As várias versões de Sukeban Deka (da esquerda para a direita): a segunda versão do mangá, de 1987; a terceira republicação, de 1995; e o anime, de 1991 |
Por que a delinquência juvenil é um tema quase onipresente nos mangás e animes? Há várias obras dedicadas especificamente a isso como Rokudenashi Blues, Crows e, talvez a mais conhecida no Ocidente, Beelzebub. Existem trabalhos que se focam em outros temas, mas incluem personagens com esse arquétipo: Yusuke de Yu Yu Hakusho, Joey Wheeler em Yu-Gi-Oh! e Hanamichi Sakuragi em Slam Dunk. A constância desse tema pode ser talvez entendida pela frequente associação entre juventude e rebeldia.
Em geral, porém, esses valentões são homens. Genericamente conhecidos como yankii, se subdividem em banchō (homens) e sukeban (mulheres). Hoje falaremos sobre esse segundo grupo: um fenômeno da década de 70 no Japão que envolveu gangues de garotas. Discutirei sobre o tema e o articularei com o objeto de discussão desse texto: Sukeban Deka.
A obra é originalmente um mangá shōjo escrito por Shinji Wada e publicado na revista Hana to Yume entre 1976 e 1982. Mencionarei essa obra, mas o foco aqui será a adaptação em anime, lançada em VHS em 1991. Não só pela facilidade no acesso, mas porque ela foi dublada para o português e exibida no antigo canal Locomotion. Esse texto basicamente se focará em, primeiramente, discutir um pouco sobre delinquência no geral e a especificidade das sukeban nesse contexto. Assim como fiz na minha análise de Inuyasha, direi que é importante ler essa discussão prévia, mas não indispensável. Então, quem quiser, pode passar para o tópico seguinte se preferir e entrar direto na discussão do anime.
As sukeban: rebeldia sem causa ou sintomas de mudança?
É preciso esmiuçar algumas coisas que pontuei na introdução. Primeiro, sobre os yankii: o termo supostamente vem de yankee (ou ianque), como ficou conhecido o povo dos Estados Unidos. A década de 60 no Ocidente é marcada pelo que foi entendido como uma “rebeldia juvenil”, do rock’n’roll ao punk até Woodstock, o maio de 68 e a ascensão de movimentos anti-capitalistas, antirracistas, feministas e LGBTs. O Oriente viveu a sua maneira esse fenômeno. Influenciados pelo estilo de James Dean em Juventude Transviada (ou Rebel Without a Cause) [1], esses “jovens defeituosos”, conforme um dicionário japonês, são aqueles “que imitavam os costumes dos jovens nos Estados Unidos em estilo de cabelo, moda etc.” [2].
Um “rebelde sem causa”, James Dean era o que tinha de mais descolado na década de 50. O filme de 1955 continuou influente na década seguinte |
Ou seja, ser um delinquente no Japão dessa época era se “ocidentalizar”. Paradoxalmente, esses “rebeldes” são associados ao nacionalismo de direita surgido no pós-Segunda Guerra trazendo uma nostalgia de um passado militar glorioso acabado com a “vergonha” da derrota. Eles unem aos cabelos tingidos e as camisas no estilo hawaiano [3] a tentativa do resgate do estilo samurai e dos pilotos kamikaze [4]. Mas, apesar dessa pinta de maus, é consenso que esses grupos não eram tão perigosos, se assemelhando mais aos bullies americanos com suas “pegadinhas” [4] e dispondo apenas de uma “violência seletiva, limitada” [5]. Assim, o que pode se concluir dessa história é que a conservadora sociedade japonesa tinha dificuldades em lidar com a dissidência e rotulava-os como “criminosos” a despeito de serem apenas “rebeldes sem causa” (embora, de fato, tivessem uma causa; senão proposital, pelo menos colateral de questionar valores). O fato de serem advindos majoritariamente da classe trabalhadora pode ser outro fator que levou a excessiva “criminalização” desse grupo a despeito de não serem tão ameaçadores assim.
Alguns yankii exibindo seus cabelos descoloridos, suas roupas longas e chamativas e tentando impressionar |
Bom, mas e as sukeban? Na verdade, o termo designa a líder feminina de um grupo de yankii em contraposição ao líder masculino, o banchō. No entanto, a palavra acabou sendo usada para falar das gangues femininas em geral. Feita essa explicação, seguirei usando “sukeban” para designar o fenômeno coletivo apenas por conveniência. De maneira geral, esse grupo feminino tem boa parte das mesmas características da sua contraparte masculina: se vestem com roupas estilizadas, modificam seus cabelos e tentam passar um ar de durões ou, duronas, no caso. Mas obviamente a diferença fundamental de gênero não pode ser ignorada. No Ocidente, o feminismo ganhava força na luta pelo direito das mulheres. Poderiam as sukeban serem interpretadas nesse contexto?
