Kino no Tabi (2003): se encontrar com os outros para encontrar a si mesmo

Kino no Tabi: viajar não é apenas sobre conhecer lugares, mas pessoas



“Você já sentiu inveja dos pássaros? Sempre que as pessoas veem pássaros voando através do céu, dizem que elas sentem vontade de ir em uma jornada” [1].

É com essa bonita frase existencialista que Kino define muito do que se trata Kino no Tabi, um anime com 13 episódios lançado em 2003, com um viés abertamente filosófico. A partir do seu conceito central, de uma pessoa viajando por diversos países sem um propósito aparente, podemos debater liberdade, geografia, cultura, gênero, trabalho, tecnologia, entre outros temas. Vale ressaltar também que esse é um anime episódico, com estórias independentes, logo não é preciso seguir a ordem de lançamento dos episódios para aprecia-lo.

Se queremos ser livres é por que estamos presos?

 
O que pensar sobre a seguinte frase: “Num pássaro voando enxerguei minha verdade, compreendi o valor da liberdade”? Não, eu não estou repetindo os dizeres de Kino de outra maneira. Esse é um trecho da música “Oitavo Anjo”, do grupo 509-E, cujo nome representa a cela da prisão dos membros Dexter e Afro-X. “Mas o que raios isso tem a ver com o anime?”, você deve estar se perguntando. Acontece que as frases são, de fato, similares, mas, no caso deste rap, o eu lírico está preso literalmente numa cadeia. Já Kino, não. Então por que diria algo assim e por que, penso eu, não é difícil nos identificarmos com o que disse? Se não estamos presos, por que queremos ser livres?

Kino nos proporcionará mais perguntas do que respostas

Assim, fica claro que o conceito de liberdade é relativo a nossa própria situação. Delimitado isso, qual a situação de Kino, ou melhor, qual a nossa situação? Pode se dizer que esse é um desejo particular de Kino e que viajar é a forma que encontrou para ser livre. Evidentemente que sim, mas, embora a maioria de nós não se disporia a pegar uma motocicleta para sair viajando por aí, penso que não é uma situação meramente particular. Durante uma discussão meta-narrativa, o próprio anime insinua se nós não nos vemos enquanto o viajante [2]. E as explicações estão na cultura de Kino. De fato, a ênfase central do anime parece ser como cada lugar tem tradições e costumes diferentes e esse é o ponto destacado por Diego Gonçalves em seu texto “Kino no Tabi – relativismo cultural: descritivo, normativo e epistemológico” [3]. Embora o que eu vá discutir na minha análise pouco detenha-se sobre essa questão, foi o texto dele que me inspirou a escrever sobre este anime, por isso faço essa singela homenagem. Recomendo para quem quiser e acho que é uma boa para mostrar como, a partir de um mesmo anime, podemos refletir coisas diferentes.


O texto de Gonçalves nos lembra como Kino sempre age de maneira respeitosa com a cultura dos povos que encontra, sem jamais julgá-la como inferior ou superior em relação a outras – é nisso que consiste o “relativismo cultural” para quem não conhece o termo. Acho que isso ocorre exatamente como ele diz. No entanto, quando li pensei: mas e em relação a própria cultura? Não gostaria de dar spoilers, mas para responder essa pergunta e tratar do que quero sou obrigado a fazê-lo. Então se você não viu o episódio 4, pare por aqui – a não ser que você não tenha problema com um pouquinho de spoiler, claro. 


O quarto episódio do anime, além de revelar que Kino é uma garota (confesso que fiquei surpreso na hora e aposto que até agora você possivelmente também imaginava um homem; aí que entra sutilmente a questão de gênero), mostra como funciona seu país: todas as crianças aos 12 anos têm que passar por uma cirurgia para conseguirem sorrir o tempo todo. Isso porque nessa idade elas têm que abdicar de serem crianças para entrar na vida adulta. E o que marca essa vida adulta é o trabalho, algo que sabidamente traz infelicidade e, por isso, a cirurgia se faz necessária para que a pessoa possa desempenhar suas funções como um “adulto perfeito”. Gonçalves menciona que, a partir disso, daria para pensarmos no funcionamento de ditaduras e o conceito de felicidade. Penso que sim, mas não vejo nisso um cenário estranho e distante de uma ditadura ou uma distopia orwelliana [4], mas vejo exatamente o presente de nossa sociedade. Difícil de enxergar? Pois bem, então vamos lá.


