Sundome – Quando o erótico se encontra com o trágico e o cômico.

Sundome significa “parar logo antes”, no caso do mangá sobre o qual escrevo, refere-se diretamente a ser interrompido momentos antes de ejacular. O título diz bastante sobre o que esperamos em Sundome. É raro eu escrever sobre um mangá tão “sexual” como este, mas definitivamente é uma obra que merece a sua atenção, tanto pelo forte aprofundamento psicológico das personagens envolvidas como também pelo método narrativo do autor, Kazuto Okada, que entregou ao público algo realmente perturbador.

Sundome não é um mangá que mostra de forma explícita cenas de sexo, não é um hentai, ele pode ser considerado um ecchi que são aqueles mangás onde há fortes elementos sexuais mas sem cenas de sexo explícito, se há sexo, o que por vezes ocorre, é apenas insinuado ou pelo menos não são mostrados os órgãos sexuais diretamente, a não ser seios, estes por vezes podem aparecer em um mangá ecchi. No caso de Sundome, este é um ecchi com bastante conteúdo sexual, sendo que a linha que o separa de um hentai, é realmente bem tênue. Mas não foi isso que despertou o meu interesse nesse mangá. 

Quanto as informações básicas, Sundome é uma série de mangá japonesa escrita e ilustrada por Kazuto Okada. Esse autor não é muito famoso, mas possui vários mangás de relativo sucesso publicados no Japão, além de Sundome, podemos citar Ibitsu. A maioria dos seus mangás foram publicados na revista Young Champion Magazine, e Sundome não foi diferente. Essa revista é a mesma onde foi publicado o mangá de Battle Royale, Wolf Guy e Alien 9. A maioria dos seus mangás são ecchi, portanto esperem bastante sensualidade, mas não se resume a isso. Por exemplo, no caso de Sundome, esta obra consegue conjugar os elementos sérios e dramáticos com outros de pura comédia.

Uma das capas da adaptação live action de Sundome.

Sundome possui uma duração razoável, é composto por oito volumes e 76 capítulos. Sundome foi publicado de 20 de novembro de 2006 até 20 de novembro de 2009. O mangá fez sucesso suficiente para conseguir ganhar uma adaptação em live action. Na verdade, Sundome foi adaptado em quatro filmes, dirigidos por Daigo Udagawa, sendo lançados de 2007 até 2009.

A sinopse de Sundome pode parecer um pouco banal, mas o mangá esconde mais do que uma premissa bizarra. O enredo segue Hideo Aiba, o típico otaku adolescente caricaturizado, virgem, se masturba direto, e todo mundo pensa que preferes mulheres “2D”, ou seja, meninas de animes e mangás. Além disso, ele é apático e ninguém dá muita bola pra ele, nem ele mesmo. Hideo faz parte de um clube, o clube Romano, composto por outros otakus esquisitos. O clube tem como foco buscar coisas sobrenaturais, como fantasmas e OVNIS, no melhor estilo Suzumiya Haruhi no Yūutsu.

A história de Hideo muda quando uma garota transferida, Kurumi Sahana resolve entrar no clube que ele faz parte, depois de achar um livro sobre masturbação na sala do clube ela consegue uma aproximação nada usual com o nosso protagonista. Surge daí uma relação baseada em um quid pro quo, termo em latim que faz referência a uma troca de favores, por exemplo “eu te dou algo e você dá algo em troca”.

O casal de protagonistas de Sundome.

Kurumi é uma menina quieta, mas bem direta e com pouca vergonha quando quer algo, por isso desde logo abre o jogo com o protagonista Hideo. Ela afirma que nunca, em hipótese alguma, nem que ele fosse o último homem da Terra, faria sexo com ele, mas que gostaria de vê-lo se masturbar como descrito no livro. Se ele aceitasse isso, Kurumi lhe daria recompensas eróticas, mas nunca sexo. Hideo, como um jovem que nunca teve uma namorada, acaba aceitando a situação, dando origem a uma relação pra lá de perturbadora, mas que não deixa de ter seus momentos tocantes.

Kurumi consegue total controle sobre os atos e vida de Hideo, inclusive o impondo a não se masturbar até ela lhe dar permissão, em troca de uma calcinha usada, uma pequena mordida em algum lugar ou até mesmo algumas gotas de urina. Não quero assustar quem estiver lendo, mas isso é apenas um pequeno exemplo da estranha relação que se forma entre o casal principal. 

