Acho que está virando rotina eu falar sobre mangás que envolvem a temática da água né? Não sei se é coincidência ou algo premeditado pelo meu inconsciente, mas se o mangá é bom ele merece ser analisado, não é mesmo? De qualquer forma essa é uma temática que me agrada bastante, diante de todas as implicações simbólicas que o símbolo primordial da água pode nos remeter. Então já sabem né? Podem esperar uma obra com profundidade psicológica tão grande quanto as profundezas do oceano.
A premissa do mangá é bem simples. Quando Aoko, a protagonista, tinha quatro anos, um meteorito se chocou contra a sua cidade. Por sorte, os moradores foram evacuados. A cidade foi completamente coberta de água por uma chuva que durou vinte dias. Nos dias atuais em se passa a história do mangá, o local passou a se chamar Lago dos Vinte dias, atraindo muitas pessoas curiosas para mergulhar em suas águas e vislumbrar as estruturas da cidade que ficaram intactas ou em ruínas no fundo do lago.
Duas décadas depois do acidente, Aoko sente que não consegue recuperar algo que ela considera importante e que se esqueceu em virtude do acontecimento terrível, isso somado ao fato de que ela tinha quatro anos na época do desastre. Aoko não lembra praticamente nada do ocorrido e nem da sua vida antes do acontecimento, mesmo assim ela sente que possui uma ligação muito forte com essas memórias perdidas do passado.
Para descobrir o que procura, Aoko mergulha continuamente no lago, em busca de algum objeto ou mero vislumbre de algo que a faça lembrar do que perdeu. Sua busca é prejudicada justamente pelo fato dela nem ao menos saber o que deve procurar, devendo confiar plenamente em sua intuição. Bom, para manter a rotina de mergulhos, Aoko cuida de um Café que funciona em uma van, de propriedade de seus pais, o que a permite estacionar sempre o veículo perto do lago.
Ao longo dos capítulos Aoko encontra diversas personagens interessantes, que de uma forma ou outra também possuem ligação com o lago. É nisso que se resume a história de Silent Blue, Aoko mergulhando cada vez mais fundo nas suas lembranças, de maneira figurativa e literal ao mesmo tempo, já que quanto mais fundo no lago, mais da cidade se descortina aos seus olhos. O engraçado que até o terceiro ou quatro capítulo, pensei que o mangá se tratasse de uma sequência de histórias episódicas, independentes umas das outras, mas não é bem assim.
Mas tudo tem o seu valor nesse curto mangá, os primeiros capítulos servem para contextualizar a protagonista e sua busca. Por exemplo, no primeiro capítulo temos uma garota que brigou com o namorado e foi jogar as suas coisas no lago, como forma de retaliação pelo fim do relacionamento. Ela acaba jogando as coisas perto de Aoko, a qual recolhe tudo e devolve para a garota, até mesmo um aparelho de mp3, que foi bem difícil de encontrar. Isso sem falar no policial que havia trabalhado na cidade há 20 anos. Assim, conhecemos Aoko através das perguntas que esses personagens secundários fazem, principalmente no que tange o motivo de Aoko fazer o que faz.
Sem dúvidas, o visitante mais importante de Aoko no lago é Aoki, que trabalha em uma importante corretora de seguros. Se pensa inicialmente que ele é um personagem de um capítulo só, assim como foram os demais, mas não, ele exerce uma importância bastante grande no enredo de Silent Blue, pois busca investigar o que realmente aconteceu no lago, se foi mesmo um acidente devido a queda de um meteoro ou alguma outra coisa, como a queda de um satélite. Ele arrasta Aoko nestas investigações, as quais não se limitam em investigar as ruínas, mas mexer até mesmo no passado dos pais da garota.
Outro aspecto interessantíssimo na construção da personagem é justamente os seus momentos de introspecção, quase sempre quando está na água, o que ressalta o aspecto simbólico desse elemento, que indiretamente leva as pessoas a refletirem sobre sua vida, não sem um viés notadamente melancólico e poético. Por exemplo, nos próprios termos de Aoko, quando ela está rodeada pelo peso da água é como se esta pressão a fizesse dissolver todas as memórias e derramá-las nas águas do lago. E o mais curioso é que a água é realmente onipresente nos momentos de reflexão, pois até mesmo na banheira Aoko se deixa levar pelos seus incertos pensamentos.
Mas o que diabos Aoko procura? um objeto? Uma lembrança? Um lugar? Nem ela sabe direito responder essa pergunta, o mangá torna a sua própria conclusão bastante simbólica, cabendo ao leitor chegar nas suas conclusões. Além disso, essa coisa que Aoko procura é a única coisa que importa para ela, tanto é que quando arrastada pelas investigações de Aoki a menina desabafa para si mesmo que não liga para o que aconteceu com a cidade, ela só que descobrir o que aconteceu com ela. Essa apatia, ou tédio que seja, da protagonista mostra que seus problemas internos superam qualquer fator externo.