O escritor criminal Jake Adelstein dá sua hipótese: “O mundo estava falando de feminismo e libertação, e talvez elas sentissem que as mulheres também tinham o direito de ser tão estúpidas, promíscuas, viciadas em adrenalina e violentas quanto seus colegas homens” [6]. É uma questão difícil de se chegar a um veredicto, mas parece um bom caminho para uma análise. Podiam não estar conscientemente questionando o papel da mulher na sociedade, assim como os yankii no geral desafiavam apenas indiretamente certa moral estabelecida, mas não deixavam de ser expressão desse questionamento. E, não me entendam mal, a questão não é defender a violência ou que o “direito de ser estúpido” é algo importante. É apenas analisar e entender que situações levam ao surgimento de um fenômeno como esse.
As garotas japoneses descobriram na década de 70 que também tinham o direito de fazer “cara de mau” |
É improvável se chegar a alguma conclusão definitiva sobre um tema tão pouco analisado e discutido. Há quem diga inclusive que “a herança das gangues sukeban foi silenciada” [6]. E, assim como os yankii em geral, parece que elas foram muito mais perigosas para a moral “tradicional” da época do que enquanto criminosas em si. Praticavam bullying [6], usavam drogas, algumas se prostituíam e cometiam pequenos furtos, e evidentemente nada disso é defensável, mas eram vistas como “presságios da decadência” por outros atos. Meias coloridas, mangas enroladas, cabelos com permanente e saias curtas eram as grandes violações que cometiam [7]. De fato, a própria definição criminal em que se enquadravam, a de “pré-delinquência”, era constituída, dentre outras coisas, por atos que “colocavam em perigo a moralidade” [7].
Assim, as sukeban estão num limiar complicado entre uma rebeldia juvenil “sem causa”, uma tentativa de diferenciação dentro da homogênea sociedade japonesa, uma contestação da moral tradicional vigente e um questionamento do status da mulher dentro dessa sociedade. A sua violência difusa e não organizada talvez não permita a comparação com grupos de mulheres que lutam contra o assédio sexual abertamente, como a Gulabi Gang na Índia [8]. Mas, ao reunir as mulheres e darem elas “cara de mau”, talvez tenham contribuído para o fortalecimento de laços de solidariedade entre elas. A custo da exclusão das que não se encaixassem, talvez, mas era um indicativo de mudança numa sociedade muito rígida quanto ao papel da mulher. Não que se comportar “mal” alterasse a situação, porém certamente colocava a questão na ordem do dia.
É difícil saber o que é real ou não se tratando das sukeban, mas essas fotos representam no mínimo o “espírito” do movimento |
Violência “feminina”: a resposta à violência contra mulher?
Depois de todo esse “desvio”, chegamos finalmente ao anime. Antes de tudo, digo que fiquei parcialmente decepcionado porque a obra não traz muitos detalhes sobre as sukeban, não mostra suas estruturas organizativas, seu estilo, etc. No entanto, isso me levou a toda pesquisa e descobertas interessantes expostas acima. De qualquer forma, a narrativa compensa esse “deslize” (se é que pode ser considerado um) com outros pontos fortes que serão discutidos melhor na subseção seguinte.
Por enquanto, vamos começar com o básico do enredo e ver como ele se relaciona com essa última deixa colocada acima sobre o “feminismo” das sukeban. Em primeiro lugar, é compreensível que o foco não seja tanto na vida das delinquentes juvenis, uma vez que a protagonista não é uma mera sukeban, mas uma sukeban deka. Bastava saber que esse segundo termo significa “detetive” (policial) para ver que o foco não é na delinquência juvenil em si. Na verdade, a estória se centra em Saki Asamiya, uma menina presa que recebe um convite inusitado: se juntar à polícia para ganhar sua liberdade. Mas isso só é feito, primeiro, com uma troca que garantisse que ela iria se comportar: a vida da sua mãe, na fila para a pena de morte (explicarei melhor em breve); e, segundo, porque eles não conseguem acessar o “universo particular” que é uma escola, com seus esquemas, seus personagens e sua “jurisdição” própria.
Até a detenção de Saki, a escola era dominada por ela e um dos professores a enxerga basicamente como um demônio. No entanto, esse mesmo professor diz que ela não é tão cruel quanto as atuais “donas do pedaço”: as irmãs Mizuchi. Remi, Ayumi e Emi são três meninas ricas, filhas de um importante político. Emi está mais preocupada com ser uma pintora famosa e Remi em suceder seu pai. Das três, Ayumi é a que mais encarna o estilo da sukeban, com várias cenas em que ela ordena seus capangas para que tragam dinheiro para ela. No mangá, isso acaba sendo ainda mais enfatizado e ela é líder de uma gangue de motoqueiros (um subgrupo de yankii conhecido como bōsōzoku).