“E não é?”, diriam muitos já tão acostumados com a sociedade da nossa protagonista, ou, melhor, com a nossa sociedade…

Tanto esse episódio quanto o seguinte denotam o trabalho como algo essencialmente negativo. Além disso, o episódio 10 mostra uma cientista que queria criar robôs para eliminar o trabalho e o episódio 11 mostra uma sociedade que buscava reabilitar os criminosos para o trabalho. De fato, quem gosta de trabalhar nas sociedades contemporâneas? A nível global, em 2013, 72% das pessoas não gostavam de seus empregos [5] e, falando de trabalho como um todo, apenas 13% gostam de trabalhar [6]. Claro, o trabalho nas sociedades capitalistas é alienado [7], portanto, não poderia ser diferente. “Trabalhamos em empregos que odiamos para comprar porcarias de que não precisamos”, já disse um grande filme. Bom, mas não há nada como uma cirurgia que nos obriga a trabalhar e manter uma falsa aparência de felicidade, você diria. Será?
 
Pensemos bem. No que consiste nossa liberdade? Vou me permitir consultar Caio Prado Jr. em um livro chamado O que é liberdade? da famosa coleção “Primeiros Passos”: “Certamente, em princípio e teoricamente, é assim, e sempre, a rigor, existem para o indivíduo diferentes alternativas por onde pode conduzir sua ação. Mas, de fato, essas alternativas se propõem de tal maneira que a escolha se faz, na maior parte dos casos, uma necessidade, uma imposição da qual não há como fugir. Um indivíduo pode naturalmente recusar-se a trabalhar para outrem e se pôr a serviço de interesses alheios e completamente estranhos; ou pode não aceitar as condições que lhe são propostas. Ele é ‘livre’ de assim se decidir. Mas essa alternativa o poderá levar, conforme o caso, a uma situação tal que deverá ser necessariamente excluída. Em que fica então a sua ‘liberdade’?” [8]


Temos então a liberdade de trabalhar ou morrer de fome (claro, temos também a opção de explorar o trabalho alheio, mas só se detivermos os meios de produção; ou roubar, mas correndo o risco de sermos presos). Logo, fica evidente que a primeira opção é mais lógica para a maioria das pessoas. E, trabalhando em empregos que não gostamos, certamente temos que manter algumas aparências para nos mantermos lá. Desde ser educado com seu chefe e seus colegas de trabalho, mesmo que eles o mal tratem e, em geral, o farão pois a competição entre os trabalhadores é estimulada. Em última instância, isso pode levar a casos de doenças psicológicas ou suicídios, como vem apontando a psicologia do trabalho [9]. Para além de ser simpático com seus pares, tem que ser com seus clientes. Como analisou Arlie Russel Roschild em The Managed Heart (algo como “O Coração Administrado”), certos empregos exigem que você esteja sorrindo. Com o subtítulo certeiro de “comercialização dos sentimentos humanos”, ela lembra como aeromoças tem que suprimir sentimentos como ansiedade, enquanto garçons e garçonetes, atendentes de banco, recepcionistas, etc. tem que se mostrar sorridentes [10].

Ao conhecer um viajante, que não trabalha em sua definição, nossa protagonista fica espantada, pois sempre pensou no trabalho como algo chato. Vê alguma semelhança com nossa sociedade?

Diante de tudo isso, parece, então, que não somos livres. Como ser livre então? Acho que se fosse fácil todos já estaríamos fazendo algo para ser e os filósofos não estariam debatendo isso desde que a humanidade é humanidade. Kino no Tabi entra no meio desse debate e veremos o que é apresentado pelo anime como liberdade a seguir.

Ser livre é ser só?

Desde que descobriu como era a vida adulta em seu país e seus próprios pais ameaçaram matá-la por pretender se desviar do “caminho correto”, Kino sai de sua terra natal e parte em uma viagem pelo mundo. De certa forma, isso faz dela um indivíduo e não mais um simples membro de uma comunidade (antes ela sequer tinha um nome). Seria o velho dilema: “liberdade x segurança”? Afinal, ela ganha a liberdade de viajar pelo mundo, mas abdica da segurança de viver em conformidade com a sociedade que a protegia e garantia um trabalho.
 
