Kite – A Epítome da Violência.


O ano era 1998, Kite, uma curta série de dois episódios de 26 minutos, apresentava a história trágica de uma jovem assassina manipulada por um policial corrupto, com direito a muito sangue e cenas de sexo explícito. Por alguma razão a obra acabou alçando o status de um clássico cult ao longo do tempo, sendo lançada e relançada ao longos dos anos em versões mais ou menos censuradas, dando origem a um live-action sul-africano obscuro com Samuel L. Jackson e inspirando Quentin Tarantino no desenvolvimento de Kill Bill. Para tentar entender esse fenômeno o Dissidência Pop apresenta o presente texto.

Naturalmente, Kite, ou A Kite, que é o nome oficial, poderia muito bem ter passado despercebido no ocidente, mesmo que tivesse feito relativo sucesso dentro do próprio Japão, como mais um dos inúmeros animes e OVAs (original video animation) violentos e bizarros que saiam nas décadas de 80 e 90. Contudo, talvez pelo aspecto extremamente controverso de Kite, conseguiu chamar a atenção ao redor do mundo, inclusive sendo banido de alguns países, como na Noruega, por alegações de pornografia infantil, afinal de contas, a protagonista é uma adolescente que é violada sexualmente.

Capa do Blu-Ray da versão sem censura lançada nos EUA.

A primeira e maior controvérsia é se a obra é ou não um hentai, que para quem não sabe, são as animações pornográficas japonesas. Embora em muitos lugares e bancos de dados Kite seja considerado um hentai, descordo dessa interpretação. De fato, há cenas de sexo explícito, não somente insinuações, inclusive closes nas genitálias, como qualquer hentai. Contudo, em pouco mais de 52 minutos totais da obra, as cenas de sexo não são tão comuns nem longas, totalizando apenas pouco mais de 3 minutos do total. Ou seja, o enfoque da obra não é no sexo, mas na saga trágica de Sawa. É uma obra de ação, com cenas de sexo, não um pornô. Quem for assistir com o intuito de apreciar uma obra pornográfica, vai se decepcionar.

Além disso, sabemos que os enredos em hentais, e no pornô em geral são geralmente, salvo raras exceções, fracos e curtos, somente pretextos para dar origem ao sexo, o objetivo principal. Kite, pelo contrário, possui um enredo longo e bem elaborado. Outra questão que fortalece o fato dos OVAs não serem um hentai, é que há filmes ocidentais, live-action mesmo, que também são igualmente polêmicos pela quantidade de sexo explícito e violência, como Calígula (1979) e Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975), dirigido pelo grande diretor italiano Pier Paolo Pasolini. Penso que Kite, muito embora seja uma animação japonesa, se encaixaria na mesma categoria destes dois clássicos ocidentais. Dá ainda para fazer comparações à pornochanchada, que foi um gênero de cinema brasileiro, surgido na década de 70, marcado pelo erótico, mas não necessariamente pornográfico.

Por esse caráter polêmico de Kite, penso que um dos objetivos do diretor e criador, Yasuomi Umetsu, foi justamente criar uma junção entre o próprio hentai com um enredo mais longo e bem trabalhado, o que por sinal, foi o que mais deu impulso a popularização da obra. Só para se ter uma ideia, Kite foi lançado e relançado 3 vezes nos EUA. O interessante é que em cada relançamento a censura diminuía. Tanto é que a versão que assisti para fazer esse texto foi a Kite Uncut, versão do diretor, lançada em BluRay em 2017, totalmente sem censura e cenas cortadas. Sabemos que no Japão todas as cenas de sexo são censuradas, com aqueles clássicos quadriculados nos órgãos sexuais. Esse relançamento remasterizado e sem censura, muitos anos depois do lançamento, mostra que a obra teve forças para ainda ser lembrada e relevante. Em 2012, Kite chegou a entrar no rol de animes da Netflix, também nos EUA, mesmo que censurada.

