Joshikousei ni Korosaretai – O estranho fetiche de ser assassinado.

Quem já leu algum mangá de Usamaru Furuya sabe que tipo de autor ele é. Mais conhecido pelo clássico cult The Music of Marie e Suicide Club, já publicado no Brasil. Suas obras são marcadas por personagens psicologicamente muito bem desenvolvidas e roteiros muito incomuns com reviravoltas surpreendentes.

De todos os seus muitos mangás já publicados, o texto desta vez é sobre uma de suas obras menos conhecidas mas que considero uma pérola rara, Joshikousei ni Korosaretai, que basicamente gira em torno de um professor do ginásio que deseja fortemente ser assassinado por uma garota do colegial.

Depois dessa premissa bizarra, começamos o texto primeiramente com os dados técnicos. Joshikousei ni Korosaretai significa literalmente “Eu quero ser morto por uma garota do colegial”. O próprio título já explica sobre o que o mangá tratará em seus 2 volumes e 14 capítulos, serializados de 09 de outubro de 2013 até 09 de julho de 2016 na revista Go Go Bunch, publicação não muito famosa e que encerrou suas atividades em 2018, sendo que Usamaru Furuya já havia publicado outra obra sua nesta revista, Shounen-tachi no Iru Tokoro.

Usamuru Furuya, como eu já disse acima, é muito conhecido por desenhar mangás com um forte apelo psicológico, suas personagens são por via de regra muito bem construídas e desenvolvidas. Além de seu mangá muito elogiado The Music of Marie, já analisado no Dissidência Pop, também destacam-se de sua autoria: Suicide Club, publicado no Brasil pela New Pop, Litchi☆Hikari Club que ganhou uma adaptação em anime, Genkaku Picasso, Innocents Shounen Juujigun, que também já ganhou um texto no blog, e muitos outros.

Sobre Joshikousei ni Korosaretai, o mangá narra a história de um professor do colegial, Haruto Higashiyama, que possui um fetiche em ser morto pelas mãos de uma colegial, preferencialmente por enforcamento. Ele possui essa fantasia desde a adolescência e a levou para vida adulta. E quando digo fantasia sexual, é porque é mesmo, já que ele se masturbava pensando nessa situação. Isso não o impediu de levar uma vida normal, já que manteve um namoro longo com Satsuki Fukagawa, importantíssima no decorrer do mangá. Haruto ainda se formou em psicologia, mas abandonou a carreira para se tornar um professor, a fim de poder ficar mais perto das estudantes colegiais. Ou seja, ele conhecia o seu transtorno psicológico, mas se deixou levar por ele.

Essa fantasia sexual possui um nome, uma das tantas “filias” existentes, a autassassinofilia. Nome complicado, mas que em suma significa a excitação sexual pela perspectiva de ser assassinado. Mesmo assim é uma fantasia de difícil conceitualização, pois possui diversas variantes. Há aqueles que apenas desejam simular serem mortos, mas que não desejam concretizar o ato, se contentando com a encenação de serem enforcados ou afogados, por exemplo. E há aqueles que desejam efetivamente serem mortos, como no caso do Haruto. Mas mesmo assim,  cada caso é um caso, rotular só restringe e prejudica o diagnóstico, já que no caso do protagonista, ele possui um desejo de ser morto bem específico, pelas mãos de uma garota do colegial.

A título de exemplo, cito o caso do homicídio consentido de Sharon Lopatka, que em 16 de outubro de 1996, nos EUA, foi assassinada por Robert Frederick Glass, depois de se relacionar por um tempo com ele pela internet até se encontrarem no fatídico dia. Ambos nutriam uma fascinação sexual por tortura e morte, o que culminou na tragédia. Assim, dá para perceber que existem fantasias sexuais inócuas, que não causam mal para ninguém, mas existem aquelas que são muito perigosas para a pessoa e para a sociedade, e que demandam uma atenção psicológica séria.

