O que era para ser um projeto inovador e ousado, infelizmente não vingou e rendeu apenas dois episódios até ser cancelado. Estou falando de Twilight Q, uma série lançada em 1987 que teve como inspiração o renomado e mundialmente conhecido seriado de ficção científica e fantasia dos EUA dos anos 50/60, The Twilight Zone. Mesmo prematuramente cancelado, teve grandes nomes envolvidos em sua produção, como Mamoru Oshii. E é justamente sobre estes dois episódios que vou escrever um pouco sobre.
Vamos primeiro à contextualização da obra. Como já dito no parágrafo introdutório, Twilight Q se divide nos únicos dois episódios de mais ou menos trinta minutos. Assim como a série americana que inspirou a obra, cada episódio possui um enredo único que se resolve no próprio episódio. Além disso, possuem equipes totalmente distintas, mostrando um pouco do trabalho de nomes que viriam a se tornar importantes na indústria dos animes.
O primeiro episódio, chamado Reflection, Toki no Musubime ou Time Knot: Reflection, que é seu título em inglês, propõe um enredo intrincado sobre saltos temporais. O diretor desta primeira parte foi Tomomi Mochizuki, que na época era uma promessa no mundo dos animes. Infelizmente, Mochizuki acabou não conseguindo “estourar” na indústria como Mamoru Oshii, mas mesmo assim possui uma longa e crescente carreira com diversos animes e filmes, alguns bons e outros nem tanto. Uma obra sua que gosto muito é Yohohama Kaidaishi Kikou: Quiet Country Cafe, que já ganhou texto no Dissidência Pop.
Kazunori Ito foi o criador original e roteirista do primeiro episódio. Para quem não conhece o sujeito, ele escreveu o roteiro para o filme Ghost in the Shell, além de outros grandes trabalhos em obras como Patlabor e Nausicaä do Vale do Vento. O design dos personagens ficou a cargo de Akemi Takada, outro grande nome do universo dos animes, ela elaborou o design de diversas obras, tais como: Patlabor e Urusei Yatsura. Tem ainda bastante gente talentosa na produção, mas ficaria muito grande o texto caso escrevesse um pouco sobre cada um.
A segunda parte, ou segundo episódio, como preferir, se chama File 538, Meikyū Bukken Fairu Go San Hachi, que recebeu o título em inglês como Mystery Article File 538. Esse segundo episódio é um caso muito especial, idealizado por Mamoru Oshii, que foi o seu diretor e roteirista, trata-se de uma obra preponderantemente autoral, sem dúvidas uma amostra do gênio de Oshii, mas nem um pouco comercial. Penso que foi por culpa do segundo episódio que a série foi cancelada. Adentrarei mais neste assunto logo a frente.
Além de Mamoru Oshii na direção e roteiro, quero destacar o designer dos personagens, Katsuya Kondou, mais famoso por ser o responsável pela consolidação do estilo do estúdio Ghibli, tendo trabalhado na maioria dos filmes do estúdio, seja como designer de personagens ou animador, tais como: Princesa Monoke, Ponyo, O Serviço de Entregas da Kiki, entre muitas outros. O seu estilo é tão característico que ao ver uma obra onde trabalhou fora do estúdio Ghibli, é fácil se confundir e pensar que é mesmo algum anime/filme do estúdio. Como File 538 é de 1987, bem antes dele começar a trabalhar no estúdio, ainda não é possível perceber o seu estilo que viria a se consolidar.
Antes de me aprofundar em cada episódio, gostaria de escrever um pouco sobre as inspirações e temas de Twilight Q. Como já havia dito no primeiro parágrafo, a obra teve como inspiração o seriado The Twilight Zone. Esta série foi uma das mais marcantes da história da TV. Criada por Rod Serling, teve 5 temporadas, indo ao ar de 1959 a 1964. A série consistia de episódios inspirados em assuntos variados, tais como: ficção científica, paranormalidade, futurismo, fantasia e etc. No geral, o seriado versas sobre situações estranhas na vida dos protagonistas. Todos os episódios eram independentes um do outro.
No Brasil ela ganhou o título de Além da Imaginação. A importância da série é tão grande que ganhou diversos remakes ao longo dos anos (1985, 2002 e 2019). Naturalmente, nenhuma suplantou a original. Esse tipo de série de ficção científica episódica, também inspirou seriados modernos, como no caso de Black Mirror. Eu assisti um pouco de Twilight Zone, os 10 ou 12 primeiros episódios, e confirmo que a fama da obra é justificada.