A censura marcou a distribuição de Kite no Japão e ao redor do mundo. Kite virou uma colcha de retalhos. Houve várias versões com a violência reduzida, sem as cenas de sexo, ou somente com algumas cenas de nudez. Naturalmente, busquei assistir a versão mais completa possível e sem censura, queria ver a obra na integralidade, sem mutilações, como o criador a planejou e executou. Uma pergunta que sempre fazem é se Kite funcionaria sem as cenas de sexo? Sim, claro. Elas podem ser descartadas sem prejudicar o entendimento. Contudo, elas também são um fator de “choque” em quem estiver assistindo, junto com a violência absurda, ajudando a fortalecer a situação degradante de Sawa e quão baixo o ser humano pode chegar em se tratando de humilhações e crimes. Por isso, Kite se baseia no exagero.

Com essa imagem de Kite e com as seguintes, é possível observar que a animação utilizou o uso das sombras, criando um contraste entre o claro e o escuro.

De volta sobre a popularidade de Kite, a obra ganhou uma sequência, sem sexo, diga-se de passagem, em 2008, chamada Kite Liberator, que mudou bastante de estilo e, quem sabe, ganha uma análise aqui no Dissidência Pop também. Além dessa sequência, teve um spin-off chamado Mezzo Forte, lançado em 2000, também em dois OVAs e com sexo explícito, acompanhando outra jovem assassina como protagonista. Mezzo Forte chegou a ganhar uma adaptação em anime em 2004, Mezzo DSA, um anime padrão de 13 episódios, só que com violência e sexo mitigados, em virtude de ser exibido na TV.

Outra informação interessante é que Kite recebeu uma adaptação em live-action, confesso que nunca tinha ouvida falar desse filme obscuro antes de escrever esse texto, mas de qualquer forma, comprova a popularidade da franquia. O filme foi lançado em 2014, e por mais bizarro que possa parecer, é uma produção da África do Sul, e contou no elenco com o grande astro Samuel L. Jackson. O filme não fez lá grande sucesso e modificou bastante a história original de Kite, no filme ela é uma aspirante a prostituta que busca matar chefes de carteis de tráfico de mulheres. Até mesmo Quentin Tarantino já disse que recomendou para a atriz Chiaki Kuriyama assistir Kite nas preparações para o seu papel como Gogo Yubari no primeiro filme de Kill Bill, visto que a personagem também era uma jovem assassina colegial.

O estúdio que produziu Kite foi Arms, que é um estúdio bastante especializado em hentais ecchis, ou seja, animes com conteúdo erótico mas sem cenas de sexo. Outro ponto curioso, é que este estúdio também fez Elfen Lied, outro clássico da violência extrema e sangue para todo lado. O diretor e idealizador de Kite foi o já citado Yasuomi Umetsu, parece que essa foi realmente sua criação de maior sucesso, embora tenha passagem como animador chefe no já citado Elfen Lied, além de Akira.

E para contextualizar um pouco mais a minha experiência com Kite, ela não foi de uma série de dois episódios de 26 minutos, pois a versão “sem cortes” que assisti foi editada como um único filme com pouco mais de 50 minutos. E é essa versão que vou analisar neste texto. Contudo, antes de adentrar nos meus apontamentos, vamos contextualizar um pouco o enredo de Kite.

A premissa da animação é relativamente simples. Sawa é uma estudante do colegial e, nas horas vagas, uma assassina profissional. Ela entrou nessa vida depois do homicídio brutal dos seus pais, quando um policial corrupto, Akai, a aliciou com o pretexto de que ela poderia se vingar do assassinato dos seus pais. Akai a manipulou fisicamente e emocionalmente, utilizando da fraqueza de Sawa para utilizá-la como um meio de eliminar os alvos que recebia. Ele para vencer a relutância de Sawa em virar uma assassina a convenceu de que os alvos eram todos criminosos e a escória da sociedade, e que se ela continuasse eliminando esses “lixos”, chegaria aos assassinos de seus pais. Para tornar tudo mais trágico, Sawa recebeu de Akai um par de brincos feitos do sangue de seus falecidos pais.

Ocorre que Sawa não é a única assassina desse esquema de assassinatos de aluguel, quando outro órfão, um adolescente chamado Oburi, é trazido para ajudar Sawa, os dois acabam formando um laço especial, um ajudando o outro em suas feridas emocionais, enquanto sonham com uma vida nova. É isso, tudo gira em torno de Sawa eliminando alguns alvos enquanto se aproxima de dar uma resolução para o problema do homicídio dos seus pais.

Sawa e Oburi, os dois jovens assassinos.

