High Position – Romance, nostalgia e viagem temporal.

Obras onde o protagonista viaja no tempo para aproveitar uma segunda chance é uma temática bastante comum em romances, correndo-se o risco de apenas parecer mais do mesmo e se tornar esquecível por explorar um tema já batido. Mas sempre é possível se surpreender, e esse foi o meu caso com High Position, que se tornou um dos meus mangás de romance favoritos, com um enredo que transita super bem entre a seriedade e as expectativas frustradas da vida adulta e os sentimentos e emoções da juventude, tudo isso tendo como pano de fundo o Japão dos anos 80. Então, tirem a poeira das suas polainas e Walkmans e comecemos a análise de High Position.

Impossível não comparar High Position com outras obras que tratam do mesmo tema. Esse elemento de viajar no tempo e se ver com outra idade, ou experimentar uma realidade diferente da habitual, geralmente tem com objetivo dar uma lição de moral ao protagonista, embora nem sempre seja o caso. De vez em quando esse enredo surge na ficção, desde o clássico Do Mundo Nada se Leva (1938), como em filmes hollywoodianos mais recentes, como De Repente 30 (2004). Falando de animes, temos o bastante comentado Boku Dake ga Inai Machi (2016). Contudo há variações, onde somente a idade física muda, como no filme dos EUA 17 Outra Vez, e no anime Asatte no Houkou (2006), analisado no Dissidência Pop.

Essa é a minha primeira experiência com um mangá de Takashi Kira, positiva, diga-se de passagem, uma pena ser um mangaká de poucas obras até o momento. Provavelmente o seu mangá mais famoso é Sekitou Elegy, também um mangá de romance. Além disso, possui alguns outros mangás menos famosos, como também uma participação em uma antologia sobre tema do cigarro, Cigarette Anthology.

High Position é o seu mangá serializado mais recente, começando em 05 de janeiro de 2017 e terminando em 06 de novembro de 2018. Sua publicação se deu de forma semanal na revista Manga Action, que por sinal é a primeira revista seinen criada, ou seja, a primeira revista de mangás publicada para um público masculino mais maduro, isso em 1968. Essa revista serializou mangás famosos, como Boku wa Mari no Naka, Lobo Solitário e Old Boy. O mangá foi compilado em 05 volumes e 30 capítulos. 

Eu sempre deixo os aspectos de arte para o final, mas desta vez vou inverter um pouco a ordem e começar a falar do que mais me chamou a atenção em High Position. Além da sinopse interessante, fiquei muito interessado e impressionado pela arte de Takashi Kira. Seu design de personagens é muito bonito. Pode até parecer um traço normal em mangás, mas não é, a atenção aos mínimos detalhes é bem observável, além de umas características marcantes, como o fato de que em quase todos os quadros onde tem personagens falando, eles estão com a boca aberta fazendo bico. Parece um detalhe bobo mas me surpreendeu.

Além disso, outro ponto muito bacana sobre a arte de Takashi Kira, é justamente a fisionomia dos personagens, ele desenha corpos muito bem, saindo um pouco do estereótipo de personagens magrelos, mas não entrando no extremo oposto dos personagens super bombados. Corpos bacanas, corpos reais. As cenas de sexo (sim há cenas de sexo) são bem desenhadas e fogem dos clichês e vícios dos mangas em geral, que por vezes parece algo artificial. Além disso, como o mangá se passa nos anos 80, o autor conseguiu captar bem o espírito da época, seja nos penteados, nas roupas, nas fitas de música e outras bugigangas oitentistas. Mesmo que eu não tenha nascido nos anos 80, ainda consegui sentir certa nostalgia ao ler o mangá, o que só ajuda a demonstrar a sua qualidade.

Já mencionei no primeiro parágrafo que se trata de uma história sobre um viagem no tempo. Mas qual a sinopse de High Position? O mangá segue a dura vida de Amano Mitsuhiko, um homem de 46 anos de idade, infeliz e que está prestes a se divorciar de sua mulher depois de muitos anos de um casamento que perdeu a graça. Além disso, foi demitido de seu emprego e sua filha de 16 anos o despreza.

Cansado de tudo isso, resolve se divertir sexualmente com uma moça mais nova. Como a prostituição é proibida no Japão, ele vai até uma “Soapland”, um estabelecimento onde as profissionais realizam sexo não penetrativo com o cliente, assim não violando a lei de se cobrar por sexo. Não vou nem entrar na discussão de quão hipócrita é essa lei japonesa de considerar somente o sexo penetrativo como sexo. Nestes estabelecimentos bizarros, os clientes são deitados nus em um colchão de água ou de ar e são lambuzados com sabão ou óleo lubrificante, juntamente com a garota de escolha.

