O Livro do Vento – Os Manuscritos Secretos da Família Yagyu

 

Continuando o meu projeto de analisar os mangás menos conhecidos do meu acervo, o escolhido da vez foi O Livro do Vento – Os Manuscritos Secretos da Família Yagyu, de  Jiro Taniguchi. Embora seja um mangá lançado no Brasil pela Panini lá em 2006, somente o li neste ano de 2020, ou seja, 14 anos depois do seu lançamento em solo nacional, e foi uma grata surpresa.

Jiro Taniguchi é um mestre dos mangás e sobre isso não há dúvidas, sendo mais reconhecido pelo seu estilo contemplativo, visto em obras como o Gourmet Solitário e O Homem que Passeia, ambas lançadas recentemente pela editor Devir no Brasil. Taniguchi não é somente um mestre do mangá, ele é um mestre de representar o cotidiano, nos fornecendo um olhar diferente às coisas que estão ao nosso redor, ajudando-nos a vivenciar com mais atenção as pequenas coisas do dia-a-dia.

Por isso, foi uma grande surpresa, ler pela primeira vez um mangá de Jiro Tanigushi que fugisse desse viés contemplativo. Vejam bem, não estou reclamando dessa característica, muito pelo contrário, pois é sempre bom ter uma outra perspectiva de um autor. E tem um fato interessante sobre O Livro do Vento, ele foi o primeiro mangá de samurais de Jiro Taniguchi, e foi muito gratificante lê-lo no momento atual onde a temática do Samurai vem ganhando espaço nas publicações nacionais, como em O Preço da Desonra de Hiroshi Hirato, Vagabond de Takehiko Inoue e o Lobo Solitário de Kazuo Koike, a título de exemplo.

Capa da edição brasileira.

O Livro do Vento, chamado originalmente no Japão de Yagyuu Hichou: Kaze no Shou, foi publicado originalmente de 25 de fevereiro de 1992 até 23 de junho do mesmo ano. Se trata de uma obra curta, um one-shot, ou seja, um volume único, composto de nove capítulos. O mangá foi serializado originalmente na revista Young Champion Magazine, a mesma onde foram publicados mangás de renome, como Battle Royale.

Jiro Taniguchi foi responsável apenas pela arte do mangá, já que o roteiro foi desenvolvido por um historiador de renome no japão, Kan Furuyama, o que só contribui positivamente para a obra, a qual conseguiu correlacionar uma arte magnífica com um roteiro com muita verossimilhança com a realidade do período dos samurais. A história de O Livro do Vento se baseia em eventos que tiveram lugar do Século 17 do Japão, no começo do conturbado período do Xogunato Togugawa, o qual durou de 1603 à 1868, com a Restauração Meiji, que marcou o fim do Xogunato e a abertura do Japão às influências ocidentais.

Dando um panorama da situação da sociedade japonesa que antecedeu o início do Xogunato Tokugawa, o Japão vivenciava o período Sengoku, que traduzido seria o “período dos Estados Beligerantes”, já que como o próprio nome sugere, foi uma das fases mais fases mais sangrentas da história do Japão, marcada por constantes guerras para decidir quem teria o controle do Japão. O clã Tokugawa ganhou essa disputa e passou a governar com mão de ferro.

Mesmo Tokugawa tendo sido considerado um tirano pela brutalidade empregada para unificar o Japão e controlar os senhores feudais, muitos destes que anteriormente eram seus rivais políticos, ele teve o mérito de trazer o Japão para um período de relativa paz e de valorização das artes, como o desenvolvimento do teatro Kabuki, a pintura em madeira, a arte do chá, entre outras artes. Também neste período ocorreu a modernização das técnicas de agricultura e a expansão das estradas.

E não é difícil imaginar que o clã Tokugawa para manter o seu poderio empregou diversos meios à margem da lei, como assassinatos, chantagens, e um forte e excessivo controle da família imperial do Japão, uma vez que na época do Xogunato, o Imperador possuía apenas poder simbólico, não possuindo poderes para governar. Obviamente o Imperador e os outros nobres imperiais não nutriam os melhores sentimentos pelo xogum Tokugawa e seus sucessores. É neste contexto histórico que O Livro do Vento se passa.

O mangá especificamente segue a história de Yagyu Jubei e sua família, um espadachim lendário e muito leal ao xogunato. A família Yagyu serve ao xogum como uma espécie de mantenedores da lei, punindo senhores feudais que tentam se rebelar, até mesmo cometendo assassinatos. Não é como se eles adorassem o seu trabalho, mas entendem que como o xogunato estava ainda no começo era necessário fazer todo o esforço para mantê-lo e não colocar o Japão novamente na era das guerras intermináveis. Os atos que eles não se orgulhavam eram um preço pequeno comparado com a pacificação do Japão.

Ocorre que em certo momento os manuscritos secretos da família Yagyu são roubados misteriosamente. Tais manuscritos que ficaram sob a responsabilidade da família proteger,  e se caídos em mãos erradas podem jogar o Japão novamente em uma guerra civil sangrenta. Por isso, cabe à Jubei reencontrar os escritos e impedir o terno da barbárie. Contudo, não são poucos os adversários, já que em segredo o Imperador pretende dar um golpe de estado no Xogunato utilizando estes papeis e recrutando diversos senhores feudais descontentes com o governo Tokugawa.