É realmente uma premissa simples, mas ela funciona muito bem, mesclando cenas de ação muito bem dirigidas com os momentos de maior emoção. Sawa é uma heroína trágica. Muito embora ela incorpore o arquétipo da heroína “badass” que mata a sangue frio, ela é uma garota triste que apenas segue em frente em nome de sua vingança e de uma possível esperança, sem deixar de pensar que tempos futuros, longe do crime, possam ser reais. Isso é significativo, pois mesmo tendo que matar a sangue frio e servir de objeto sexual para Akai, ela ainda consegue ter esperança, muito embora o anime não seja bondoso com ela e talvez não corresponda ao seu desejo de um futuro melhor.

Kite é uma animação curta, com menos de uma hora, então é tudo relativamente rápido e dinâmico. Geralmente se pensa que em tão pouco tempo não seria possível retratar muito bem as personagens, mas Kite não obedece essa concepção geral. É possível perfeitamente se importar com Sawa. Eu por exemplo, sentia uma profunda tristeza emanando dela, o que colabora com a suas vida trágica. E além dela, Oburi também possui suas particularidades e é um complemento muito bom para a obra. Akai é o típico vilão, policial corrupto, assassino e estuprador. Foi um azar Sawa ter se encontrado com ele, mas digamos que ele recebeu o que merecia.

Vejam como as cores do vilão Akai apresentam um padrão de cores contrastante, com o uso de vermelho e verde, enquanto o cenário é frio e escuro. Esse padrão de contrastes nas vestimentas é uma das características de Kite.

A direção foi realmente muito eficiente, fazendo lembrar as produções do cinema noir, conseguindo destacar os aspectos psicológicos das personagens, criando uma tensão no expectador, que é fortalecida pela muito competente direção de arte da obra e seu uso da iluminação. A maior parte das cenas de Kite é marcada pela presença de um intrincado jogo de sombras. Essa iluminação de partes ou ângulos de cada personagem tem um poder de transmitir emoções tão forte quanto uma expressão facial. A própria metáfora do contraste é muito precisa, representando a dicotomia interna de Sawa, entre a sua pureza de uma garota que apenas quer levar uma vida normal com a devassidão pela qual foi submetida. Por isso, muitas vezes vemos partes do rosto de Sawa iluminadas e outras escurecidas pelas sombras. Esse aspecto de Sawa que busca fugir dessa vida e retomar à normalidade se reproduz muito bem na seguinte fala: “Um lápis fica melhor na minha mão do que uma arma”.

Outros elementos artísticos reforçam essa dicotomia, como por exemplo, algumas vezes o sangue é representado brilhante, como se fosse uma fonte própria de luz. O contraste das cores também é bastante presente. Geralmente as roupas possuem cores vivas em padrões de contraste, que acabam chamando a atenção com os cenários degradados e soturnos. O que nos faz entrar na questão da ambientação de Kite, que é de um típico Japão cyberpunk da maneira que era retratado nas décadas de 80 e 90, com os seus ambientes sujos e caóticos, onde os avanços tecnológicos são eclipsados pela degeneração social. Nos muros e paredes desse Japão decadente há diversas pichações, que a título de curiosidade, remetem à bandas de rock famosas, como Led Zeppelin, ou palavras aleatórias em inglês, como sexmusic, o que reforça a ideia que Kite se passa em um Japão que perdeu qualquer característica própria, mostrando um dos piores cenários que o nosso atual modelo civilizacional pode alcançar.

Exemplo do caráter contrastante de Kite, que se manifesta de diversas formas.

Outra característica artística digna de nota se faz presente no apartamento de Akai, há diversos quadros emoldurados na parede com fotos reais, não desenhos, de pessoas mortas e mutiladas. Um ambiente anormalmente mórbido, não sei foi exatamente a ideia do diretor em inserir esse elemento, mas se o objetivo fosse demonizar um pouco mais Akai, ele até pode ter sido efetivo. Contudo, mesmo um vilão não teria quadros de gente mutilada, ainda mais quando se é um policial corrupto. Assim, a representação seria algo mais expressionista, como uma alegoria, uma metáfora do ambiente demoníaco que é aquele apartamento. O expressionismo dá o tom da animação em diversos momentos, como nos detalhes das sombras, do colorido e das nuvens de fundo.

