Fuçando algumas publicações obscuras, acabei encontrando este curioso mangá lançado em 2006 pela editora Conrad, uma adaptação de obras do infame marquês de Sade, o maior dos libertinos franceses e que chocou a sociedade aristocrata da época com seus escritos que exploravam as mais variadas perversões sexuais.
É sabido que há uma variedade imensa de gêneros e estilos de mangás, um mais populares que outros. Nem é preciso dizer o quanto mangás shounen como Dragon Ball e Naruto fazem sucesso. Investir em obras alternativas já foi um grande risco para as editoras. Hoje o público brasileiro amadureceu bastante neste sentido, embora ainda haja muito para melhorar. Uma infinidade de editoras estão lançando obras mais antigas ou de autores menos conhecidos, além de uma grande variedade de obras “fora da curva”, que vão numa direção contrária do que é considerado popular, como foi o caso de O Homem sem Talento e Dementia 21.
Já disse isto em outros textos, mas para o bem ou para o mal, a Conrad foi a primeira editora que ousou inovar no mercado de mangás brasileiros. Infelizmente, na época de seu auge, o público não reagiu bem aos seus lançamentos e muitos passaram despercebidos, o que foi uma pena, e que ajudou a dar a má fama que esta editora recebeu ao ser reconhecida como uma das campeãs de cancelamentos, como nos casos dos mangás de Nausicaa e Bambi, só para exemplificar, pois ainda haveriam muitos outros a serem citados.
Um destes mangás obscuros foi justamente Sade de Senno Knife, que ao lado de Tempest, foram as duas obras do autor lançadas em território nacional. No Japão, este mangá faz parte da coleção Obras Clássicas, sendo Sade o primeiro volume (o segundo é Tempest, já citado acima). Esta coleção, como o nome sugere, apresenta adaptações de clássicos da literatura realizadas pelo autor Senno Knife de autores como: Marquês de Sade (como diz o próprio título do mangá) e William Shakespeare (Tempest).
O presente texto abordará apenas o mangá Sade, muito embora eu tenha planos de analisar Tempest em breve. Quanto ao mangá no Japão, ele foi publicado em 14 de abril de 2005 na revista Seventeen, uma publicação bem obscura com alguns títulos de drama e horror. Como no original, o mangá é composto de um volume e cinco capítulos. Percebe-se que que a obra foi publicada apenas um ano depois da publicação original no Japão.
O mangá em questão é dividido em várias histórias curtas, nem todas de Marquês de Sade. Os capítulos são os seguintes: A Noite do Baile de Máscaras, baseado na obra de Sade chamada originalmente “Augustine de Villeblanche – Le stratagéme de l’amour”; Uma História Trágica, também de Sade, adaptação do original chamado “Eugénie de Franval – Novelle Tragique”; e fechando o ciclo de adaptações das obras de Marquês de Sade, temos Justine, sendo o seu título original “Les Prospérités du Vice” e “Les Infortunes de la Vertu”.
Temos ainda uma adaptação de um conto dos Irmãos Grimm, que são considerados os maiores compiladores de fábulas de todos os tempos. A adaptação em questão se chama A Casa das Atrocidades, baseada na fábula “Fitcher’s Bird”. E para finalizar, uma adaptação de um dos maiores clássicos da literatura erótica do século XX, A História de “O”, de autoria de Pauline Réage, pseudônimo da escritora francesa Anne Cécile Desclos, onde traça um relato pungente sobre aqueles que buscam encontrar prazer na submissão e na dor. Curiosamente, A História de “O” foi escrita em resposta ao fato de um escritor, admirador de Sade, ter dito que mulheres eram incapazes de escrever literatura erótica. Além desta adaptação em mangá, a obra já virou quadrinho pelas mãos de Guido Crepax, um dos grandes quadrinistas eróticos italianos.
Sobre o autor do mangá, Senno Knife, é um talentoso autor de mangás de horror, nos quais, por vezes, inclui um ou outro elemento erótico, podendo encaixá-lo de certa forma no gênero ero-guro, por misturar elementos sexuais e grotescos, como pode ser visto neste mangá da Conrad. Senno Knife começou a publicar em 1981 com a sua obra de estreia Yukihime (Snow Princess). Ele desenhou mangás dos mais variados temas, mas brilhou mesmo com seus mangás adultos e de horror. Sade e Tempest foram os primeiros e únicos mangás dele publicados no Brasil.
Mas quem foi Marquês de Sade? Ele é facilmente lembrado por sua obra ter originado termos como o sadismo, que é o desejo de obter prazer sexual com a humilhação ou sofrimento físico de outras pessoas. Sem dúvidas a sua obra é repleta de “sadismo”, mas ele foi mais do que isso. Seu nome completo era Donatien Aphonse François de Sade, nascido em 1740, sendo um aristocrata francês e o maior escritor libertino da história. Foi preso diversas vezes, sendo perseguido tanto pela monarquia do Antigo Regime como pelos revolucionários franceses. Até mesmo Napoleão determinou sua prisão. E é justamente na prisão que escreve a maioria de suas obras.