Percebe-se que Usamaru Furuya pesquisou bastante para construir os seus personagens, o que não é surpresa, mas Joshikousei ni Korosaretai está em um nível diferente, por mostrar um relato tão vívido de como uma fantasia doentia se manifesta na psique de uma pessoa e a torna uma maníaca por satisfazer aquele desejo incontrolável. Mas não é só Haruto e sua autassassinofilia que o autor se preocupa nessa obra, ele aborda com cuidado outros transtornos comportamentais em outros personagens, como o transtorno dissociativo de identidade (múltiplas personalidades), monomania e a síndrome de Asperger.

Daqui para a frente há uma certa dose de spoilers leves sobre os personagens, mas não revelarei nenhum plot twist e nem fatos fundamentais para a trama em si. Essa necessidade de revelar algumas coisas se faz presente no meu desejo de esmiuçar um pouco a condição psicológica dos personagens e nas situações abordadas no mangá, por isso, é muito difícil, ou até mesmo impossível não revelar uma ou outra coisa.

Incrível como em apenas dois volumes Usamaru Furuya abordou tantos problemas psicológicos e trabalhou todo o conjunto de personagens principais de maneira tão competente. Todos tiveram o seu devido tempo e desenvolvimento adequado. Penso ser inevitável escrever um pouco sobre essa interessante seleção de personagens e como eles se interagem na história. Temos um elenco principal de cinco personagens, como já falei de Haruto e sua autoassassinofilia, vamos para a sua tão desejada executora, Maho Sakaki, estudante colegial de 16 anos.

Maho Sakaki é introduzida logo no começo da trama, como um alvo em potencial de Haruto. Ou melhor dizendo, a pessoa indicada para matá-lo. Aparentemente ela é uma pessoa normal, mesmo que desde os primeiros capítulos o autor deixe subentendido que ela possui coisas do passado que quer esconder ou traumas que não consegue lidar. Uma figura bonita, popular, mas um tanto antissocial, que nem ao menos conseguiu imaginar a dimensão dos problemas em que se meteu ao cruzar com Haruto. O mais interessante foi justamente ver que a escolha dela não foi por acaso. Nenhuma escolha de nenhum personagem em Joshikousei ni Korosaretai foi por acaso.

Mais interessante que a própria Maho é sua amiga Aoi. Desde logo fui arrebatado pelo seu ar misterioso, que só aumentou quando soubemos de suas condições e habilidades peculiares. Ela é portadora da Síndrome de Asperger. A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu a Síndrome de Asperger como um dos transtornos do espectro do autismo, que se caracteriza por dificuldades na interação social e na comunicação com as demais pessoas. Geralmente os portadores da síndrome possuem comportamentos repetitivos e interesses e habilidades restritas, além da dificuldade de se comunicar e entender as expressões faciais das outras pessoas.

Foi muito interessante Usamaru Furuya colocar no mangá uma personagem assim. Não posso afirmar que é realmente o retrato fiel de uma portadora de Asperger, mesmo assim é uma personagem interessantíssima. Como ela é a única amiga de Maho, a acompanha para qualquer lugar. Assim sendo, ela se tornou a melhor e a pior testemunha possível! Entre o seu rol de habilidades está a capacidade de memorizar qualquer fato e data, o que é fundamental para o entendimento de todo o plano de Haruto.

Até mesmo Yukio Kawahara, que aparenta ser um adolescente normal, possui sua mania esquisita. Diante de seu amor de anos por Maho, o garoto ficou obcecado pelo seu shampoo, chegando ao ponto de comprar dezenas de shampoos diferentes para descobrir a fragrância exata que era usada nos cabelos da garota, sendo um sinal claro de monomania, que é um tipo de paranoia na qual o afetado tem uma única ideia ou tipo de ideias, ou um único objeto de atenção. Por sorte essa mania não é perigosa (dentro da obra) e ainda serve para alguma coisa no roteiro. Penso ser até mesmo possível afirmar que o transtorno que acomete Haruto em sua fixação pela jovem Maho e por ser morto em suas mãos seja um sinal de monomania.