Antes de adentrar sobre essa relação das personagens, importante dar um panorama nos outros personagens e na ambientação de Sundome. O clube Romano que eles fazem parte é formado exclusivamente por otakus que ao entrarem no clube fazem um pacto de não transarem até o fim dos estudos. Parece que se conseguirem ficar sem transar eles recebem uma ajuda nas suas carreiras depois de se formarem, vinda de ex-membros do grupo, os quais hoje são todos homens bem sucedidos. No fim, é uma espécie de sociedade secreta muito bizarra. Inclusive eles impõe testes aos membros, além de colocar mulheres, chamadas de assassinas, para seduzir os jovens e fazê-los serem expulsos do clube. Esse clube Romano é algo realmente bem bobo, mas serve para o alívio cômico da série.

O próprio mangá consegue uma separação entre momentos descontraídos e de comédia, com os sérios, praticamente consistindo na relação entre Hideo e Kurumi. Quanto ao elenco do clube, podemos destacar o ex-presidente, que deixou o cargo por ter feito sexo, ele é fascinado por sexo anal, fazendo sempre piadas sobre o assunto, inclusive brincando com os outros em virtude de seu fetiche. Temos ainda o Tatsuya Yatsu, ele sempre anda com uma boneca chama Aimu, que ele idolatra como uma deusa. É o mais tímido do grupo e o mais covarde, sempre fugindo quando aparece algo assustador.

Não posso deixar de mencionar Katsu Toshitsuku, um otaku que usa grandes óculos de fundo de garrafa e sofre de calvície mesmo sendo apenas um adolescente. E não menos importante, temos Kyouko, uma garota de seios grandes e gyaru, que é basicamente um estilo em que as garotas utilizam o cabelo descolorido e bronzeados artificiais além de uma maneira de agir mais frívola e insinuante. Kyouko não chega a ser uma participante oficial do grupo, mas manifesta interesse em temas do ocultismo e gosta do clube para ler mangá, além de ser o único lugar que ela se sente bem e não é apenas um objeto sexual, como costumava ser com os alunos mais descolados do colégio. Eventualmente surge uma relação muito bacana dela com o Katsu.

Basicamente, os capítulos de Sundome seguem uma fórmula bem visível e até mesmo previsível (essa pode ser uma crítica ao mangá). Sempre há uma parte de comédia, consistindo basicamente em piadas feitas no clube Romano, ou de passeios de campo, como em ruínas mal assombradas, templos, hospitais abandonados, etc. Contudo, sempre há um espaço em cada capítulo para que Hideo e Kurumi acabem ficando sozinhos, seja na escola, nos lugares para quais viajam ou até mesmo no pequeno apartamento dela. São nessas partes onde se desenrola a desconfortável, e por vezes terna, relação de ambos. É até objeto de piada no mangá o fato dos dois sempre acabarem sozinhos, mesmo que ninguém acredite que eles tenham alguma coisa.

A severa condição de Kurumi.

Um dos méritos do autor é que a arte se condiciona ao momento dentro do mangá. As partes de comédia possuem um design de personagens cartunesco. Enquanto isso, nos momentos mais sérios, o design se torna mais realista dentro do estilo comum de mangá. Destaque para alguns momentos de extrema tensão onde o autor se utilizou de grandes sombreamentos e altos contrastes para conferir uma aura de intensidade.

Penso então ser o momento para adentrar mais profundamente nos méritos de Sundome, e quais os motivos que me fizeram apreciar um mangá aparentemente tão doentio e perturbador. A partir desse ponto podem ocorrer alguns spoilers relevantes, pois é impossível adentrar nas questões psicológicas das personagens sem mencionar uma coisa ou outra do enredo. Então, como estão todos avisados, vamos prosseguir.

Hideo se torna basicamente um capacho de Kurumi, enquanto ele aceita a situação por poder tirar uma casquinha e outra dela, embora não haja penetração entre eles, aparentemente abnega de todo amor próprio. Hideo é o que pejorativamente seria chamado nos dias atuais de “gado” ou até mesmo “escravoceta”, que seriam aqueles indivíduos que fariam tudo por alguma mulher, ou mulheres, em troca de migalhas de atenção. Aparentemente é isso mesmo que ocorre com Hideo, mas as coisas não se mostram tão simples assim.