Assim, Mitsuhiko tem o seu divertimento sexual, pois mesmo sem penetração, o sexo oral é permitido. Mesmo assim, ele não está feliz, pois não consegue parar de pensar no seu casamento e onde ele teria errado. É muito triste de se ver um homem de meia idade em uma situação e num lugar tão deplorável, e ele sabe o quão miserável é sua condição. De uma hora para outra começa um incêndio no local e ele e a garota tentam fugir, mas como ele está lambuzado acaba escorregando e fica inconsciente. A última coisa que pensa é como vai envergonhar a família se for achado morto em um lugar como estes. Nem morrer pode morrer em paz. Se bem que não é tão simples assim. 

Como num passe de mágica, acorda no seu próprio “eu” de 16 anos, em plena aula no colégio, e a primeira coisa que viu foi a menina pela qual era apaixonado e nunca teve coragem de se aproximar dela e revelar seus sentimentos. Claramente ele é pego de surpresa e se pergunta se teria morrido, ou seria um sonho. Não importa o que fosse, parecia que a vida lhe havia dado outra oportunidade de fazer diferente e ele não iria deixar isso passar. Se bem, claro, que nada foi tão simples como pareceu, e daí começa a saga do protagonista revivendo seus dias escolares. 

Mas a situação de nosso protagonista se mostra ainda mais complicada do que parece. Ele realmente começa um papo com a menina pela qual tinha uma queda na juventude, Ozawa Satsuki, ela oferece seu fone de ouvido para ele ouvir um pouco da música que estava escutando, e inclusive lhe empresta uma fita para ele ouvir outra hora. Certamente ele fica em êxtase por experimentar algo que nunca viveu. Mas sua felicidade dura pouco quando encontra Sachiko, sua esposa do “futuro”. Ele recorda que ela estudava na mesma escola que ele, mas nunca chegou a falar com ela, eles acabaram casando somente quando se aproximaram no trabalho, muitos anos depois. De uma forma meio besta, ele ficou encarando ela e porventura lhe chamou pelo primeiro nome, um ato falho, pois no contexto não se conheciam e isso configura uma intimidade muito grande para os japoneses. Sem mais delongas, Sachiko presta atenção nele e um triângulo amoroso se forma.

Já dá para ter uma ideia muito boa de onde tudo isso vai dar. Imagine, você tem uma vida fracassada e pode voltar ao passado, o que você faria? Tentaria coisas novas? Consertaria o que fez de errado? High Position provou que a resposta é mais complicada do que parece. Inicialmente o protagonista tenta fazer tudo diferente, e de certa forma ele consegue, de um rapaz que nunca teve amigos e mal falava com os outros, em pouco tempo encontrou amigos que se importam com ele e de quebra caiu em um triângulo amoroso.

Daí a sua principal dúvida, tentar aproveitar e se engajar em um relacionamento com a menina que gostava na época de escola ou tentar uma nova vez com sua esposa? A dúvida é realmente cruel, não dá para saber que ele e seu “crush” de adolescência darão certo no futuro, mesmo que goste muito dela, por outro lado, ele sabe exatamente o que deu errado no seu casamento com Sachiko, podendo, então, fazer as coisas de maneira diferente, e de quebra permitir que sua filha viesse ao mundo. Esse é o seu principal conflito.

High Position é um mangá sobre expectativas no fim das contas, e como nosso destino é uma consequência de todos os nossos atos, mas diferente da ficção a vida não nos confere uma segunda chance. Esse mangá  mexeu comigo de uma forma bastante especial, talvez não mexa tanto com você, não sei. Mas no meu caso, já estou quase na casa dos 30, casado e tocando uma vida. De certa forma ainda não me sinto totalmente adulto, parece que algo em mim luta contra essas obrigações da vida e clama por tempos mais simples. E reflito, será que daqui quase uns vinte anos eu posso estar com a minha vida jogada fora como o protagonista? Será que estou tomando as escolhas certas? Não quero chegar numa conclusão nesse texto, mas High Position trouxe esse tema à tona, e sou grato a esse mangá por isso.

Pode ser que daqui para baixo tenha algum spoiler leve, então já estão avisados ok?

Saindo da esfera pessoal deste que vos escreve. Mesmo sendo um mangá de romance, muita coisa interessante acontece em High Position, a trama não roda simplesmente em torno do triângulo amoroso formado, mas nas desventuras e aventuras de Mitsuhiko, como se a oportunidade de voltar no tempo fosse simplesmente uma chance dele “crescer” como pessoa e amadurecer, uma vez que idade não é sinônimo de amadurecimento. Podemos até classificar High Position como um peculiar coming-of-age, uma vez me Mitsuhiko atravessa um processo de aprendizagem, mudando a forma de encarar as pessoas e o mundo ao seu redor.