A trilha sonora também é um elemento de estranheza, pois em sua maior parte é composta por uma espécie de jazz e outras músicas instrumentais melancólicas, o que não se vê muito em obras de ação e ficções científicas cyberpunk. Mas como Kite é uma obra que explora os contrastes, penso que uma trilha sonora destoante seja mais um destes elementos colocados propositalmente para causar estranheza e desconforto.

Exemplo de quadros com pessoas mutiladas. Elemento artístico presente no apartamento de Akai.

O design dos personagens também merece uma menção honrosa. Impossível assistir Kite sem se dar conta de que é genuinamente um fruto dos anos 90. Sawa, com os seus olhos vermelhos e tristes, que talvez representem o sangue e a violência constante, possui uma retratação muito bonita, além de conseguir captar muito bem aquele nuance entre uma pureza de espírito e uma realidade cruel, como se fosse um anjo fadado a vagar pelo inferno. Essa é Sawa.

O sangue também pode ser considerado um personagem em Kite, ele é abundante e jorra para todos os lados, ou melhor, ele explode, em virtude da curiosa arma utilizada por Sawa, uma pistola tecnológica com uma munição altamente explosiva. Curioso observar como nas cenas de ação, onde há baleados pela arma de Sawa e de Oburi (possui uma do mesmo modelo), a animação se torna mais lenta enquanto esperamos resignados a região de onde o tiro acertou explodir, no maior estilo Hokuto no Ken, com seus clássicos golpes que causam uma explosão nas áreas atingidas do adversário. Kite está na lista de obras mais sangrentas da ficção, ainda bem que foram só pouco mais de 50 minutos, se não teríamos que contabilizar mais algumas piscinas de sangue jorrado.

A animação das cenas de luta também apresentou um resultado bom. Tanto os assassinatos mais furtivos de Sawa como na destruição adoidada que ocorre no meio da obra, com a destruição de veículos, paredes, de pedações de estrada, tudo desabando freneticamente em quedas livres alucinantes. Essa foi uma cena de tirar o fôlego, não fazendo feio aos mais famosos filmes de ação. As cenas de sexo são lamentáveis como em quase todo hentai, na minha opinião é raro ver uma animação de sexo bem feito. 

Interessante quando se nota que a mensagem central de Kite é sobre o ódio. Sawa deseja se vingar pelos seus pais, cai nas armadilhas perniciosas de Akai e vira sua escrava sexual e sua bonequinha particular feita para matar. Há um tom de esperança mesmo na tragédia, Sawa quer sair do lixo de vida que possui e recomeçar. Contudo, na maneira que Kite entrega o seu conteúdo vemos que a esperança nem sempre pode quebrar o círculo da violência. A obra na verdade é desesperançosa e joga na cara a realidade da vida em que for assistir. Sawa é a heroína trágica perfeita.

Destaque para o estilo expressionista que por vezes Kite apesenta. Notem o detalhe da textura da fumaça.

Por isso tudo, penso que Kite pode sim ser considerado um clássico cult de respeito. Não que essa denominação sirva de algo, mas a sua relativa fama não veio por acaso. Não discordo que os aspectos polêmicos como a sexualidade extremada, ainda mais envolvendo uma colegial, foi o que mais chamou a atenção do público, conjuntamente com uma grande dose de violência explícita. Contudo, todos sabemos que mais forte que sejam as cenas de violência, mesmo que haja massacres gigantescos e torturas infindáveis, o teor sexual sempre terá preponderância no objetivo de chocar, e para chocar quem estiver assistindo, Kite se mostrou super eficiente.

Obviamente não se recomendaria essa animação para qualquer um, também penso que para os mais fracos, as versões censuradas e sem as cenas de sexo sejam uma melhor escolha, embora eu pessoalmente não goste dessa opção, pois não foi dessa forma que Kite foi idealizado, seria como ver de forma incompleta, mas este é meu ponto de vista. Entendo que as cenas de estupro são muito pesadas e nem todo mundo conseguiria assistir, ou mesmo que assistisse ficaria indignado. As cenas de sexo ao estilo hentai estão ali e temos que lidar com isso, é uma experiência bastante singular. Se pode gostar ou não de Kite, mas não dá para dizer que não foi uma obra que ousou se arriscar. E vale aquele velho ditado, “falem bem ou falem mal, mas falem de mim”.

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