O que há de interessante no cotidiano de um jovem carvoeiro japonês da primeira metade do século XX?
Sabe-se que o Japão possui uma relação muito particular com as tradições e o sobrenatural, bem, devo dizer que no restante do mundo também era assim, contudo o Japão conseguiu prolongar por mais tempo as influências tradicionais em sua cultura, tendo como ponto chave de mudanças nesta relação sua derrota na Segunda Guerra Mundial e a consequente pesada imposição da influência cosmopolita ocidental que sofreu.
Os aspectos tradicionais japoneses que devo destacar nesta postagem e que são de suma relevância para a obra apresentada são a relação do ser humano com as atividades campestres e a relação com o sobrenatural.
Sumiyaki Monogatari é um mangá biográfico, no qual é narrada a vida diária de Ue Toshikatsu, um jovem carvoeiro da região da prefeitura de Wakayama. Onde é narrada, de forma pessoal (como se tratasse de uma longa conversa entre o narrador e o leitor), o laborioso processo de manufatura do carvão e a vida diária do autor, sua relação com a natureza, com os demais moradores da região, com as tradições familiares e com o folclore regional.
Sumiyaki Monogatari, traduzido como “Contos de um Carvoeiro” é uma adaptação em mangá realizada por Shigeyasu Takeno de um livro autobiográfico escrito por Ue Toshikatsu, que segundo pesquisas é um autor japonês que se dedica a escrever sobre temas tradicionais, como o folclore de sua região, florestas e montanhas, sendo Sumiyaki Monogatari um relato de sua vida na juventude enquanto laborou como carvoeiro.
Quanto ao mangaka Shigeyasu Takeno, este é um autor um tanto desconhecido, pouco consegui descobrir, as informações mais relevantes estão nas próprias informações dadas por ele ao fim do mangá, onde relata toda a sua carreira até a adaptação do mangá em discussão. Sumiyaki Monogatari não foi serializado, foi diretamente encadernado e disponibilizado em um único volume composto por 11 capítulos para a venda em 12 de agosto de 2005, onde, parece, obteve um relativo sucesso internacional, visto ter sido traduzido para diversas línguas, como inglês, espanhol e francês.
Então, o que faz esse mangá, aparentemente monótono, um mero relato biográfico, merecer um artigo neste Blog? O fato de que não é apenas um relato biográfico e mesmo que fosse, há inúmeras biografias interessantíssimas, mas o que mais chama atenção nesta curta obra são os temas relacionados à vida do protagonista narrador e como ele os encara, seria chegar ao ponto de dizer que o verdadeiro protagonista não é o narrador, mas sim a floresta na qual ele habita e dela retira o seu sustento.
Trata-se de um slice-of-life, não há grandes reviravoltas no enredo, nem fortes emoções derivadas de romances, mas sim o cotidiano da vida do protagonista carvoeiro. É um estilo narrativo que me lembra outra obra na qual eu escrevi sobre, Liitle Forest de autoria de Daisuke Igarashi, na qual também relato o dia a dia de uma protagonista que vive no campo.
Não é uma biografia contada nos moldes tradicionais, não começa narrando o nascimento, a infância e os acontecimentos da vida do autor de forma linear, mas começa diretamente, nos primeiros capítulos, a relatar e explicar cada passo da produção do carvão, desde o trabalho de buscar a madeira específica na floresta, cortá-la e levá-la até o seu barraco onde vive sozinho, construir o forno e por fim criar o carvão da madeira que recolheu.
Ao ler o mangá percebe-se que é um trabalho árduo a profissão de carvoeiro, no qual, pelo menos para a maioria de nós, interpretaria como loucura alguém se submeter a este tipo de trabalho braçal por livre e espontânea vontade, visto levarmos uma vida confortável. Mas isto é uma análise supérflua que não leva em conta as particularidades do contexto social no qual vive o narrador.