O fato de Mitsuhiko saber que era um homem de 46 anos ajuda muito nesse processo de refazer a sua vida, mesmo que muitas vezes ele se ponha em maus lençóis, como quando arranja uma tremenda confusão com dois delinquentes de outro colégio, acabando espancado algumas vezes. Contudo, isso o faz entender melhor as pessoas que foram importantes na sua vida como o caso dos seus pais. Além disso, Mitsuhiko consegue se relacionar sexualmente com outras mulheres fora de seu triângulo amoroso, mulheres mais experientes. Por um momento, Mitsuhiko vivia a satisfação de ter sua virgindade perdida novamente, ainda mais enquanto estava no colégio, o que era impensável para o seu antigo eu.

Tem um momento muito especial quando Mitsuhiko conversa com o seu pai, perguntando se ele era feliz. Só para situar, o pai dele trabalhava muito tempo fora e só voltava de vez em quando para casa. Ele questionou o próprio filho perguntando se ser feliz não seria justamente ter toda a família saudável e conseguir sustentá-la com um bom nível de conforto? Isto é muito triste na verdade. Embora essas coisas sejam realmente boas, isso não é substituto da felicidade. Em outra cena muito tocante, Mitsuhiko chama a atenção dos irmãos para fazerem um agradecimento formal por tudo o que seus pais fizeram por eles. Ele mais do que ninguém sabe como um pai se sente quando não recebe atenção de um filho.

Naturalmente todo mundo estranha o comportamento de Mitsuhiko, um tanto mais maduro, mas ninguém reclama, já que é realmente uma melhora se comparado com o seu antigo eu. Outros encontros são dignos de nota, como quando ele resolve dar atenção a uma mulher de meia idade divorciada em um bar e escutá-la. Ele acaba transando com ela, mas o mais importante foi ele projetar sua própria experiência de solidão e desesperança em outra pessoa e buscar dar um momento de alento para a senhora que, claro, fica muito feliz por poder fazer sexo com um rapaz do colegial.

Outro ponto de preocupação de Mitsuhuko e que é digno de nota foi lidar com o fato de saber acontecimentos importantes para a história do mundo. Curiosamente enquanto se passa o mangá ocorre o desastre nuclear de Chernobyl, isso desperta dentro dele as memórias do ataque com gás sarin ao Metrô de Tóquio em 1995 e mais recentemente o acidente nuclear de Fukushima em 2011. Acho que é natural pensar que poderíamos na situação dele evitar esses eventos, mas qual o poder de uma única pessoa? Mas fácil ser taxado como um louco que ninguém levaria a sério. O mangá não adentra muito nessa questão, mas foi um acréscimo interessante no sentido de levantar um questionamento plausível tendo em vista as circunstâncias do protagonista.

Contudo, o mais importante mesmo em High Position são as peripécias do protagonista lidando com o triângulo amoroso formado. É interessante ter o ponto de vista em que o protagonista é muito mais velho do que o seu corpo aparenta, e mais interessante ainda ver que idade não é exatamente sinônimo de maturidade e Mitsuhiko ainda acaba cometendo erros básicos e tomando decisões precipitadas. Temos em High Position um protagonista interessante, e realista, que não busca se dar bem a todo custo utilizando sua situação peculiar, mas sim viver um pouco do que não teve coragem de viver, cometendo assim novos erros e tendo uma nova chance de amadurecer.

Ainda, as meninas que formam a base do triângulo são personagens muito bem construídas. Em Sachiko, a esposa do “futuro” temos uma análise bem peculiar, sabemos o que ela passou no casamento, sabemos ainda um pouco dos seus gostos e dos seus pesares e ter uma visão de sua juventude ajuda a construir um cenário do que deu errado e o que poderia ter sido feito para evitar sua infelicidade. Mais enigmática é Ozawa Satsuki, o romance adolescente de Mitsuhiko, uma garota que vive para trabalhar e ajudar sua vó e irmã em uma cafeteria familiar. Mitsuhiko se supera para quebrar a parede de gelo que há na garota, mostrando muito mais sentimentos do que aparentava.

