Abenobashi Mahou☆Shoutengai – Uma comédia alucinada com um caminhão de referências.

O texto da vez é sobre um anime que acabou de entrar em sua maioridade, completando 18 anos desde o início de sua exibição na TV japonesa, sendo injustamente pouco conhecido e falado sobre, Abenobashi Mahou☆Shoutengai. Uma pérola esquecida do estúdio Gainax, que sem sombra de dúvidas merece a sua atenção pela criativa mescla de comédia, ação, paródia dos maiores clichês da indústria dos animes, misticismo do folclore japonês e física quântica.

Para quem já viu o anime, ele é sempre lembrado por sua premissa bizarra, a qual consegue mesclar elementos de viagens a mundos paralelos com uma crítica a modernização e o consequente desenraizamento dos clássicos estabelecimentos comerciais familiares dos bairros japoneses, como também por sua animação por vezes caótica, não fazendo feio a outros títulos do estúdio. Isso sem falar no caminhão de referências à cultura pop em geral, como animes e filmes. É sério, é muita referência mesmo, mas um dos objetivos do anime é justamente brincar com os diversos gêneros de animes e com toda a cultura pop, como os filmes de Hollywood e até jogos de vídeo game.

Abenobashi Mahou☆Shoutengai antecipa em alguns aspectos o que seria apresentado no maior sucesso da Gainax depois de Neon Genesis Evangelion, Tengen Toppa Gurren-Lagann (2007), tanto no estilo caótico da animação como na insanidade das cenas de ação, muito embora Abenobashi seja um anime de comédia, possui alguns episódios com bastante coisa acontecendo. Além disso, dá para considerar que Abenobashi também pegou bastante referências de estilo de animação com FLCL, famosa série de OVAs, também do estúdio Gainax, lançada no ano 2000. E em alguns momentos o estilo cartunesco da animação de Abenobashi faz até lembrar de Panty & Stocking with Garterbelt, outro anime da Gainax, de 2010.

Abenobashi Mahou☆Shoutengai, ou Magical☆Shopping Arcade Abenobashi, é um anime de 13 episódios que foi ao ar originalmente de 4 de abril de 2002 até 27 de junho de 2002, dirigido por Masayuki Kojima, diretor experiente, mais reconhecido por Made in Abyss e Monster. Embora não seja um anime muito popular, principalmente no Brasil, foi premiado com o prêmio de excelência em animação do Japan Media Arts Festival em 2002, merecidamente.

Estilo que é famoso em outros animes mais famosos do estúdio Gainax.

O anime tem como plano de fundo um bairro comercial de Osaka chamado Abenobashi, que existe na vida real. Inclusive no encerramento do anime, que por sinal é ótimo, há diversas fotos antigas do bairro, desde estabelecimentos comerciais, entretenimentos locais, festivais, etc. Outra curiosidade legal é que o nome do distrito, que também nomeia uma estação de trem, veio de uma figura histórica bastante famosa no Japão, Abe no Seimei.

Abe no Seimei foi um onmyouji que viveu em meados do período Heian (794-1185). Para quem não sabe o que é um onmyouji, é um especialista na arte do onmyoudou, que traduzido seria “caminho do yin-yang”, uma espécie de cosmologia esotérica tradicional do Japão, uma mescla de alguns conhecimentos da natureza com o ocultismo. Os onmyouji eram funcionários públicos e serviam a corte japonesa nos mais variados assuntos, como adivinhação, exorcismos e nas mais diversas magias. Onmyoujis são um tema muito frequente em animes e mangás, basta ver o traje de um que provavelmente todos lembrarão de ter visto um ou outro em alguma obra.

Onmyouji, figura mística do Japão que é de extrema importância para o anime e que aparece em muitas outras obras.

Voltando ao Abe no Seimei, ele conseguiu grande prestígio com o Imperador da época por suas grandes capacidades de aconselhamento em momentos de crise e pelos seus supostos poderes místicos, a maior parte dos seus feitos faz parte do folclore japonês. Sua ligação com Abenobashi se dá justamente por este ser o lugar em que supostamente nasceu. Como este não é um texto exclusivo sobre a história do Japão, resta dizer que Abe no Seimei é um personagem muito importante para Abenobashi Mahou☆Shoutengai.