A atividade de carvoeiro, segundo o próprio mangá, é muito antiga, remonta aos primórdios da civilização, tanto é que ainda na primeira metade do século XX quando se passa a história os métodos de produção do carvão ainda se mantinham os mesmos, não sendo possível observar nenhum recurso tecnológico moderno.
Bem como, a atividade do carvoeiro é familiar, observa-se que o pai passa para o filho as técnicas do ofício, segundo o mangá esta é uma atividade muito lucrativa, embora seja um trabalho muito pesado, visto que o carvão produzido na região, o bincho-zumi, um carvão de cor clara, que queima por bastante tempo e que não produz fumaça era bastante valioso.
O processo de preparo do carvão é tão bem detalhado que se qualquer um de nós quiser largar nossas vidas no Brasil viajar e para o Japão poderemos virar carvoeiros apenas seguindo este mangá como manual! Nenhum detalhe é deixado de lado, cada equipamento utilizado bem como seu uso é muito bem detalhado.
Mas o mangá não mostra que a vida de um carvoeiro é fácil, muito pelo contrário, é um trabalho relativamente perigoso, o corpo do nosso protagonista é recoberto de cicatrizes, pois sempre está sujeito a cortes e arranhões ao cortar e preparar a madeira, bem como queimaduras também são uma constante na sua vida, visto enfrentar sempre altas temperaturas por trabalhar de cara no fogo. Além do quase sempre presente esgotamento físico, não raras vezes é mostrado o protagonista dando uma pausa pra descansar.
Os animais da floresta ocupam uma boa parte da narrativa, incialmente temos o encontro do protagonista com os tanukis, espécie de guaxinin japonês, sendo interessante o relato deste, no silêncio do seu casebre, ao ouvir os passos dos animais, além de uma muito curiosa exposição da habilidade do tanuki de fingir de morto quando é caçado. Um casal de pica-paus chama a atenção do narrador, pois enquanto eles trabalhavam na madeira a fim de construírem uma casa, nosso carvoeiro laborava a fim de construir uma nova cabana para produzir carvão, relacionando sua atividade com a atividade dos pássaros.
Outro animal de grande relevância para a narrativa é o Serow, animal típico do Japão pertencente à família dos bodes, conhecido pela sua capacidade de escalar superfícies muito íngremes. Há um serow albino que por vezes acompanhou o trabalho do protagonista, sendo que este o batizou de supervisor, pois ficava observando o seu trabalho de cima de um monte
Também há menções de tradições japonesas que envolvem este animal, como informarem que todas as partes do corpo dele podem ser úteis para algo, desde a carne na alimentação e seus chifres e cascos na cura de alguns males. Além de ter uma parte de um capítulo dedicada à caça de serows e de como o governo japonês teve que reagir diante de um número expressivo de peles de serow que estavam entrando no mercado por vias ilegais.
A pesca também é relevante na narrativa, entre uma jornada de trabalho e outra o protagonista se dedicava à pesca, assim, como em outros momentos, ele vagava por lembranças de sua infância, em virtude de ter pegado uma espécie de peixe que os pescadores de salmão normalmente desprezam.
Ao nos contar sua vida o narrador por vezes nos remete ao seu passado, como aprendeu a trabalhar de carvoeiro, os mestres que possuiu os animais de estimação que teve, a sua relação com sua família e com a natureza. Contudo, um dos fatores mais fantásticos de sua narrativa se concentra no sobrenatural.
O japonês, até mesmo o cosmopolita, possui uma relação com o sobrenatural que os tornam únicos, como se houvesse um espírito em cada esquina ou algo do gênero. Claro que isto está claramente mais presente no homem do campo que se mantém firme em suas tradições. A espiritualidade japonesa é curiosa, ela não reside apenas em deuses que vivem afastados dos humanos, mas se concentra em um grande número de divindades, espíritos e monstros de todos os tipos que vivem no cotidiano, fazem parte da vida diária deles.