Para entender melhor isso, vamos tentar distinguir o conceitos de “individualidade” e  “individualismo”. O primeiro basicamente remete as nossas características particulares, que nos fazem diferente dos outros indivíduos e da sociedade, ou seja, nossa personalidade. Já o segundo coloca que os interesses individuais devem vir em primeiro plano em relação aos grupais. Há quem argumente que o individualismo é bom, pois “a prosperidade e a opulência das sociedades dependiam muito mais do esforço de cada indivíduo na busca de seus próprios interesses do que da benevolência desses mesmos homens” [11]. Argumenta-se ainda que é natural, pois as pessoas são naturalmente diferentes, portanto, naturalmente desiguais e essa desigualdade seria o estímulo para buscarem melhorar. No entanto, há quem diga que isso não é necessariamente verdade e que as pessoas, possuindo interesses contraditórios, necessariamente prejudicarão as outras. Nesse caso, o próprio individualismo seria um empecilho para a individualidade. Se minha liberdade é condicionada pelos interesses individuais dos outros, uma hora eles entram em choque. 

Acreditamos ser livres e, por vezes, entendemos liberdade como sinônimo de individualismo ou ser só…

O anime discute isso de alguma forma. Num episódio, um autor de livros diz que “cada ser humano nasce acreditando ser o protagonista de sua própria história”, ou seja, sendo um indivíduo livre. “Entretanto, a sociedade lhe nega este papel, e é desta contradição fundamental que surge grande parte do tormento humano. Segundo o Autor, a única forma de escapar a esta sina seria se colocando em uma posição onde você não fosse nem o protagonista, nem o coadjuvante. Ou seja: o Autor.” [3] Gonçalves argumenta que Kino não é nenhum nem outra, mas mera leitora, passiva, observadora. Conquanto é verdade que ela não interfere na vida dos outros, eu diria que ela é a autora – de sua própria história – já que segue bem decidida sobre seus rumos.


Por sair aleatoriamente vagando, buscando seus interesses seria Kino uma individualista? Em um episódio, ela é perguntada: “Não é difícil para os humanos se eles não ficam ao lado de alguém e não vivem para alguém?”. Kino responde: “Depende da pessoa” [12]. Aparentemente ela se coloca como alguém que não precisa dos outros, uma individualista. Mas, na verdade, analisando bem, ela apenas se coloca como um indivíduo. Isso é confirmado no episódio seguinte, ao meu ver, quando ela responde uma pergunta do Hermes. Ele diz: “Você não gosta de se envolver com outras pessoas, Kino?”, ao que ela responde: “Eu não desgosto, Hermes. Eu quero continuar minha jornada por conta dos encontros com outras pessoas. E algumas delas me ensinaram coisas muito importantes. Eu realmente aprecio tais encontros” [13].

…mas talvez nossa liberdade resida precisamente no fato de que não estamos só

Considerações finais

Para quem curte algo com um estilo mais sério, reflexivo, Kino no Tabi é uma boa pedida. Temos um ótimo debate sobre liberdade aqui com certeza. O quanto da nossa liberdade depende ou é impedida pelos outros membros da sociedade? “A sua liberdade acaba onde começa a minha”, como diz o velho ditado de lógica liberal-contratualista? Ou “a liberdade só se realiza quando cada indivíduo encontra a sua liberdade confirmada e estendida na liberdade de todos” [14], como diriam correntes anti-liberais? Essa é uma das questões que fica colocada no ar com o anime. No fim, trata-se de uma obra sobre encontros. Com os outros e consigo mesmo.