Como eu disse acima, Abenobashi Mahou☆Shoutengai se passa no bairro comercial de Osaka de mesmo nome. No anime o bairro é protegido por quatro famílias desde a sua fundação, a localização dos estabelecimentos comerciais formam um desenho que representa os quatro pontos cardeais e consequentemente os animais sagrados que os protegem, o dragão (leste), o tigre (oeste), a tartaruga (norte) e o pássaro (sul). No anime o pássaro é um pelicano. Todos os  quatro estabelecimentos devem proteger uma estátua de cada um dos animais sagrados.

Os quatro guardiões dos pontos cardeais, o dragão, a ave, o tigre e a tartaruga.

Sasshi e Arumi são dois amigos e consequentemente os protagonistas do anime que moram no bairro e são herdeiros dessa tradição. A trama começa justamente com os planos do pai de Arumi fechar o restaurante tradicional e aproveitar uma proposta de trabalho em um restaurante francês em Hokkaido. Naturalmente Sasshi fica ressentido com a notícia por perder a companhia de Arumi, juntamente com o avô de Arumi, que afirma que nunca fechará o restaurante e se recusa a sair. Ocorre que a maioria dos estabelecimentos familiares estão fechando devido a modernização do entorno.

Certa vez, o avô de Arumi quebra por acidente a estátua do pelicano de seu restaurante, o que de certa forma liberou uma espécie de lacre e uma série de eventos estranhos começaram a acontecer, como pessoas virarem cogumelos e dragões voando de noite pelos céus, culminando no sumiço dos dois jovens. Contudo, Sasshi e Arumi não somem simplesmente, mas são levados a cada episódio para um mundo diferente, onde há o bairro de Abenobashi mas reimaginado com as mais diversas temáticas. Cada universo distinto é fruto da imaginação de Sasshi, que é um otaku de primeira, então, todos os universos paralelos representam animes ou filmes, apresentando todos os clichês típicos de cada gênero.

Tipo de bizarrice que se torna comum quando os eventos sobrenaturais começam a ocorrer no anime.

Nos diversos mundos em que Arumi e Sasshi se aventuram o objetivo é voltar para a casa, mas por uma fatalidade eles sempre acabam indo para um universo mais louco que o primeiro, como por exemplo um mundo de jogadores de RPG, uma aventura espacial com direito até a uma luta com mechas, um suspense policial noir envolvendo uma guerra de máfias, um mundo de artes marciais na China que tem até um torneiro de luta, como na maioria dos shounens mais famosos como Dragon Ball e Yu Yu Hakusho. Tem até um episódio escolar, onde Sashii vive a vida de um protagonista daqueles jogos de namoro, as visual novels.

Arumi e Sashi também encontram em cada universo que visitam as pessoas que já conheciam em Abenobashi, mas em versões distintas, por exemplo, o pai de Arumi assume desde o papel de um rei até de um atirador de elite da máfia. E encontram alguns personagens recorrentes enigmáticos, como a Mune-Mune, uma moça com cabelos vermelhos e uma comissão de frente bem “avantajada”, protagonizando o eterno clichê do protagonista dando de cara em seus seios, e por sinal Sasshi é um tarado em sua presença, mais uma vez obedecendo um estereótipo dos animes. Mune-Mune assume diversos papeis, desde uma vilã de RPG até uma pirata espacial, em todos os mundo buscando um homem chamado Eutus, que também dá as caras em todos mundos, aparentando saber muito mais do que demonstra.

Tipo de incidente frequente em animes, no caso Sasshi sempre dá de “cara” com Mune-Mune.

Basicamente é isso, a correria dos dois protagonistas em versões totalmente bizarras do bairro de Abenobashi para poderem voltar para a casa, tudo repleto de muita comédia e referências. Mas não é somente de masturbação visual e referências que sobrevive o anime. Há um aspecto intrínseco de coming-of-age, um amadurecimento progressivo dos personagens para entender seus sentimentos, utilizando os eventos fora da realidade como ferramenta para isso. Sasshi, por exemplo, luta boa parte do anime com fortes sentimentos de escapismo e fuga da realidade, que devem ser superados para que ambos possam tentar voltar para casa.