Claramente, muitos temas e ideias estão completamente datados. Na época ainda nem se tinha pisado na Lua. Mas mesmo assim, é um entretenimento bastante divertido, pois todo episódio tinha uma reviravolta criativa. Diante do sucesso de Twilight Zone, não é de se estranhar que produtores japoneses quisessem seguir uma linha semelhante, como ocorreu no caso de Twilight Q. Infelizmente o projeto não deu certo. Mas mesmo assim, rendeu dois episódios interessantes e que merecem ser analisados. Então vamos ao que verdadeiramente interessa, uma análise que cada episódios especificamente. Estejam cientes desde já, que é possível que ocorra um ou outro spoiler.
Comecemos então pelo episódio de número 1, Reflection. Essa primeira parte segue a história de Mayumi, uma garota que está passando as férias com uma amiga. Enquanto nadava no mar, ela acabou encontrando uma câmera fotográfica. Como Mayumi é bastante curiosa, ficou intrigada com a câmera, pensando que história ela contaria. Desta forma, ela leva o filme para revelar e descobre que a única foto que tem na câmera é de uma garota abraçada com um homem. Acontece que a garota que aparece na foto é justamente Mayumi um pouco mais velha com um homem que ela não conhece! Além disso, o modelo da câmera que encontrou na água seria apenas lançado dois anos no futuro. Assim, Mayumi percebe que há algo de estranho acontecendo (sério?).
Com esta sinopse, o tema já ficou bem delineado, trata-se de uma obra onde há uma abordagem sobre um situação de distúrbio temporal. Não que Mayumi quisesse se envolver numa complexa trama de viagens temporais, mas ela simplesmente caiu de cabeça em estranhos eventos. O achado da câmera não foi o único evento misterioso, pois veio acompanhado com uma maré vermelha anormal lançando gases venenosos e uma estranha árvore que atrai Mayumi e a lança para saltos temporais no futuro e no passado.
É uma trama divertida e complexa na medida para um episódio único não essencialmente muito elaborado. Reflection é interessante e fácil para acompanhar, mesmo que tenha alguns elementos que firam soltos no ar sem conexão com a rede de eventos principais. Qual o motivo da Mayumi voltar ao passado e verificar a ocorrência de uma rebelião de militares na década de 30? É interessante, mas não se encaixa com o enredo pessoal de Mayumi. Mesmo assim, a história propõe alguns plot twists que realmente te mantém interessado para saber o que vai acontecer. O final é fechado, mas deixa muita coisa nas mãos de quem estiver assistindo interpretar.
Para ser sincero, tem um outro problema que pode passar despercebido aos mais desatentos. O enredo não tem um tema central bem definido com uma mensagem de desenvolvimento da Mayumi. O que a protagonista leva consigo da experiência de saltos temporais? Eu não sei. Mas este é um problema acessório, pois a “curta-metragem” por si só preenche esta lacuna com vários temas interessantes, mesclando desastres ecológicos e análise de eventos históricos, mesmo que estes elementos contribuam praticamente nada para o resultado final.
Mesmo com todos estes “probleminhas”, Reflection possui externamente uma maquiagem tão bem feita, com um enredo bem escrito e uma animação bonita do final dos anos 80. É realmente difícil desenvolver um enredo bem feito sobre saltos temporais, mas Reflection entrega um resultado justo e divertido, perfeito para matar o tempo com sua curta duração. No fim das contas, não é aquilo tudo, mas é bem legal.
Peço perdão ao primeiro episódio, mas File 538 é o verdadeiro diferencial de Twilight Q. Ao mesmo tempo que é a danação da série, se tornou a sua salvação por dar a obra um status cult. Além disso, tenho que prestar homenagens ao gênio de Mamoru Oshii, a mente incompreendida pelas grandes massas na época do lançamento de File 538. A obra se trata de um “anime documentário”, repleto de cenas estáticas e escuras, além de muitas falas, muitas mesmo! Até fica difícil de acompanhar. É uma animação totalmente experimental e fora dos padrões comerciais, mas esperar o que da mesma mente que criou Angel’s Egg?
Devido ao aspecto conceitual de File 538, a obra é um “teste de paciência” para quem estiver assistindo. Recomendo não ver com sono. Além do andamento lento, temos um diálogo muito pesado pontuado com cenas absurdas e pouco entendíveis. Ou seja, tem que assistir File 538 com o máximo de atenção, e mesmo assim, as chances de ficar boiando ou cochilando são grandes. Uma peça surrealista no seu auge. Mas qual o motivo de uma animação tão difícil de ver ser considerada boa? O esforço valeria a pena?
