Botchan – As peripécias de um professor de matemática na Era Meiji.

Nesta semana, fugindo um pouco dos animes e mangás, mas não saindo do Japão, resolvi escrever um pouco sobre um livro bastante singular de um dos grandes autores japoneses, Botchan, de Natsume Soseki, escrito em 1905. Nesta obra, o autor realizou uma sátira mordaz da sociedade japonesa da época, valendo-se do retrato de um jovem e simplório professor de matemática de Tóquio que vai trabalhar numa cidadezinha do interior. Mas nada é simples, o choque cultural é imenso, além das situações muitas vezes kafkanianas que o nosso herói precisa enfrentar.

Soseki inova na maneira que retrata o choque cultural entre a metrópole e o interior. Geralmente, nestes casos, se utiliza do velho clichê do caipira que vai para a cidade grande e se envolve em diversas situações constrangedoras. Mas Soseki preferiu retratar justamente o caminho contrário, com o rapaz da cidade se aventurando no interior, localidade esta, que não perde em nada em termos de problemas e intrigas existentes. Para falar a verdade, o interior é um microcosmo que reúne todo o tipo de gente em um cenário mais reduzido, permitindo até mesmo uma análise mais apurada da realidade humana.

Capa da edição nacional lançada pela Estação Liberdade.

Mas quem é Natsume Soseki? Este era o pseudônimo de Natsume Kinnosuke, nascido em 1867, vindo a falecer em 1916, sendo um dos maiores escritores e filósofos da era Meiji. A sua importância é gigante dentro da literatura japonesa, marcando o conturbado período em que o Japão passou a receber uma enxurrada de influência Ocidental em virtude do fim do Xogunato e consequente abertura do Japão para o mundo. A título de curiosidade, de 1984 até 2004, Natsume Soseki foi representado na nota de 1000 Yenes, o que demonstra sua importância como um dos maiores escritores do Japão moderno. Botchan, obra objeto deste texto, é um dos livros mais lidos do Japão, sendo uma leitura quase sempre obrigatória nas escolas.

Botchan (1906) foi o segundo livro de Natsume Soseki. O seu livro de estreia foi Eu Sou Um Gato, em que o autor faz uma crítica à sociedade japonesa em meio a desconfortável mistura entre elementos ocidentais e tradições japonesas e à imitação de costumes ocidentais, tudo isso pelo ponto de vista de um gato que recebe o papel de protagonista. Esta obra já demonstrava o talento de Soseki e sua capacidade de criar narrativas inteligentes e bem humoradas, não sem uma grande dose de uma afiada crítica social.

Natsume Soseki.

Botchan ganhou ao longo dos anos algumas adaptações, tanto live-action como animações. Há um filme de 1936 e mais recentemente um de 2016. A obra também foi adaptada como uma animação em 1986, numa série chamada Seishun Anime Zenshu (Animated Classics of Japanese Literature), em que cada episódio recebia a adaptação de um clássico da literatura japonesa, tendo episódios com obras de grandes escritores, tais como: Yukio Mishima, Yasunari Kawabata, Junichiro Tanizaki, Rampo Edogawa, Ryunosuke Akutagawa, entre outros. Há ainda um filme animado de 1980, com uma duração de uma hora e 12 minutos.

Quanto a escrita do livro, Soseki possui um estilo bastante único. Possuidor de uma fina ironia, o que casada com sua escrita fluída e dinâmica, permite uma construção muito bem feita da psicologia das suas personagens. É ainda interessante lembrar que Soseki também teve uma experiência como professor na juventude.

O protagonista de Botchan é o próprio Botchan, que é um apelido para “pequeno mestre”, na maneira que a empregada da família em que nasceu o chamava. Ele é um jovem professor de matemática recém formado, não muito educado, moderadamente inteligente, que obedecendo ao seu caráter impulsivo, aceita, aos 23 anos, a primeira proposta de emprego que aparece à sua frente, a vaga de professor numa localidade inóspita na ilha de Shikoku. Situação esta, que lhe causa uma péssima primeira experiência profissional, mas lhe confere uma experiência de vida de valor inigualável.

Botchan não possui nenhum traquejo social. O rapaz é um tanto “bruto”, sincero até demais, e notavelmente simples, como na matemática básica, 1 + 1 = 2, não conseguindo entender como a sociedade pode funcionar repleta de gente ambígua, que diz uma coisa mas pensa outra. Botchan é muitas vezes comparado ao Holden Caufield de J.S. Salinger, que aparece no livro O apanhador no campo de centeio.

Nota de 1000 Yenes com o busto de Natsume Soseki. Esteve em circulação de 1984 até 2004.

Um pouco mais da história de Botchan: Antes de se formar como professor de matemática, o rapaz tinha passado alguns anos vivendo em um pequeno quarto de “quatro tatames e meio”. Estava estudando com o dinheiro da herança de seu pai, só lhe sobrando um pouco para a passagem para o seu novo local de trabalho. Desde sua infância, Botchan tem modos ríspidos e com seu temperamento “pavio-curto”, sempre se meteu em brigas e confusões. Mesmo com este caráter irascível, Botchan é justo dentro dos limites de sua simplicidade de visão de mundo.