Além disso, tem toda a discussão periférica do próprio significado do bairro em que eles cresceram, Arumi desde sempre não se mostrou preocupada em abandonar o bairro, enquanto Sasshi estava relutante à ideia de se ver longe de Arumi, bem como nunca imaginou morar em outro lugar. Desta forma, seria um apego ao antigo bairro apenas um sentimentalismo vazio? Ou o lugar onde seus antepassados criaram raízes possui um significado mais profundo? É possível resistir ao avanço do tempo? Como pequenas lojas familiares podem competir com grandes shoppings e lojas de departamento?

Universo com tema militar, um dos muitos visitados pelos protagonistas.

Mas ainda é um anime de comédia e esse é o maior atrativo do anime. Não é algo que faça gargalhar, mas mantém um nível de divertimento contínuo. As situações que Sasshi e Arumi se envolvem são as mais improváveis possíveis e esse é o charme da obra. O mais interessante é que é um anime totalmente imprevisível, cada universo possui suas próprias particularidades a serem exploradas e clichês a serem parodiados, desde filmes de artes marciais até animes de garotas mágicas.

Penso que o maior diferencial esteja justamente na animação e o design dos personagens e dos cenários, eles seguem o estilo do mundo em que Sasshi e Arumi se encontram, é algo fantástico. A animação do mundo “normal” do anime é uma animação normal, mesmo que de boa qualidade. Mas por exemplo, no mundo espacial o estilo da animação lembra muito FLCL ou Tengen Toppa Gurren-Lagann, algo extremamente fluído, tudo acontecendo muito rápido e de se certa forma deformado e até mesmo um tanto cartunesco. No mundo pré-histórico a animação é ainda mais cartunesca, mas no sentido de ser uma obra infantil mesmo, os dinossauros parecem ter sido tirados de um anime para crianças pequenas.

Universo pré-histórico, o estilo da arte deste episódio é o mais cartunesco do anime.

Dá para falar muita coisa ainda, como no caso do episódio policial, que segue bem o estilo “hardboiled”, aqueles filmes policiais clássicos, com brigas de máfia, muitas cenas em bares e sempre havendo uma “femme fatale” para apimentar as coisas. Nesse episódio o design dos personagens assume um visual mais realista e o episódio como todo assume tons mais obscuros, tanto que Sasshi e Arumi parecem mais velhos, inclusive esta fazendo o papel de “femme fatale”. Já no episódio escolar, o design explora o típico visual de animes de romance do começo dos anos 2000, sendo feitas até piadas aos cabelos e expressões da época, como aquelas anteninhas de cabelo que são marca registrada, que lembra algo como Clannad.

Há outras situações em Abenobashi Mahou☆Shoutengai como no caso do ecchi, que é a inserção de elementos sensuais em um anime/mangá, funcionando em muitos caso como fan-service. Penso que o anime utilize esse elemento justamente para referenciar o que é comum nos animes. Pelo menos em quase todos os episódio há cenas enaltecendo os dotes corporais de Mune-Mune e como Sasshi age como um idiota nestas cenas, fora isso o nível de ecchi é moderado, a não ser em episódios onde esse recurso é muito mais explorado, como no episódio espacial, enaltecendo o clássico clichê de heroína espacial em trajes minúsculos.

Sasshi entende como funciona o “mundo” de uma obra de ficção científica. E de quebra, vemos uma pirâmide repleta de referências.

Algumas piadas podem soar de mal gosto para grande parte do público moderno, como no caso da sra. Aki, ela serve simplesmente como elemento cômico estereotipado de uma transexual peluda e caricata, quase sempre aparecendo juntamente com personagens femininas bonitas para reforçar a piada visual. Por isso é sempre bom lembrar que estamos lidando com um anime do começo dos anos 2000, mesmo que aparente ser moderno em diversos aspectos.

No geral, Abenobashi Mahou☆Shoutengai apresenta um trabalho bem feito, é raro uma comédia que se preocupa com uma boa animação no mesmo nível de um anime de ação, como no caso de Nichijou (2011). Em Abenobashi, no entanto, o capricho se faz necessário pela própria proposta da obra que busca referenciar a própria indústria dos animes e cinematográfica, conferindo um plus ao resultado final. Mesmo quando as piadas não são tão engraçadas, é legal por si mesmo ver referências bacanas e cenas de ação estilizadas.

Provavelmente um dos carros mais estranhos que já vi.

