Como nunca é demais ler um mangá absurdamente bizarro, resolvi analisar desta vez o mangá de comédia e ficção científica Mikake no Nijuusei, de autoria da mangaká Tsubana, sobre uma garota que acaba entrando em um experimento maluco e é dividida em duas, e ela, ou elas, precisam viver em harmonia, sem saber qual delas é a real. Essa é a receita ideal para um mangá surreal.
Mikake no Nijuusei é um mangá de um único volume (oneshot), composto por sete capítulos publicados de 25 de dezembro de 2009 até 10 de junho de 2011 na revista Kiss, publicação voltada à demografia josei (público feminino adulto). Nesta revista foram publicados mangás como Nodame Cantabile e Kuragehime, os quais ganharam animes muito bem comentados. Como dito no primeiro parágrafo, o mangá é de autoria da mangaká conhecida apenas como Tsubana. Desta autora já foi publicado no Dissidência Pop uma análise da obra Babel no Toshokan, a qual recomendo muito a leitura para quem gosta de obras que abordem de forma divertida e maluca temas filosóficos e científicos.
Aprofundando um pouco mais na sinopse de Mikake no Nijuusei, a protagonista se chama Ayako, uma estudante normal do colegial que é “capturada” e acaba participando de um experimento de um enigmático gênio cientista. Com este experimento, ela é dividida em duas. Ninguém poderia apontar qual é qual, pois ambas são absolutamente iguais e possuem as mesmas memórias. No meio dessa confusão, elas são obrigadas a compartilhar a vida uma da outra, tanto em casa como no colégio.
Diante desta situação de duplicação, se inicia um regime de revezamento que acaba gerando um bocado de maus intendidos e confusões. E no meio de tudo isto, temos viagens temporais e toda uma questão dramática sobre a morte se sua irmã que acabou morrendo de forma repentina um tempo atrás. Além desse roteiro doido permeado de comédia, há toda uma discussão sobre os sentimentos e traumas que ela lembra e outros que esqueceu.
Pode parecer uma obra que usa e abusa de clichês, mas originalidade de uma narrativa não é o que faz ela única. Seria impossível exigir que um autor abordasse um tema que nunca houvesse sido explorado antes, para que assim fosse uma obra “única” e “memorável”. Bem como, já estamos numa época em que é quase impossível soar 100% original, visto a quantidade enorme de coisas que já foram criadas e publicadas. O diferencial é como se trabalha com todo o material que o mundo já nos reservou.
Ou seja, o diferencial de uma obra é justamente uma combinação de diversos fatores que a faz memorável ou não. Muitas vezes, explorar um tema já usado exaustivamente mas de uma maneira completamente diversa ou abordando uma nova perspectiva seja o que realmente faz a diferença. Mikake no Nijuusei é um destes exemplos onde podemos ver uma amostra de criatividade oriunda de um tema já muito utilizado, no caso, a viagem temporal.
Falando especificamente da questão de viagem temporal, desde o advento da ficção científica a temática do tempo é um assunto que já despertava o interesse, como no romance A Máquina do Tempo, de H.G. Wells (1895). Depois disso, o Século XX foi abundante em narrativas com essa temática, e em todas as mídias, sejam livros, filmes, seriados, animes, etc. E dentre dessa temática, temos um elemento muito comum e que nem sempre está presente, o da máquina do tempo. Hoje em dia pode parecer meio cafona o conceito de uma máquina do tempo propriamente dita, mas como Mikake no Nijuusei leva as coisas com tons de comédia, ficou um resultado interessante.
Dentro do universo dos animes, lembrei de um específico quando terminei de ler Mikake no Nijuusei, qual seja, Suzumiya Haruhi no Yuutsu. Esse anime foi inspirado em uma série de light novel, mas o anime foi o que acabou popularizando ela. Nessa obra, há uma exploração constante da teoria do tempo e como os personagens lidam com diversas linhas temporais alternativas. Mas a similaridade das duas obras não para por aí, pois ambas compartilham o uso da comédia, sem deixarem de ser sérias quado exigido. Ou seja, um misto de comédia e ficção científica, sem retirar momentos dramáticos.
Tem um problema que é comum em todas as obras de ficção científica que abordem viajem no tempo, a questão do paradoxo temporal. H. P. Lovecraft já dizia que na sua época a maioria deste tipo de obras perdiam em qualidade por não fazerem sentido e saberem lidar com este paradoxo. Algo como “se eu ir para o passado e matar o meu pai, eu vou continuar a existir no futuro? Ou eu vou simplesmente desaparecer?”. Este é um questionamento rotineiro.