Essa impetuosidade lhe coloca em diversas situações problemáticas, mas bem-humoradas no decurso do livro. Botchan logo se torna vítima de piadas e chacotas tanto dos professores mais experientes, como também dos próprios alunos, todos maiores e mais fortes fisicamente, além de possuírem uma idade aproximada, o que lhe diminui a autoridade.

Botchan possui ainda um forte senso de justiça. Para ele o que é bom e o que é mal deve ser visível claramente, a fim de se evitar enganos e más interpretações. Este senso de justiça se manifesta principalmente em seu ódio por qualquer tipo de favoritismo, e isto inclui a si próprio. Botchan repudiava a forma que seus pais davam mais atenção ao seu irmão, assim como o diretor beneficiava um ou outro professor em específico. Até mesmo o tratamento que sua criada Kiyo lhe dispensava era motivo de desagrado, já que não entendia ser merecedor de mimos e atenções demasiadas.

Pôster da adaptação em live-action lançada em 2016.

Como já mencionado, um dos principais temas do livro é o contraste entre a cidade e o campo. Diversas situações acentuam o contraste entre a vida cosmopolita e solitário que Botchan levava e as complicações da vida em um pequeno vilarejo. O próprio sotaque de Tóquio o faz pouco entendível pelos alunos e logo também vira motivo de piadas e brincadeiras. Botchan tenta impor uma autoridade como professor, mas ela lhe é negada pelas atitudes dos alunos e pela maneira de ser dos outros professores. Esta nova vida é um choque para Botchan, que até então levava uma vida pacata, mesmo que quase miserável, vivendo em cum cubículo e recebendo a ajuda da velha criada que tanto lhe amava.

Um dos temas presentes em Botchan e que me chamou mais a atenção foi justamente a maneira quase absurda em que representa a hipocrisia social. Botchan, jovem simples, é introduzido em um contexto em que professores e diretores brigam por influências e mulheres de uma forma totalmente ardilosa. Não há em quem confiar. Tirando o próprio Botchan, a maioria das personagens possuem atitudes controversas, o que gera uma confusão no leitor, que não sabe quem é realmente confiável e quem não é. Botchan, assim como nós, passa por essa dificuldade de interpretação.

Imagem da adaptação em animação de 1980.

Em certo momento, um professor parece ser bem intencionado, mas seus atos contrariam suas palavras. De outro lado, quem parecia um potencial “inimigo”, na verdade se mostra muito mais confiável. É engraçado, e evidencia a fina ironia do autor, o fato de que nem mesmo na cidade grande, Botchan havia encarado tanta intriga e conflitos internos. A seguinte citação demonstra com precisão essa ambiguidade das personagens que rodeavam Botchan:

“Mesmo assim, a sociedade é estranha: o sujeito que detesto é amável, e aquele com quem simpatizo é tachado pelos amigos de malévolo. É de deixar tonto. Talvez seja o oposto do que ocorre em Tóquio por estarmos no interior. Que lugar perigoso. Não tardará para talvez o fogo virar gelo e as pedras se transmutarem em tofu.” Pg. 76

Um elemento muito engraçado é que Botchan dá apelidos a quase todos os professores, por exemplo temos o Camisa Vermelha, um professor que, como o nome indica, sempre anda com uma camisa vermelha de flanela, um sujeitinho empoado e arrogante, que tenta parecer mais sofisticado do que realmente é. Temos ainda o professor de matemática titular que recebeu o apelido de Tanuki, que é o nome do cão-guaxinim japonês, além de muitos outros. Segue alguns exemplos da forma nem um pouco amistosa que Botchan analisava seus companheiros de profissão:

“O professor de desenho tinha jeito de artista. Trajava um haori de Sukiya folgado e, manejando um leque, perguntou: – De onde você vem? ah, de Tóquio? Não diga. Que alegria. Então somos conterrâneos… Eu também sou natural de lá. Um Edokko, um filho da antiga Edo.

Pensei com meus botões que se um tipo como esse é um filho de Edo, eu preferiria jamais ter nascido lá.” Pg. 30

Ou ainda:

“Odeio o fanfarrão. O Japão se beneficiaria mais se amarrassem uma pedra pesada em um sujeito como ele e o fizessem submergir até o fundo do oceano. Desagrada-me a voz do Camisa Vermelha. Ele empresta ares de afetação ao seu tom natural de voz, tentando fazê-la parecer daquela forma suave. Por mais que se mostre afetado, o rosto não combina com a voz.” Pg. 70. 

Botchan se mostra um livro verdadeiramente sagaz, sendo impossível não rir dos comentários e pensamentos do protagonista acerca da sociedade e dos indivíduos que integram o seu “universo” de professor. É uma leitura rápida e extremamente fluída, mostrando toda a capacidade de Natsume Soseki em criar uma narrativa envolvente. Penso que o livro seja agradável até para aqueles pouco acostumados com a literatura japonesa e suas particularidades.

Assim, espero que tenham gostado deste texto, e espero mais ainda que deem uma chance para ler Botchan e se surpreender com um dos grandes clássicos da literatura japonesa.

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