No final do mangá há um informativo acerca da situação atual dos carvoeiros, digo atual levando-se em conta os informativos do ano 2.000. A atividade da carvoaria tradicional japonesa sempre foi muito bem, até mesmo no pós-guerra, visto a infraestrutura do país ter sido fortemente abalada e somente por volta do início da década de sessenta a demanda do carvão produzido artesanalmente foi duramente reduzida, diante da produção industrial do carvão e mais ainda pelo fato de que o carvão nas residências foi substituído pelo gás e pela energia elétrica.
Antigamente existiam milhares de famílias que sobreviviam com a fabricação do carvão, no ano 2.000, segundo a Associação de Produtores de Carvão Vegetal, na província aonde se passa a narrativa, restaram apenas 180 famílias que trabalham no ramo.
Este mangá serve como alerta e muito mais como incentivo a estes trabalhadores que mesmo enfrentando duras condições de trabalham ajudam a manter uma tradição milenar contribuindo pra cultura japonesa como um todo, pois o que define um povo se não suas tradições? A perda destas constituem como fator decisivo na massificação do ser-humano, só observar os inúmeros problemas sociais e psicológicos que os japoneses atualmente estão sofrendo, como altas taxas de suicídios e deslocamento social.
Outro aspecto importante ligado a manutenção de tais tradições diz respeito com a relação do ser-humano com a natureza. É mais que sabido que a industrialização extrema e a cosmopolitização de qualquer região trás impactos ambientais enormes, como a poluição e a perda da biodiversidade.
Estas atividades tradicionais como a carvoaria, mesmo existindo nelas a necessidade de corte de árvores e emissão de gases não trazem grandes efeitos contrários à natureza, os trabalhadores das florestas sempre souberam da necessidade de viver em harmonia com a natureza para que os seus meios de sustento nunca viessem a faltar, como somente cortar árvores adultas e a realização e reflorestamentos periódicos.
Esse tipo de extração está em consonância com a ordem das coisas nas florestas, os predadores somente caçam o que precisam para se alimentarem, os herbívoros também apenas se alimentam das plantas necessárias para sua subsistência, assim como os carvoeiros apenas retiram o que precisam das florestas, não visando apenas o lucro cego que leva a destruição.
Posso chegar numa conclusão de que a manutenção destas atividades sustentáveis está relacionada com a própria existência das florestas, uma depende da outra para coexistirem harmoniosamente, pois enquanto haja uma proteção destas atividades a expansão industrial, por exemplo, não poderá usufruir destas terras.
Para finalizar, quanto aos aspectos técnicos desta obra, devo dizer que sua arte embora remeta a traços arcaicos da indústria do mangá é bastante agradável de ler, mostrando um bom grau de detalhamento tanto dos personagens como das paisagens e dos animais silvestres. Somente algumas expressões faciais em determinados quadros me fez torcer o nariz.
A forma da narrativa também foi bem desenvolvida, como um relato pessoal do narrador, permeado com alguns flashbacks pontuais, os quais não prejudicam a continuidade do enredo que se constrói bem durante a leitura, mesmo não sendo lineares os fatos narrados em cada capítulo, tratando-se mais de uma sucessão de eventos narrados pelo autor sem uma ordem temporal pré-definida.
Considerei Sumiyaki Monogatari uma boa obra, com arte e enredo competentes além de todos os aspectos reflexivos que detalhei acima, que nos trazem a problemática de vida tradicional/cosmopolita e a necessidade de preservar a cultura e os antigos ofícios preservando conjuntamente o próprio meio ambiente, natural e cultural.
No mangá não há ação, bem, há a caça ao javali, mas não é exatamente o que eu chamaria de ação propriamente dita, embora seja o momento mais dinâmico na história. Sendo um slice-of-life nada convencional, não possuindo grandes reviravoltas de enredo nem romances é indicado para aqueles que buscam uma leitura mais reflexiva sobre a vida e o cotidiano, em especial a vida de um carvoeiro.