodepreciação sobre “sujar”, ser “impura”, etc., me irrita um pouco, mas também não chega a ser um demérito relevante. Em suma, Haruka sente que não é capaz de encarar tal sentimento de atração e muito menos revelar tal sentimento para Yukie. O capítulo gira em torna dela tentar entender esse sentimento no meio da confusão trágica que é o Programa que estão participando.

Mas não somente Haruka tem destaque neste capítulo. Embora seja narrado do seu ponto de vista, temos também um bom aprofundamento sobre a Yukie, entendendo como ela tem que permanecer forte diante de todo o horror apresentado, por ser a representante da classe, além de expor um pouco de sua vida particular, como no caso das discussões com o seu pai que faz parte das forças armadas, etc tal.

O capítulo também revisita alguns eventos marcantes, como a chegada de Shuya Nanahara, protagonista da história original, ferido ao farol, o que é um ponto de reflexão para Haruka, já que Yukie tinha uma queda pelo rapaz. Também há o fatídico desfecho da saga das meninas do farol, amenizada claro, mas carregando uma carga dramática na medida certa. Até ficamos sabendo que elas presenciaram a morte de alguns personagens, o que não foi mostrado no livro. Digno de nota também foi mostrar como as garotas encontraram uma à outra e formaram sua frágil aliança.

A segunda história é bastante diferente na primeira quanto à abordagem, a maior parte do conteúdo é de antes dos alunos terem que se matar uns aos outros, abordando majoritariamente o relacionamento de Chisato Matsui e Shinji Nimura. Penso que o autor quis se redimir com a pobre Chisato, já que foi a menina do farol que menos recebeu atenção, sendo uma completa figurante. Pois bem, esse foi o seu momento de brilhar. O curioso foi mostrar um pouco da curiosa relação que ela mantinha com Shinji Nimura, que ao contrário dela, era um dos personagens de maior destaque na história, ídolo no basquete, idolatrado pelas meninas, e hacker e conspirador nas horas vagas.

Mas como ocorreu na primeira história, Koushun Takami não retirou a relação de Chisato e Shinji absolutamente do nada. A única coisa palpável que é dito sobre Chisato, além dela ser boa na cozinha, é que nutria uma paixonite juvenil pelo Shinji, como a maioria das meninas. O autor apenas expandiu isso mostrando uma espécie de amizade em segredo. Chisato acaba se envolvendo em uma confusão no trem e Shinji a ajuda para evitar a atenção dos oficiais do governo e milicianos populares, e para isso, ambos resolvem dar um tempo enquanto esperam um novo trem.

E esse “dar um tempo” acaba por desenvolver uma bonita amizade, não que isso tenha evoluído para algo mais do que isso, Chisato sempre soube que Shinji era um mulherengo. E como no caso da Haruka, podemos saber com muitos detalhes como era a vida da Chisato e o que ela teve de passar. Mesmo sendo uma menina comum, o Japão distópico abordado na trama não deixou de deixar sua marca negativa na vida da garota e na sua família.

Além disso, mesmo que já soubéssemos de muitas coisas sobre a vida pessoal do Shinji, nos aprofundamos em algumas situações, o que nunca é demais. Mesmo que o foco seja antes do Programa, um pouco dele ainda é mostrado, deixando revelar como Chisato confiava em Shinji e esperava o seu apoio, que de certa forma chegou, mas diferente do que se imaginava. Isso sem falar da cena no próprio farol, que não deixou de ser retratada, mesmo que na forma de retalhos, tornando-a ainda mais trágica por termos acompanhado a história de vida da Chisato e logo em seguida tudo ter ido por água a baixo. Esse mesmo sentimento temos com a primeira história da Haruka.

O mangá conta ainda com um brinde bem diferente, o script das duas histórias. Não sei se todos terão paciência de lê-los mas é válido pelo fator curiosidade, uma vez que podemos ver exatamente o que o autor tinha em mente enquanto criava a história. O posfácio também trás informações interessantes sobre o processo de desenvolvimento das duas histórias curtas que compõe esse mangá. Ficamos sabendo que ele cogitava seriamente em colocar na novela a conversa das duas garotas sozinhas no farol, mas acabou desistindo. O que não foi um grande mal, uma vez que propiciou a existência de Angels’ Border.

A arte de Angels’ Border é bem diferente da do mangá original, a qual prezava por um realismo por vezes absurdo para tratar dos horrores que aconteceram na ilha. As duas histórias, mesmo possuindo desenhistas diversos, seguem mais um padrão do que entendemos popularmente como o estilo predominante dos mangás atuais. Contudo, isso não é uma crítica, já que o foco não é nas cenas de ação e na violência e sim na interação das personagens. E por sinal, as cenas de massacre ficam perturbadoras de um jeito especial quando retratadas com um traço não realista.

Meu veredicto é que Angels’ Border é um acréscimo importante à franquia de Battle Royale, expandindo um pouco mais o conhecimento de personagens que não tiveram destaque na novela/mangá/filme e dando mais detalhes de outros personagens um pouco mais conhecidos, como no caso do Shinji, o que é sempre bem-vindo. Se pararmos para pensar, o livro seria gigante e talvez enfadonho se fosse esmiuçar cada estudante da turma, sendo então este spin-off um complemente muito bem vindo.

Agora posso dizer que já vi e li tudo de Battle Royale, e falando dos mangás especificamente, Angels’ Border se diferencia muito de Battle Royale II: Blitz Royale, já resenhado no Dissidência Pop, uma vez que este último se trata de uma continuação que apresenta um jogo totalmente reformulado, não menos mortal, enquanto Angel’s Border é um aprofundamento da história original. Diante disto, fica recomendado este mangá para os entusiastas de Battle Royale, ainda mais por ser uma obra curta e já publicada no Brasil em uma edição muito boa pela NewPOP.

Para quem tiver interesse, já resenhei tanto o livro que deu origem à franquia, como o já mencionado attle Royale II: Blitz Royale:

Battle Royale [livro] – “Cause tramps like us, baby we were born to run.”

Battle Royale II: Blitz Royale. Uma outra versão do clássico.

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