Ou seja, o autor foi feliz em reunir todo um arcabouço de personagens com as suas próprias características e desordens psicológicas. Satsuki Fukagawa, a ex-namorada de Haruto e posterior conselheira psicológica do colégio onde ele dá aula, também possui suas características interessantes. Embora em um primeiro momento possa parecer coincidência ela ter ido para a mesma escola de Haruto, a verdade é muito mais assombrosa.

Satsuki Fukagawa é um ótimo exemplo de como o amor pode ser um obstáculo no momento de perceber as nuances de um transtorno psicológica na pessoa amada, pois sempre há a tendência de mitigar a gravidade ou deixar-se levar pela esperança de reabilitação, etc… Já comentei em outro texto do blog (Shi ni Itaru Yamai) que não é recomendável um terapeuta se envolver afetivamente com o paciente, e embora em Joshikousei ni Korosaretai não seja realmente uma relação terapeuta/paciente, a lógica é semelhante. Satsuki Fukagawa é fundamental no desfecho do mangá (todo o núcleo principal é fundamental para o desfecho), mas acaba pecando gravemente em seus atos.

Interessante como esse mangá quebra as expectativas. Aparentemente se pensava que Haruto apenas nutria o desejo de ser morto por uma adolescente e queria ficar perto delas para fantasiar a vontade, mas a medida que o enredo se desenvolve, vemos a magnitude dos planos dele e tudo o que ele foi capaz de fazer e planejar para colocar o seu plano em prática. É curioso o fato de ele admitir que em caso fosse atacado por uma colegial, ele revidaria pelo instinto básico de sobrevivência, já que o seu medo de morrer bateria de frente com o desejo de ser morto, então ele teria que armar uma situação onde ele não pudesse se defender, a fim de colocar em prática a consumação de sua fantasia sexual.

Outra questão digna de nota é uma grande coincidência que ocorreu comigo enquanto lia este mangá. Simultaneamente à sua leitura eu estava lendo um livro de psicologia, “Os Parceiros Invisíveis”, de John A. Sanford, analista junguiano. Dentro deste livro há um capítulo que trata das fantasias sexuais, e aí que reside a coincidência, pois enquanto eu entendia um pouco mais do que consistia a natureza deste tipo de fantasia do ponto de vista da psicologia analítica, mergulhava a fundo na fixação doentia de Haruto. Assim sendo, tentar entender um pouco da condição psicológica do protagonista foi uma questão que surgiu naturalmente.

Para John A. Sanford (p.119) “podemos dizer que aquilo que nos inquieta sexualmente é uma representação simbólica do que necessitamos para atingir a nossa inteireza, o nosso todo. Isto significa que as fantasias sexuais complementam simbolicamente a consciência do ego, de maneira a nos colocar em direção de nossa plenitude. Compreender o sentido simbólico de nossas fantasias sexuais capacita-nos a nos tornarmos menos impulsivos em relação a elas, isto é, em vez de sermos dirigidos e possuídos por elas, nosso grau de consciência pode ser ampliado por elas.” Ou seja, não se deve ver tais fantasias apenas como uma doença ou um desvio de moralidade, mas como um aviso do próprio inconsciente.

O autor ainda cita alguns exemplos de fantasias sexuais e como elas são fruto de um desenvolvimento psicológico deficitário, por exemplo, existem muitos homens mais velhos que nutrem uma fixação por meninas novas. Em um primeiro momento, pensa-se que isto se dá só pelo fato de mulheres mais novas serem geralmente mais atraentes, mas há uma significação mais profunda. Mais do que um desejo sexual, essa fantasia exprime a dificuldade que o homem mais velho sente de aceitar que sua vida está passando e tenta se agarrar à juventude e frescor de jovens mulheres.

Outro exemplo se dá sobre um homem que só conseguia manter uma ereção depois de beijar os pés das mulheres. Como esse é um exemplo clínico concreto, sabe-se que o homem se achava superior às mulheres e as tratava com indiferença e arrogância, afastando o feminino de sua vida, mas quando ele estava na cama com uma mulher, seu inconsciente visando equilibrar as coisas exigia que se rebaixasse, e a maior prova de rebaixamento de uma pessoa perante outra é beijar os pés. Quando este homem passou a tratar e respeitar melhor as mulheres, essa fantasia simplesmente sumiu.