Com a popularização das teorias da física quântica, tivemos um apoderamento por parte da ficção. Dentro da mecânica quântica, há a possibilidade que existam diversos universos paralelos criados a partir de cada possibilidade não utilizada quando realizamos uma escolha. Isso abre margem para que existam infinitas realidades distintas. Isto facilita a resolução do paradoxo temporal e ajudou diversos autores, pois, o que a personagem fizesse no passado se daria em outra linha temporal distinta e que não afetaria o mundo de onde ela saiu. Claro que isto é uma generalização e simplificação simplesmente absurdas, e muitos outros problemas científicos ainda existem e devem ser trabalhados e resolvidos por cada autor interessado neste tema.
No caso de Mikake no Nijuusei, a obra nunca tentou fugir da questão do paradoxo temporal, pois até mesmo a questão da viajem no tempo surge de forma secundária, depois de entendermos um pouco a questão da duplicação dos corpos e a natureza da cópia. Desde o começo quando o mecanismo de viagem temporal é utilizado já são mencionadas todas as questões relativas aos problemas típicos de uma viajem deste gênero.
Mas temos uma questão importante aqui. O mangá em nenhum momento tentou ser levado a sério, mesmo que abordasse questões científicas e filosóficas pertinentes. Não é explicada a natureza por detrás do experimento da máquina de duplicação que permite as viagens temporais. Tanto é que o cientista é um autoproclamado gênio maluco e o método usado para “capturar” a nossa protagonista é o mais cômico possível, uma “isca” feita com uma nota de 10.000,00 ienes.
Ou seja, desde o primeiro capítulo a obra pede para não ser levada muito à sério. Mesmo que pareça algo bastante idiota, é justamente essa irreverência sobre conceitos da mecânica quântica e viagens temporais que fazem a obra ser surpreendentemente divertida. Uma leitura leve, mas que não deixa de ser instigante.
Muito embora temos todas estas discussões filosóficas sobre o tempo e a realidade, Mikake no Nijuusei tem algo diferenciado. Vislumbra-se que mais do que tentar explicar como esses fatos ocorrem, o mangá foca justamente em como uma duplicação de corpos ou uma viagem no tempo pode alterar as relações humanas e como isso afeta a vida pessoal da protagonista. Além de discutir de maneira interessante como se dá a percepção pessoal do passado, presente e futuro.
E mesmo que acabe parecendo mais uma ficção fantástica do que científica, ainda assim possui os seus méritos pelos fundamentos acima descritos. Mikake no Nijuusei consegue soar tão sem sentido que ninguém vai reclamar ou exigir uma explicação sobre os conceitos abordados. Claro que esse “soar sem sentido” é em virtude da descontração e comédia aplicados, não se tratando de uma falha ou incapacidade da autora.
O mangá que mais posso usar para efeitos de comparação com Mikake no Nijuusei é justamente outro mangá da mesma autora, Babel no Toshokan. Comparando as duas obras, Mikake no Nijuusei parece muito mais experimental e despretensiosa. Me parece que Babel no Toshokan é a evolução natural do trabalho da autora, tanto é que foi serializada logo após o término de Mikake no Nijuusei. Em Babel ainda temos toda uma questão tremendamente nonsense, mas a construção dos personagens e enredo, bem como o próprio traço, parecem mais maduros.
No fim das contas, trata-se de um drama, curto e de rápida leitura, o qual possui uma roupagem amalucada que mistura diversos conceitos científicos e comédia na medida certa. Presumo que este mangá possa interessar os mais curiosos sobre mangás diferentes e com temas e abordagens curiosos. Assim sendo, termino por aqui o meu texto e até uma próxima.
E para quem se interessar, já analisei no Dissidência Pop diversos mangás que seguem essa linha do “absurdo’ se eu puder chamar dessa forma. Além de Babel no Toshokan, poderia citar os seguintes textos sobre obras surrealistas: Daidai wa, Hantoumei ni Nidone Suru e Sore wa Tada no Senpai no Chinko de Youichi Abe. Também temos Getenrou de Masakazu Ishiguro. Além destes textos, eu poderia citar os de Shintaro Kago, o “rei” do absurdo, embora suas obras possam ter um conteúdo mais pesado diante sua vertente baseada no ero guro: Fraction, Anamorphosis no Meijuu, Harem End e Super-Conductive Brains Parataxis.