Além de escritor, foi também filósofo e dramaturgo. A marca da sua obra é a ruptura com os valores religiosos e racionalistas, pregando, resumidamente, o ateísmo e a liberdade sexual e inclusive criminal. Sade utilizava-se do grotesco para construir suas críticas morais à sociedade da época, sendo comum criar personagens poderosos e respeitadores da moral, mas que sentiam prazer na dor dos demais. Ou seja, descrevia com precisão a hipocrisia social da época.
Uma de suas obras mais famosas (e polêmicas), que inclusive ganhou um filme magistral nas mãos do diretor italiano Pasolini, é 120 dias de Sodoma, onde nobres devassos, em um castelo de luxo, abusam de jovens raptados de todas as formas mais horrendas possíveis, com direito a muita violências, mutilações, assassinatos, sexo e coprofagia. Ou seja, Sade realmente “pesava” a mão na hora de escrever e não omitia nenhuma espécie de perversão sexual. Era como se ele fosse um autor ero guro da época, com seu misto de prazer e dor. Hoje em dia ele até poderia chocar o público, mas imaginem isso em pleno século XVIII? Não sendo de se admirar que fora tão perseguido.
Além disso, Sade vivia da mesma maneira que escrevia, sendo diversas vezes envolvido nos mais diversos escândalos, desde orgias em seu castelo, ou como quando foi acusado por uma mendiga por cometer maus tratos. Teve ainda uma ocasião onde quatro prostitutas o processaram por cometer contra elas flagelações, sodomia e ingestão forçada de afrodisíaco feito a partir do pó das asas de besouros africanos. Sade chegou a ser condenado a morte por sodomia, mas conseguiu fugir para a Itália.
Levando em conta a biografia do Marquês de Sade e suas inspirações para a escrita, já dá para se ter uma boa noção sobre o conteúdo do mangá Sade de Senno Knife. Falando um pouco sobre as adaptações escolhidas sobre o autor, é possível perceber que temos um panorama interessante do que foi a obra de Sade. O primeiro capítulo é justamente o mais “amigável” e “leve” de todos, mesmo que neste caso estes adjetivos não signifiquem muita coisa.
A Noite do Baile de Máscaras é basicamente um conto sobre crossdressing, onde um jovem cantor de ópera que finge se mulher se apaixona por uma nobre lésbica que finge ser homem para atrair parceiras sexuais. E tanto quanto o protagonista se apaixona por ela, ela se apaixona por sua versão feminina. Há ainda uma trama sobre uma aposta com o produtor da companhia que deseja o garoto romanticamente e que busca castrá-lo e transformá-lo num castrati. Para quem não sabe, os castrati foram meninos submetidos à castração para preservar sua voz aguda, impedindo que entrassem na puberdade.
Depois de um primeiro capítulo leve, pois mesmo com cenas de sexo não abusou nas perversidades e contou até com um final feliz e bem humorado, o mangá entra em uma espiral decrescente de repugnância. Em Uma história Trágica, baseada no original Eugénie de Franval, escrita em 1788, temos um enredo onde Mounsier de Franval, um aristocrata rico e belo, acaba se casando com uma mulher, não sem segunda intenções perversas. Ele a faz engravidar e lhe tira a criança, com o objetivo de criar uma “criatura livre”. Ou seja, ele quer que sua filha, Eugenia, cresça sem amarras morais, sem aprender nada sobre religião nem moral.
Ocorre que Mounsier de Franval se apaixona pela filha quando a busca para morar novamente com ele e sua esposa, e começa uma relação incestuosa com a filha. Isto naturalmente causa repugnância na mãe. Mas as coisas começam a dar errado para Mounsier de Franval, uma vez tanto a mãe como possíveis pretendentes de Eugenie começam a conspirar contra ele, iniciando um forte conflito baseado nos ciúmes, o que naturalmente culmina em tragédia. No caso deste capítulo, temos claramente um enredo onde a filha é nada mais que uma boneca criada para satisfazer o apetite sexual doentio de seu pai.
Acho que deu bem para perceber o salto que o mangá deu em profundidade das perversidades apresentadas. Mas o pior está para vir. Fechando a trilogia das obras de Sade adaptadas por Senno Knife, temos Justine, sendo o seu título original “Les Prospérités du Vice” e “Les Infortunes de la Vertu”.