Ou seja, Haruto será vítima de suas fantasias sexuais doentias enquanto não compreender e aceitar transformar o que motivou-o internamente a agir dessa forma. Pois saber ele até sabe a causa, já que é formado em psicologia e possuiu a ajuda da Satsuki em seu diagnóstico e tratamento, mas como vimos em Joshikousei, Haruto age com malícia e não abre mão de sua perversão, fingindo aceitar por ajuda. E por mais ajuda externa que alguém receba, apenas a própria pessoa pode aceitar mudar, e no caso do mangá, Haruto teria que ter aprendido a lidar com as altas cobranças dos seus pais e a falta de afetividade destes no momento de formação de sua personalidade. Diante deste contexto, Haruto deturpou o significado do amor e o misturou com o da morte.

Creio que deva ser mencionado que nem todas as fantasias sexuais são doentias, na maior parte das vezes e com a maioria das pessoas são inócuas e não representam mal para ninguém. Além disso, como já mencionado, elas servem como alerta de algum problema psicológico existente. E como complementa o mesmo autor: “A possibilidade de fantasias sexuais são inúmeras e é muito natural que as pessoas tenham fantasias sexuais fortemente coloridas. Se o conteúdo de tais fantasias se tornar demasiadamente incomum, nós os chamaremos de ‘perversões’, mas será muito mal se isto nos levar a perder o controle delas; pelo contrário, precisamos compreender por que motivo temos esta fantasia sexual específica, isto é, compreender o que a fantasia simbolicamente exprime.”

Haruto é um claro exemplo levado ao extremo de como uma fantasia sexual pode nublar a consciência de alguém e lhe tirar todo o livre-arbítrio, e essa obsessão faz girar a roda de acontecimentos em Joshikousei, influenciando a vida de várias pessoas ao seu redor. Por isso volto a afirmar que esse é um mangá quase único nessa abordagem, já que é raríssimo em mangás e animes haver uma preocupação com temas da psicologia, ou melhor dizendo, são raros os exemplos de psicólogos ou terapeutas em animes e mangás e mais raro alguém que faça terapia ou busque tratamento. Se fosse mais comum personagens passarem por terapia teríamos perdido mais da metade de todos os animes, já que, por exemplo, Neon Genesis Evangelion teria sido muito diferente caso o protagonista Shinji Ikari e companhia tivessem procurado terapia especializada!

Brincadeiras à parte, voltando para a análise do mangá como um todo, cada passo do enredo é meticulosamente calculado, tornando o mangá um grande quebra-cabeça no qual não sabemos exatamente que desenho formará. E esse fator surpresa é muito elogiável. Uma das grandes características dos bons autores é justamente fazer que o leitor não desconfie do que acontecerá na próxima linha de texto, ou no próximo balão, já que estamos falando de um mangá. E Usamaru Furuya conseguiu criar um enredo onde boa parte das expectativas foram sendo quebradas para dar lugar a novas imagens completamente diferentes.

Por isso tudo já citado acima, bem como pela sua bela arte, Joshikousei ni Korosaretai é um mangá fortemente recomendável, e mesmo que ele quebre muitas expectativas, inclusive com o seu final, o qual gerou certa polêmica por não ser o mais esperado pelos leitores, se mantém uma obra coesa e interessante. Pelo menos eu devorei capítulo após capítulo para saber onde essa loucura toda iria dar, e não me arrependi. Eu sei que um protagonista com caráter tão desprezível muito dificilmente geraria qualquer empatia pelos leitores, mas essa falta de identificação com o personagem principal é solucionada quando se depara com um elenco tão interessante. Assim, todos devem dar pelo menos uma chance a este mangá bastante bizarro e se surpreender com a perversão de Haruto. E quem sabe quando outro mangá do autor também será publicado no Brasil?

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