Mas qual é o significado de High Position? Trata-se de uma viagem no tempo? Mitsuhiko bateu a cabeça e em coma sonho tudo isso? Deus lhe deu uma chance de ver como sua vida poderia ter sido? Eu não vou responder isso aqui claro, quem quiser saber terá que ler o mangá, ou continuar lendo daqui para baixo, pois tem alguns pontos desta questão que me vejo obrigado a discutir. Então, há spoilers determinantes do enredo abaixo:

High Position pode se mostrar um tanto ambíguo nesse critério, mas constrói um cenário perfeitamente factível com a lógica da obra. Em tese não é uma viajem no tempo, e Mitsuhiko experimenta cenários alternativos de sua vida enquanto está em coma no hospital. Nos últimos capítulos ocorre muita informação junta, mas senti que não ficou confuso. Ele vivencia em um espaço de tempo curto outras possibilidades em sua cabeça e como essas interfeririam em seu futuro. Caso não namorasse nenhuma das duas acabaria como um gordo isolado em um cubículo apertado sem vida social.

Se namorasse Ozawa, como as coisas estava se destinando a ocorrer na maior parte do mangá, e depois casasse com Sahiko, consertaria os erros por ser mais experiente, teria vários filhos e um casamento feliz. Por alguma razão, havia dificuldade em imaginar um cenário completo em uma realidade que casasse com Ozawa Satsuki. O mangá também apresenta uma abordagem da física quântica. Ah, a velha solução quântica, parece clichê, mas permite trabalhar de uma forma convincente a questão de universos e realidades paralelos. De uma forma ou de outra, Mitsuhiko apenas vivenciou possibilidades de linhas temporais distintas, mas no fim das constas não podia fugir de sua própria realidade.

Me surpreendo de como muita gente achou esse final “broxante”, com a maior parte da história se passando na cabeça de uma pessoa em coma. Para mim foi o mais perfeito e justo possível, pois demonstra a inevitabilidade das nossas escolhas. Enquanto lia os capítulos, não consegui de deixar de ver alguns comentários de leitores e como eles se diferiam do que eu pensava. Não quero menosprezar o que os outros pensam, longe disso, mas quero ressaltar são análises mais imediatistas por assim dizer.

Nestes comentários qualquer aproximação do protagonista com sua mulher do futuro era repudiada como “ridícula” por parte do protagonista, ou como uma atitude de “gado”, visto que o certo seria aproveitar a vida ao máximo e conquistar a menina “nova”. Ao meu ver, antes de saber que se tratava apenas de uma simulação, ou um vislumbre de outra realidade, torcia para que ele ficasse com Sachiko, sua esposa do futuro, e aproveitasse a chance, sabendo do que errou, para fazer diferente e melhor. É triste pensar em um casamento em que tudo acaba em ruína. Isso se deu pelo caráter indeciso e morno de Mitsuhiko, alguém que apenas ia pela maré, sem ter controle da própria vida, essa seria a chance de mudar as coisas. Talvez não desse certo, mas eu torcia para que ele tentasse novamente.

O final foi alvo de críticas semelhantes, pois ver o protagonista voltando à realidade nua e crua parecia desagradável demais. Eu vejo o contrário, ele foi certeiro, mesmo sendo agridoce. Esse vislumbre de outras possibilidades fez o protagonista aceitar melhor sua vida atual e fazer algo para mudar. Desse jeito, conseguiu se entender com a mulher, não retomando o casamento, mas vivendo em bons termos com ela mesmo divorciado. Conseguiu entender melhor a filha adolescente e se aproximar dela. Até seus irmãos que o desprezavam passaram a admirá-lo. Começou outra carreira profissional, e ainda tivemos o tiro de mestre, a última cena, onde depois de muito procurar, conseguiu encontra Ozawa Satsuki. O mangá termina com ela de costas, agora já uma mulher de meia idade, como ele.

O mangá não diz se eles ficarão juntos, mas não precisa, isso pode ficar só na imaginação do leitor, e mesmo se não ficarem juntos, ele foi atrás do que desejava, ele finalmente amadureceu. Também passa a ideia de que nossas vidas ainda estão abertas para o que o futuro nos reservar, então temos de aproveitar ao máximo.

Aqui terminam os spoilers

No fim das contas, High Position é uma recomendação certeira para quem gosta de um bom romance, com boas doses de drama, comédia e um enredo interessante e maduro na dose certa. Não sei se todos ficarão tocados ao ler o mangá como fiquei, mas a minha experiência pessoal me fez reconhecer High Position como um dos meus mangás de romance favoritos e espero que quem for ler através da minha recomendação, também tenha uma experiência agradável. Seria uma boa pedida para ser publicado no Brasil, quem sabe um dia né?

Link permanente para este artigo: https://dissidenciapop.com/2020/05/13/high-position/