Notas

[Nota 1: Acontece a partir dos 5:17, segundo o player do GoGoAnime: https://ww3.gogoanime.io/kino-no-tabi-the-beautiful-world-episode-1]
[Nota 2: Acontece a partir dos 10:47, segundo o player do GoGoAnime: https://ww3.gogoanime.io/kino-no-tabi-the-beautiful-world-episode-9
“Suppose there is a book about a traveler journeying on a motorrad. While reading it, many come to believe that they are the traveler”]
[Nota 4: George Orwell foi um escritor inglês, mais conhecido pelo seus livros 1984 e Revolução dos Bichos. O primeiro foi uma distopia, o contrário de uma utopia, ou seja, um mundo onde tudo deu errado: o controle e o autoritarismo reinam. Por isso, o termo “orwelliano” é uma palavra usada para definir qualquer prática social autoritária ou totalitária.]
[Nota 7: MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad. Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 84-85: “O que constitui a alienação do trabalho? Primeiramente, ser o trabalho externo ao trabalhador, não fazer parte de sua natureza, e por conseguinte, ele não se realizar em seu trabalho mas negar a si mesmo, ter um sentimento de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolver livremente suas energias mentais e físicas mas ficar fisicamente exausto e mentalmente deprimido. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade em seu tempo de folga, enquanto no trabalho se sente contrafeito. Seu trabalho não é voluntário, porém imposto, é trabalho forçado. (…)
Chegamos a conclusão de que o homem (o trabalhador) só se sente livremente ativo em suas funções animais – comer, beber e procriar, ou no máximo também em sua residência e no seu próprio embelezamento – enquanto que em suas funções humanas se reduz a um animal. O animal se torna humano e o humano se torna animal”]
[Nota 8: PRADO JR., Caio. O que é liberdade?. São Paulo: Editora Brasiliense, 1980, p. 35]
[Nota 9: Em uma entrevista fascinante, Chistophe Dejours diz o seguinte (está em português de Portugal, mas é compreensível): “A avaliação individual é uma técnica extremamente poderosa que modificou totalmente o mundo do trabalho, porque pôs em concorrência os serviços, as empresas, as sucursais – e também os indivíduos. E se estiver associada quer a prémios ou promoções, quer a ameaças em relação à manutenção do emprego, isso gera o medo. E como as pessoas estão agora a competir entre elas, o êxito dos colegas constitui uma ameaça, altera profundamente as relações no trabalho: ‘O que quero é que os outros não consigam fazer bem o seu trabalho.’
Muito rapidamente, as pessoas aprendem a sonegar informação, a fazer circular boatos e, aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…”]
[Nota 10: Infelizmente o livro não foi traduzido do inglês, mas pode ser encontrado aqui. Por outro lado, já há uma ampla discussão em português sobre “trabalho emocional”. Dê um Google se te interessar.]
[Nota 12: Acontece a partir dos 21:25, segundo o player do GoGoAnime: https://ww3.gogoanime.io/kino-no-tabi-the-beautiful-world-episode-10
“Isn’t it hard for humans if they don’t stay with someone and live for someone?”; “It depends on the person”]
[Nota 13: Acontece a partir dos 10:34, segundo o player do GoGoAnime: https://ww3.gogoanime.io/kino-no-tabi-the-beautiful-world-episode-11
“Do you dislike getting involved with other people, Kino?”; “I don’t dislike it, Hermes. I want to continue my journey because of encounters with other people. And some of them have taught me very important things. I really appreciate such encounters”]
[Nota 14: https://www.anarkismo.net/article/2215; a citação, do anarquista Mikhail Bakunin, dentro do contexto do seu livro Deus e o Estado, é a seguinte: 
“[…] A definição materialista, realista e coletivista da liberdade […] é esta: o homem só se torna homem e só chega à consciência e à realização de sua humanidade em sociedade e somente através da ação coletiva da sociedade inteira; ele só se emancipa do jugo da natureza exterior pelo trabalho coletivo ou social que é o único capaz de transformar a superfície da Terra em lugar favorável aos progressos da humanidade. Sem esta emancipação material não pode haver a emancipação intelectual e moral para ninguém. Ele só pode emancipar-se do jugo de sua própria natureza, isto é, só pode subordinar os instintos e os movimentos de seu próprio corpo na direção de seu espírito cada vez mais desenvolvido, através da educação e da instrução; mas uma e outra são coisas eminentemente e exclusivamente sociais, pois fora da sociedade o homem teria permanecido eternamente na condição de animal selvagem ou de santo, o que significa quase a mesma coisa.
Enfim, um homem isolado não pode ter consciência de sua liberdade. Ser livre, para o homem, significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal por um outro homem, por todos os homens que o circundam. A liberdade não é, pois, um fato de isolamento, mas de reflexão mútua, não de exclusão, mas de ligação; a liberdade de todo indivíduo é entendida apenas como a reflexão sobre sua humanidade ou sobre seu direito humano na consciência de todos os homens livres, seus irmãos, seus semelhantes.
Só posso considerar-me e sentir-me livre na presença e em relação a outros homens.
[…] Só sou verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, são igualmente livres. A liberdade do outro, longe de ser um limite ou a negação da minha liberdade, é, ao contrário, sua condição necessária e sua confirmação.”]

 

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