Em suma, este é o enredo de O Livro do Vento, ele mistura fatos históricos bem consolidados com um toque de ficção para deixar tudo mais interessante. Curioso mencionar que Yagyu Jubei realmente existiu e foi um grande samurai e espadachim, inclusive sendo instrutor de espada de vários xoguns da dinastia Tokugawa, possuindo extremo prestígio. Contudo, a maior parte do que se sabe dele, o que não é muito, é conturbado e não há consenso.

Diante de um enredo como este O Livro do Vento que me pegou de jeito, tem muitas coisas bacanas nesse mangá, lutas de samurais, conspiração política e bastante cultura japonesa. Além disso ele se encaixa em um gênero literário que eu gosto muito, a ficção histórica, onde se faz uma tentativa de conciliar o espírito e as condições sociais e políticas de uma época e personagens históricos com elementos da ficção, representados com bastantes pormenores e fidelidade. Um dos autores que mais aprecio neste gênero é Bernard Cornwell, autor das Crônicas Saxônicas, um retrato vívido e muito bem escrito sobre o período de invasões vikings na Inglaterra.

Depois de abordar um pouco o contexto histórico do mangá, hora de adentrar em outros de seus aspectos. A arte de Jiro Tanigushi dispensa elogios, seu traço é surpreendentemente limpo e com uma riqueza de detalhes que começa a adentrar no realismo ao invés de prezar por um estilo mais tradicional dos mangás das últimas décadas. Escrevi isto para poder chegar nas cenas de luta e perícia com a espada, que acho que é um dos elementos que mais chamam a atenção e prendem um leitor em mangas sobre samurais, e Jiro Taniguchi não faz feio neste aspecto.

Lembro quando li Rurouni Kenshin muitos anos atrás e era super bacana ver os nomes das várias escolas de combate com espada e das mais diversas técnicas. Claro que Rurouni Kenshin é um mangá shounen, e possui mais de fantasia do que realismo, mas foi capaz de despertar essa genuína curiosidade sobre as técnicas com a katana e outras armas em menor medida. Claro que depois com obras mais fidedignas tais informações são mais interessantes, como no caso de O Livro do Vento, onde Jiro Taniguchi executa com maestria as cenas de combate entre espadachins, não sem ainda prestar informações de qualidade sobre as técnicas e estilos utilizados.

O fato de o livro do vento ter sido produzido em parceria com um historiador agregou muita qualidade e fidedignidade na narração, ressalvado, claro, os pontos que são genuinamente ficcionais. Contudo, a obra não se tornou maçante, não é somente uma exposição de fatos históricos e cenas de luta. Em O Livro do Vento Jiro Taniguchi realmente conseguiu criar um enredo que prende o leitor com uma narrativa com boas doses de ação, mistério, intrigas palacianas e tentativas de golpe de estado. Um prato cheio para quem gosta de mangás de samurai, e para todo mundo que aprecia simplesmente um bom mangá.

A edição nacional foi lançada pela Panini em 2006, mesmo assim ainda dá para encontrar o mangá em lojas especializadas e em sebos. Devido ao passar dos anos e por ter sido publicado em papel jornal, o amarelado das páginas é inevitável devido a oxidação do papel, o tempo cobra o seu preço, por mais bem acondicionado que o mangá esteja. Mesmo assim, o papel é de boa qualidade no sentido de ser mais grosso que o habitual e praticamente não ter transparências. Na edição brasileira há ainda uma sobrecapa, e uma curiosidade, foi o primeiro mangá da Panini a ter esse item.

Todos esses fatores demonstram que essa edição foi voltada para um público mais seleto, o qual exigia uma qualidade maior nas edições. Claro que para os padrões atuais não é lá grande coisa, mas em 2006 era uma edição razoável. Contudo esse mangá não fez muito sucesso, ainda não era o seu “tempo”, naquela época mangás mais diferentes, que não fossem shounens ou materiais mais populares não tinham espaço, o público não os aceitava bem.

Em 2008 a Panini tentou lançar outra obra de Taniguchi, Seton, mas apenas o primeiro volume foi publicado e posteriormente cancelado, ou seja, não vendeu razoavelmente. Na mesma época a Conrad, que foi a editora pioneira em trazer mangás mais diferenciados, Lançou Gourmet, do Taniguchi, por sorte não correríamos o risco de cancelado pois era volume único. Também não fez muito sucesso fora dos círculos de colecionadores. Atualmente o cenário é bem diferente, diversas editoras estão trazendo todo o tipo de mangá, desde os clássicos de décadas atrás, como Devilman, Cutie Honey, O Preço da Desonra, entre outros, além de autores pouco conhecidos no ocidente e de estilos menos populares, como no caso de Shintaro Kago, expoente do ero-guro, com o mangá Demência 21.

Falando especificamente de Jiro Taniguchi, lançamentos de mangás seus se tornaram bastante frequentes, tivemos O Homem que Passeia (2017) e O Gourmet Solitário (2019) pela editora Devir, e Guardiões do Louvre (2018), pela Pipoca & Nanquim. Desde 2017 tivemos Jiro Taniguchi todos os anos. Será que teremos um lançamento seu em 2020? Tomara que sim, pois é gratificante ver um grande autor ter o seu espaço reconhecido no Brasil, e que venham muitos outros títulos seus.

O Livro do Vento, mesmo lançado em uma época inóspita para mangás mais diferenciados, mostra que um mangá bom perdura independentemente da época, e fiquei muito contente com esta edição de 2006 ter chegado às minhas mãos. Sem sombra de dúvidas, Jiro Taniguchi mostrou que também é capaz de fazer uma boa história de samurais. Termino por aqui o meu texto, deixando a recomendação de O Livro do Vento – Os Manuscritos Secretos da Família Yagyu. 

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