Esse conto, o mais pesado de todos, apresenta uma “lição de moral” até que bem simples e de fácil compreensão. Levando em conta os ideias de Sade e sua tentativa de ruptura com a moral e a hipocrisia social da época. Em Justine temos um panfleto, quase uma fábula, de como os virtuosos que se dão mal na Terra enquanto os maus prosperam. Numa linguagem popular, seria como dizer que o “bonzinho só se fod*”. O título original já explica isto muito bem, pois traduzido ficaria algo como “As prosperidades do vício e os infortúnios da virtude”,
Nesta história, seguimos duas irmãs, Juliette e Justine, que por ficarem órfãs, acabam sendo expulsas do convento onde estudam. Sem terem para onde ir, ambas acabam brigando e se separando. Juliette decide levar uma vida como prostituta, pois faria dinheiro rápido desta forma. Já Justine, preferiu procurar um emprego como criado ou algo do tipo. Enquanto Juliette prosperava em seu ofício, se tornando a melhor prostituta possível, inclusive roubando dos cliente e cometendo delitos, Justine, sempre correta e buscando bem, passou por uma sequência de estupros, humilhações, trabalho escravo, prisão e toda forma de tortura imaginável, numa sequência quase quixotesca de tão inacreditável.
Não quero adentrar nos mais variados tipos de violência que Justine sofre, quem ler vai poder saber. O que quero mencionar é que estas duas irmãs foram a personificação das ideias fixas de Sade durante décadas, aparecendo em diversas histórias distintas. Justine, a defensora do bem que sempre acaba metida em crimes e depravações. Para se ter uma ideia, Justine termina seus dias fulminada por um raio que a rompe da boca ao Ânus (isto não aparece no mangá). Já Juliette, sua irmã, encarna o mal em sua forma mais plena, participando de assassinatos, orgias e etc.
Com estas irmãs, Sade tentou dar um exemplo do pregou toda a sua vida, a ruptura com o cristianismo e com a moral iluminista da época. Eu não li o original, não sei exatamente como termina, mas Senno Knife dá um desfecho agridoce, puxando o enredo para uma situação onde há uma redenção de Juliette. Me parece pouco provável que Sade realmente tivesse o desejo de “corrigir” a conduta dela. Talvez tenha sido uma livre adaptação do autor do mangá, dando a sua visão sobre o tema. Inclusive há uma clara atuação de Juliette como estopim da Revolução Francesa. Eu realmente não sei, quem tiver lido o romance original poderá explicar melhor que eu.
Dando prosseguimento ao mangá, saímos de Sade e entramos em uma adaptação de um conto dos Irmãos Grimm, A Casa das Atrocidades, baseada na fábula “Fitcher’s Bird”. Penso que este capítulo é justamente onde Senno Knife resolveu ter a maior liberdade artística. Embora se saiba que as fábulas clássicas em suas versões mais antigas sejam pesadas para os nossos padrões, o autor do mangá resolveu inserir uma boa quantidade de tortura, necrofilia e abusos sexuais em sua adaptação, o que foge bastante do original. A história também é bastante alterada, pelo o que consegui pesquisar. É uma adaptação interessante.
E por fim, fecha este mangá uma adaptação de A História de “O”, de autoria de Pauline Réage, pseudônimo da escritora francesa Anne Cécile Desclos. Como eu já disse anteriormente, nesta história a autora traça um relato vívido sobre a submissão sexual. Sobre a adaptação, este foi o capítulo que menos me empolguei. Basicamente diz respeito a uma famosa modelo que é levada pelo namorado a residir em uma casa onde ela é presa e “ensinada” a sentir prazer com humilhações e estupros a qualquer hora, uma espécie de “escola da submissão”.
E é nisto que se resume Sade de Senno Knife. É, sem dúvidas, um mangá polêmico e que certamente não é para qualquer público. Acertadamente é dirigido a maiores de 18 anos. Mesmo para um público maior de idade, uma retratação tão claro de violências sexuais contra mulheres não é fácil de engolir, mesmo se tratando de ficção. Sade entra na mesma barreira dos que não conseguem se entreter com ero-guro.
Obviamente você não será um pervertido nem um criminoso só por gostar deste tipo de história. Penso que o maior atrativo é justamente a sequência de narrativas onde vemos até onde o ser humano pode chegar e como vivemos em um mundo de hipocrisias e falsa moral. E foi justamente isto um dos baluartes do pensamento de Marquês de Sade. Obviamente Sade foi um louco inconsequente, mas em sua loucura acabou tocando em assuntos até então totalmente proibidos, retratando uma faceta do ser humano que todos prefeririam esconder.
Sade de Senno Knife é uma leitura instigante, pois não se resume ao grotesco, as tramas são interessantes e bem construídas, repletas de reviravoltas e cenas impactantes. A arte de Senno Knife é um outro diferencial, não foge do que habitualmente vemos em mangás, mas mesmo assim o autor consegue transmitir uma sensualidade misturada com inocência em suas personagens femininas, o que casa muito bem em enredos repletos de erotismo. Mas tenho que ressaltar que não se trata de um hentai, há cenas de sexo, mas os órgãos sexuais não são mostrados diretamente.
E é isto pessoal, era o que eu tinha para dizer sobre esta obra. Pretendo em breve analisar também Tempest, o segundo mangá de Senno knife lançado no Brasil. Espero que tenham gostado de conhecer um pouco mais sobre esta obra tão diferenciada e pouco usual, lançada em uma época pouco propícia para este tipo de material.