Essa é uma metáfora poderosíssima para a nossa própria vida, sempre temos um sonho, uma aspiração, alguém que queremos imitar ou agradar, mas o mais importante e que geralmente ajuda a conquistar tudo isso é conhecermos a nós mesmos. Quem é você de verdade? Aoko precisou nadar em um lago para descobrir isso, mas onde podemos encontrar respostas semelhantes nas nossas vidas?
A psicologia aceita que podemos encontrar tudo isso e muito mais em um lago muito mais profundo, no nosso inconsciente, aquela parte de nós que armazena todos os conteúdos que aparentemente não ficam na nossa memória mas estão sempre lá, esperando a hora para vir à tona, juntamente com traumas, medos, aflições, desejos ocultos, etc. Conhecer o que tem no abismo do inconsciente é ter uma melhor qualidade de vida, assim como quando Aoko descobriu a resposta que queria. Esse é o cerne da psicologia analítica, desenvolvida por Carl Gustav Jung, onde o mais importante é conhecermos a nossa plenitude.
Outro aspecto interessante de Silent Blue é a presença do mono-no-aware, um conceito japonês dos mais interessantes, que pode ser traduzido como uma empatia para com as coisas efêmeras, oriunda do próprio budismo, onde a transitoriedade das coisas é um dos seus principais pilares. Esse mono-no-aware representa uma leve tristeza ao contemplarmos a mudança das coisas, mas também uma tristeza prolongada sobre a realidade passageira da vida.
Na literatura japonesa e poesia, o mono-no-aware é um elemento estético que implica essa passagem das coisas, podendo ser representado por um objeto ou pessoas. Por exemplo, as flores de cerejeira são um símbolo bem comum do mono-no-aware, já que florescem por um curto período de tempo todos os anos antes de morrerem. Em Silent Blue, Aoko experiencia esse sentimento, de forma constante na sua vida, ao contemplar a cidade submersa, que antes cheia de vida, foi resumida à uma atração destinada a poucos mergulhadores.
Outro conceito japonês, semelhante mas bastante diferente, que pode ser observado em Silent Blue, é o wabi-sabi, que também teve sua origem no budismo da escola zen, a mais difundida no Japão. Também faz referência ao aspecto transitório dos seres animados e inanimados, só que consiste especialmente em aceitar e contemplar a beleza do aspecto transitório e imperfeito das coisas. Enquanto o mono-no-aware é o sentimento de melancolia gerado pela passagem das coisas, o wabi-sabi é a contemplação da beleza dessa passagem, ou seja, um complementa o outro.
Wabi-sabi também se manifesta em um estilo artístico que inclui assimetria, irregularidades e simplicidade, bem como a economia dos materiais. Objetos com pequenos defeitos são valorizados nessa escola artística. Mas o wabi-sabi também pode ser manifestado naturalmente quando contemplamos algo defeituoso mas belo, como um velho chalé no campo com trepadeiras crescendo em suas paredes de pedra gastas ou mesmo uma ruína de uma civilização antiga. É comum ver a aplicação do wabi-sabi em animes e filmes japoneses.
Hayao Miyazaki, um dos criadores do Estúdio Ghibli, usou e abusou do wabi-sabi em seus filmes, basta ver o parque abandonado em A Viagem de Chihiro. Mesmo nos filmes onde ele não foi o diretor, há a presença do wabi-sabi, como nas paisagens de O Mundo dos Pequeninos. Em Silent Blue, vemos o wabi-sabi na própria figura da cidade submersa, que mesmo inabitável e destruída, possui uma beleza ímpar, bem como nos objetos que se encontram nela, como o enfeite de natal achado por Aoko.
Diante de toda esta contemplação da jornada interna de Aoko, a menina consegue mergulhar bem fundo nas suas lembranças (e no lago), alcançado uma resposta ao final, não vou contar o que é, se quiserem saber é só ler! E curioso que mesmo um enredo tão contemplativo foi possível criar um certo mistério e conspiracionismo, que longe de fazer o mangá fugir de foco, serviu para animar um pouco a história, além de servir para acentuar a dissociação da Aoko com os problemas do mundo real e seu desejo de descoberta pessoal.
A arte é fluída, nada que possamos chamar de único, mas o design de seus personagens é bastante competente, em alguns quadros Aoko fica muito bonita e bem desenhada, a autora está de parabéns! As cenas submersas também são muito bem construídas e dignas de nota sem sombra de dúvidas, ela é uma mangaká que devemos prestar atenção em seu desenvolvimento.
Para finalizar, tive uma experiência muito positiva com esse mangá, e mesmo sendo bem curtinho, apenas um volume, consegui apreciá-lo bastante, além de ter deixado um gosto de quero mais, mas isso é apenas um desejo sem fundamento, já que o enredo fechou bem redondo e realmente não há espaço para continuações. Assim, Silent Blue é muito recomendado por mim, especialmente para os fãs do josei, como a todos que gostam de uma boa história.