Hideo aproveita muito bem a sua condição, é até mesmo engraçado que em quase todos os encontros entre os dois ele acabe ficando com o seu pênis ereto, o que é normal com adolescentes, ainda mais quando estão na fase de descobrir os assuntos da sexualidade. Kurumi se diverte com isso e se aproveita da fácil excitação do rapaz. Então, em uma rápida olhada, mesmo denegrindo o amor próprio de Hideo, ambos apreciam bastante a situação. Contudo, Kurumi possui alguns motivos mais profundos para agir de tal forma.

Embora Hideo seja lento para perceber as coisas, como qualquer protagonista adolescente (ou talvez ele simplesmente não quisesse encarar a realidade), o autor deixa logo de cara no mangá que há algo de errado com a Kurumi. Ao longo dos oito volumes pouca coisa é dita a esse respeito, mas os sinais são constantes e de fácil interpretação. Idas constantes ao hospital, várias faltas, Kurumi sempre passando mal, marcas de injeção, um homem misterioso que sempre vem visitá-la, etc. É óbvio que ela estava doente, e que não parecia uma doença comum, mas algo grave.

E de fato, Kurumi estava morrendo. O autor não diz qual a doença que fazia ela padecer, mas os sinais parecem nos levar a uma conclusão de que seja algum tipo de câncer terminal. Dizer qual era a doença é irrelevante, e não diminui a qualidade do mangá. Levando essa situação em consideração. Porque Kurumi resolveu participar desses jogos sexuais com Hideo? Diante deste questionamento, muitas hipóteses podem ser desenvolvidas.

Exemplo de momento cômico, evidenciado pelo design cartunesco das personagens.

 

1º – Kurumi não queria se apegar a ninguém pois sabia que seus dias estavam contados. Por isso que deixou logo de cara que nunca, em hipótese alguma, faria sexo com Hideo nem o namoraria. Contudo, como sendo apenas uma adolescente de 15 anos, se equivocou ao pensar que o sexo com penetração e uma relação formal seriam os únicos requisitos para se apegar a alguém. Creio que faltou compreensão de ambos sobre o fato de que fizeram sexo sempre, quase todos os dias, pois o sexo vai muito além da mera penetração. Diante disto, foi impossível eles não se apegarem fortemente ao longo dos oito volumes. Ainda mais, Kurumi nunca deixou Aiba chegar perto da verdade sobre sua situação até os momentos finais da obra. Na maior parte do tempo, quando ele tentava entrar no assunto, Kurumi sempre se livrava da situação mudando de assunto ou provocando o rapaz.

2º – Kurumi, sabendo que seus dias estavam contados e sendo uma adolescente na flor da idade, não queria deixar de aproveitar e se divertir, sendo que conhecer Hideo lhe deu uma nova perspectiva da vida. Kurumi antes morava em um orfanato e depois sozinha em um pequeno apartamento, uma vida extremamente solitária. Conhecer Hideo preencheu esse vazio, pois o rapaz se mostrava extremamente devotado à ela, capaz de fazer tudo para agradá-la e protegê-la. Para alguém que nunca experimentou um sentimento de proteção e companheirismo, a relação dos dois devia ser algo muito especial. Talvez ela não quisesse progredir na relação, namorar e fazer sexo normalmente com Hideo por medo de perder o que havia conquistado, pois talvez tivesse receio que ele a abandonaria depois de conseguir o que mais desejava. Essa é apenas uma possibilidade.

Exemplo de alto contraste para evidenciar uma situação psicologicamente tensa.

Realmente penso ser esses os motivos principais para esse tipo de relação ter perdurado, não consigo vislumbrar intenções ruins de nenhum dos lados. Claro que isso ameniza o aspecto bizarro e inconveniente da relação, mas não deixa de ser constrangedor para quem lê. Contudo, dá para buscar coisas boas mesmo de onde menos se espera. Para Hideo, conhecer Kurumi foi a melhor coisa que lhe aconteceu, permitiu um conhecimento maior de sua sexualidade e de seu próprio corpo.

Além disso, mesmo sendo uma situação insólita, ele amadureceu, deixando de ser um rapaz inseguro e introvertido para alguém que busca os seus sonhos. Hideo se dedicou melhor aos estudos e se tornou mais confiante. Até fisicamente Hideo melhorou ao longo do mangá, mesmo que tenha sido uma motivação bem engraçada. Como Hideo muitas vezes era proibido de se masturbar, começou a fazer exercícios todas as noites, ficando com uma forma física exemplar. Até mesmo resolveu arranjar um emprego e conseguir seu próprio dinheiro. Mesmo que toda a motivação dessa melhora de vida de Hideo tenha sido somente para satisfazer os desejos e tentar agradar Kurumi, os resultados positivos ele levou para a sua vida adulta. Claro que Hideo conseguiu superar e utilizar suas experiências para o desenvolvimento próprio, mesmo que sua relação com a Kurumi não fosse nada saudável e recomendável.