Complementando, mesmo que Abenobashi Mahou☆Shoutengai pareça um anime sem pé nem cabeça boa parte do tempo, ele possui um enredo bem construído que possui até uma carga dramática que começa a se desenvolver na metade final da obra. O próprio uso de universos paralelos é interessante por si só, utilizando elementos da física quântica, mais especificamente da teoria do multiverso, há até menção direta da interpretação de Copenhague, que é uma das muitas visões da física sobre o tema. Tudo temperado com uma boa dose de misticismo japonês dos onmyouji.

Isso sem falar do próprio contexto do bairro de Abenobashi. Realmente dá para sentir uma empatia por aquele conjunto meio desorganizado de estabelecimentos locais. Não são apenas lojas, são famílias, são histórias completas, são a cultura de Osaka, e isso transcende o anime. Não há aquela pressão capitalista de uma loja de departamentos ou de um shopping, aquela frieza destituída de alma. Sasshi e Arumi são o movimento da vida, a nova geração que está com a decisão nas mãos de manter ou não a tradição viva. Abenobashi Mahou☆Shoutengai é uma comédia que faz refletir.

O trio que sempre aparece para “animar” os episódios.

Abenobashi Mahou☆Shoutengai possui uma conclusão justa, mesmo com a carga dramática elevando-se não se deve esperar nada muito surpreendente nesse sentido, mas sim um final esperançoso. O ciclo dos personagens se fechou completamente. Penso nem ser cabível uma possível segunda temporada, que provavelmente nunca foi pensada mesmo.

Outro destaque são a abertura e o encerramento, ambas sendo interpretadas pela cantora Megumi Hayashibara de maneira primorosa. Começando pela abertura, “Treat or Goblins”, eu curti bastante ela, tem uma pegada bem leve, lembra a primavera/verão, com bastante ênfase na frivolidade da vida cotidiana dos protagonistas. Simples, mas eficiente. O encerramento “Anata no Kokoro ni”, como de praxe em animes, apresenta uma música mais sentimental, e no caso o diferencial fica mesmo para a animação do encerramento, uma sequência de fotos antigas do bairro de Abenobashi.

Algumas das belas fotografias que aparecem no encerramento do anime:

Abenobashi Mahou☆Shoutengai é apenas o sétimo anime, não contando filmes e OVAs, do estúdio Gainax, sendo produzido sete anos depois de Neon Genesis Evangelion, possuindo uma produção caprichada, inclusive o anime foi feito em parceria com a Madhouse, que caprichou na animação. Infelizmente se tornou um anime pouco reconhecido, sendo eclipsado por outros animes com certas semelhanças de estilo, como no caso FLCL. Então, se você gosta destas animações mais malucas da Gainax, precisa assistir Abenobashi Mahou☆Shoutengai, esse anime enérgico e bem humorado que tem um pouco de tudo e talvez em alguma coisa possa te agradar, não deixe de dar uma chance.

Antes de terminar, tem muitas coisas que eu ainda queria mostrar e falar, mas vou me limitar a deixar aqui abaixo algumas das muitas referências bacanas que podem ser achadas no anime:

2001: Uma Odisseia no Espaço.

Dragon Ball principalmente.

Captain Harlock.

Hokuto no Ken.

Bruce Lee com o seu típico uniforme amarelo no filme O Jogo da Morte.

Desta vez há uma referência a Jackie Chan no Filme O Mestre Invencível, onde é utilizada a técnica dos “punhos bêbados”. O adversário pode ser também uma referência ao personagem Tao Pai Pai de Dragon Ball.

Nesse daqui eu nem preciso explicar né? O golpe e o cabelo mais icônicos do mais famoso dos shounens.

Referência aos filmes de máfia.

Uma referência aos muitos animes e OVAs de mulheres policiais bem comuns nos anos 90.

Golgo 13.

Anime de garotas mágicas como Cardcaptor Sakura.

Exterminador do Futuro.

O Iluminado.

O Enigma de Outro Mundo.

RoboCop. E parece ser uma referência involuntária aos Mamonas Assassinas, por ser literalmente um RoboCop Gay.

Indiana Jones.

O filme de Steven Spielberg Tubarão. Se bem que também é uma referência involuntária bem direta a Sharknado, por ser um tubarão em tornado, digo involuntário pois Sharknado foi lançado somente em 2013.

Titanic.

Força Aérea Um.

Sequência de transformação de Spectreman, um tokusatsu famoso do começo dos anos 70.

Ainda Spectreman.

Transformação completa.

Por fim, De Volta para o Futuro.

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