O enredo é o seguinte: Um verão fortíssimo assola o Japão. Além disso, aeronaves estão desaparecendo no mundo inteiro, sendo transformadas em carpas japonesas, daquelas multi-coloridas, geralmente com tons de branco, preto e laranja, muito vistas em lagos ornamentais. Somos informados que a mídia e as autoridades ficam abismadas com o ocorrido e não sabem explicar o que acontece. File 538 avança no sentido destes eventos anormais acontecerem até serem normalizados como um fato como qualquer outro. As pessoas simplesmente não se interessam mais pelo sumiço.
E realmente a transformação ocorre e é real, o OVA começa com uma cena belíssima de um avião lentamente se transformando no peixe e sair nadando pelos céus. Bem, este é o pano de fundo. Algo misterioso, mas que aparentemente nada tem a ver com o enredo principal, se é que se pode chamar de enredo o que temos aqui. O protagonista da história é um detetive particular. Escutamos o relato da sua vida triste no maior estilo dos filmes noir antigos, com direito a sobretudo, chapéu e excesso de sombras em ambientes degradados.
Este detetive é um fracassado, não consegue nenhum cliente e está prestes a morrer de fome. Ele finalmente consegue um trabalho, estranho, mas um trabalho. Observar um homem e sua filha. O homem é um cara meio desleixado e acima do peso, a menina é uma criança de uns dois ou três anos, com os cabelos cobrindo o rosto e utilizando um grande capacete de metal, além, de claro, não utilizar calças nem fralda, estando sempre com a bunda à mostra.
O local é um conjunto habitacional totalmente abandonado e envolvido em brigas judiciais e políticas. Certo dia, o detetive consegue entrar no apartamento e não encontra nenhum homem nele, só a menina e uma carpa japonesa fora d’água. Na sala há uma espécie de máquina de escrever, o detetive consegue imprimir uns documentos, um relatório destinado especificamente ao detetive, que seria o sucessor, já há muito aguardado, do homem que estava no apartamento.
O episódio sofre uma virada e se torna ainda mais surreal e multifacetado. O sonho e a realidade se mesclam, sendo impossível distinguir o que é real e o que é apenas ilusão. O protagonista está sonhando? Nós estamos sonhando? Há diferença entre o real e o irreal? Provavelmente a intenção de Mamoru Oshii é mostrar que substancialmente não há diferença entre a ilusão e a realidade, ainda mais no campo da ficção, tudo é basicamente a mesma coisa, fruto da nossa interpretação mediante o uso de nossos sentidos.
De certa forma entramos em um labirinto kafkaniano, desesperador, traumático e claustrofóbico. O calor do apartamento e a sua semi-escuridão ajudam a criar um ambiente desolador e desagradável, o suor é sempre constante, do começo ao fim, dá para até sentir o calor de uma maneira psicológica. Além disso, poucas coisas acontecem, só imagens aleatórias e muitas falas, um sentimento de pressa se instala no espectador. Mais do que um anime, penso que File 538 tenha que ser interpretado puro e simplesmente como um exemplo de arte moderna conceitual, um tanto desagradável, mas importante e interessante justamente por despertar todas estas sensações. Não é de se estranhar que não tenha feito sucesso, definitivamente não é para todos, depende de uma afinada capacidade de interpretar arte fora dos padrões habituais.
File 538 é sem dúvidas um dos trabalhos mais únicos e diferenciados de Mamoru Oshii. Nota-se que foi produzido logo após o término de Urusei Yatsura, um anime mais tradicional. Uma curiosidade, é sabido que a história deste detetive foi inspirada no próprio pai de Oshii, também um detetive particular. Como no enredo, Oshii também vivenciou períodos de pobreza devido ao trabalho instável de seu pai. Outra coisa interessante é que o detetive de File 538 é exatamente o mesmo personagem da série Patlabor, chamado detetive Matsui.
A resolução de File 538 não poderia ser melhor. Se já não houvesse uma imersão do espectador numa dimensão onírica que transita entre o real e o ilusório, o gran finale apenas joga mais lenha na fogueira ao suscitar a dúvida, de maneira bem humorada, sobre a realidade do que foi narrado, podendo apenas ser um devaneio de um escritor fracassado. E quando pensamos que este era um desfecho curioso, na última cena os polos são novamente invertidos, questionando mais uma vez a natureza do que foi apresentado. No fim das contas, é uma grande brincadeira conosco. Mais do que uma animação japonesa, é um exercício de atenção, pois prega uma peça depois da outra.
Twilight Q é um par bem estranho e nada usual de OVAs. Tanto Reflection como File 538 possuem suas próprias características de diferenciais. Contudo, mesmo que a primeira parte possa ser considerado uma boa obra, ela não passa disso, o destaque é mesmo File 538, que é sem sombra de dúvidas umas das mais importantes animações experimentais do Japão, e uma amostra clara da genialidade de Mamoru Oshii.