Para Kurumi não foi diferente, conhecer Hideo permitiu que ela suportasse o peso da morte certa de forma mais leve e com alguém ao seu lado, e mesmo que o relacionamento de ambos tenha sido marcado por bizarrices e fetiches, foi a forma que encontrou para ficar com Hideo, não sendo possível condenar a ação de dois adolescentes que estavam se descobrindo mutualmente. E no fim, não tem como dizer que eles não se amavam. Ou seja, mesmo por meios considerados errôneos, é possível chegar no lugar certo.

Outro exemplo de bizarrice do mangá.

Para falar um pouco do mangá em si, Sundome realmente não é uma leitura fácil, é uma sequência de situações vergonhosas e práticas fetichistas, como por exemplo, o fascinação que Hideo sente por beber a urina de Kurumi. Para alguém que não possui esse tipo de fetiche é difícil entender e compreender. O mangá está repleto de cenas bem fortes, como quando ela coloca um supositório em Hideo, e ele aprecia a situação de maneira extremamente erótica, o que contrasta enormemente com as piadas de bunda que o ex-presidente faz, e mesmo tentando de vez em quando enfiar um dedo na buna alheia, são situações cômicas, em nada comparadas com a intensidade da relação entre Hideo e Kurumi. Visivelmente o mangá buscou criar esses contrastes, que se manifestam tanto nas ações como na própria arte.

Não posso negar que esse não é um mangá para qualquer um. Até mesmo eu que tenho uma boa resistência para ler e assistir o que for, me senti muitas vezes desconfortável com as cenas mais picantes. E não falo somente das cenas puramente sexuais, e sim de todo o contexto, como das várias vezes que Aiba foi torturado para se masturbar nos mais diversos contextos e nas situações mais diversificadas, como por exemplo, quando estava algemado com as mãos nas costas no cinema enquanto mantinha uma ereção e teve que fugir do lugar em uma situação vexatória.

Contudo, se você, caro leitor, não for fraco para esse tipo de coisa, Sundome fica recomendado. Contudo, devo ainda criticar o mangá em determinado ponto. Penso que ele é extenso demais, sendo 8 volumes um tamanho exagerado para o que a obra tentou passar. Por vezes se torna monótono capítulo por capítulo com fórmula semelhante (parte de comédia no clube x safadeza escondida dos dois protagonistas). Essa e a impressão que tive, mas se bem que essa impressão é oriunda do desconforto que tive em acompanhar o casal em suas peripécias sexuais por tanto tempo. Talvez essa tenha sido a intenção do autor, criar justamente essa sensação de desconforto no leitor. Se for assim, ele foi bem sucedido.

Já que estou falando de possíveis críticas, outro ponto controvertido de Sundome é justamente a sua arte. Embora eu tenha achado uma solução interessante mesclar um estilo de arte cartunesco para os momentos de humor com um estilo mais sério nos momentos mais sérios. O design dos personagens, no geral, fica no máximo em um nível razoável. Outra decisão de arte interessante é que as ilustrações antes de começar os capítulos são mais pesada e eróticas do que realmente acontece no mangá, então não se assustem nem esperem algo do tipo.

Para finalizar, penso que existam outras obras que sejam um pouco semelhantes com Sundome e que valha a pena conferir também, como no caso de Aku no Hana de Shuuzou Oshimi e Nazo no Kanojo X de Riichi Ueshiba. Ambos os mangás possuem protagonistas masculinos inseguros e que são submissos em seus relacionamentos com as garotas dos respectivos mangás. Claro que Sundome é a mais sexualmente explícita de todas as obras que citei, mas não deixa de possuir o seu conteúdo psicológico relevantes.

Espero que tenham gostado do texto, e muito embora não seja um mangá de fácil digestão, vale a pena ser lido justamente pela exploração psicológica da relação das personagens, principalmente do casal principal, Hideo e Kurumi. Mas devo dizer, também, que outros personagens também tiveram um desenvolvimento bacana, como no caso da Kyouko e Yatsu, um relacionamento incomum entre uma uma gyaru com um otaku, discutindo assuntos como objetificação do sexo feminino. Além disso, Sundome também é recomendado para quem gosta de mangás eróticos cheios de bizarrices. Se você preencher alguma destas categorias, este é o mangá certo para você.

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