Por ora, nosso foco será menos na trama principal e no embate entre Saki e as Mizuchi, mas nas nuances sobre a “questão feminina”. A primeira cena de Saki de volta às ruas é emblemática nesse sentido. Um grupo de homens perseguem uma garota e Saki chega a tempo de evitar um estupro. Aqui poderia se encontrar aquela confluência mencionada anteriormente entre as sukeban e grupos de “vigilantes” femininas. Infelizmente, a questão acaba por ser secundarizada e serve apenas como uma introdução espetacularizada de Saki. Ou, talvez, o autor não quisesse se focar tanto nisso e não deixar esta questão como o foco central explícito. Mas, ao colocar esse trecho da violência contra mulher como pano de fundo, não deixa de dar um sentido importante a esse fenômeno.
Em uma das primeiras cenas do anime, Saki emerge ao fundo com ares de vigilante para salvar uma mulher de um abuso sexual |
No anime em si, essa acaba sendo a única menção direta ao assunto. No entanto, no mangá, Saki ajuda as garotas de uma escola a deter assediadores no metrô – “inimigo[s] das mulheres”, como diria uma personagem [9]. Por fim, o motivo da mãe de Saki estar condenada a execução capital é a última indicação que observei nesse sentido. O anime menciona apenas que ela matou seu marido, embora não diga o porquê. A questão fica em aberto e poderia ser interpretada favorável aos dois exemplos já citados ou poderia ser algo totalmente destoante. A princípio, Remi diz que a mãe de Saki foi diagnosticada como “louca” e, por isso, cometeu o crime. Considerando apenas isso, fica uma questão um pouco tosca e não significativa. Mas, uma hipótese que me veio a mente na hora (mas talvez por um bias meu) é que o marido fosse alguém violento contra a mulher e/ou as filhas.
Sem tempo de ler todos os capítulos, dei uma olhada rápida no que tinha de significativo depois do arco das Mizuchi e encontrei o aparente motivo do crime que, ainda sim, permaneceu ambíguo (o que talvez seja explicado em outro momento melhor). A mãe teria matado o pai por conta de como ele trocou a irmã de Saki (que nem é mencionada no anime) com outra família para sustentar seu vício em jogos e bebida [10]. A minha interpretação inicial de um pai agressor seria o mais “feminista” possível, mas essa versão do mangá deixa certas ambiguidades, ainda que mostre o pai como alguém problemático. De uma forma ou de outra, não estaria eu dizendo que matar maridos abusivos é o que resolve o problema do machismo e da violência doméstica. Longe disso. Mas não deixa de ser uma reação desesperada de uma vítima num momento desses e que traria uma complexidade interessante a trama.
Saki vs. irmãs Mizuchi: uma questão de classe
Se a questão da seção anterior não fica tão bem desenvolvida no anime, a questão central que o permeia ainda é muito interessante. A ênfase da narrativa será dada no conflito entre Saki e as irmãs Mizuchi. Na verdade, a grande problemática gira em torno dessa família de milionários. Logo de início, passamos a suspeitar do pai das garotas, Goro, pois este assume a presidência do conselho de diretores da escola após o antigo diretor renunciar devido à morte de diversos alunos em um aparente acidente de ônibus. O delegado incumbido do caso claramente negligencia qualquer investigação profunda e começamos a ter noção das tramas que envolvem dinheiro e poder.
Talvez soe um pouco clichê e talvez o seja. Não é a primeira vez que esse entrelaçamento entre poder político e econômico aparece nos meus textos também (vide a análise de Speed Grapher). De qualquer forma, sempre acho algo intrigante e uma discussão pertinente. Porém, para continuá-la terei que entrar em um spoiler menor, que não compromete quem ainda não assistiu. Depois de Goro declarar que “as pessoas existem para satisfazer seus desejos; é a verdade da natureza humana” [11], ficamos sabendo que foram eles que sabotaram os ônibus para que novos alunos – com melhor poder aquisitivo – pudessem se transferir para a escola. Na posição que ele ocupa, começa a subornar as famílias desses alunos, que precisam disso para manterem boas notas e uma aparência de sucesso.
A declaração de Goro é sintomática com relação ao tipo de atitude que ele e suas filhas têm. Afinal, a “natureza humana” é um tema filosófico tão amplamente debatido e complexo para ser reduzido a meros desejos. No entanto, ele fala daquilo que vive e, nesse sentido, na sua posição de classe, parece que essa é a única coisa que realmente importa. Suas filhas são tão submetidas a essa ideia que fazem de tudo para destruir a vida de Junko, uma garota com um enorme talento para pintura que supera o de Emi. No entanto, ela é uma jovem pobre, que vive sozinha e tem que trabalhar meio período para se sustentar.
Para além dessa oposição entre Junko e as Mizuchi, o contraponto central que ainda não discuti envolve Saki evidentemente. Se a questão de classe é explicitamente mencionada quanto a Junko e óbvia quanto as Mizuchi, o mesmo não é válido para Saki. No entanto, alguns elementos nos permitem comparar suas situações. Primeiro, há de se falar que, no mundo real, as sukeban eram provenientes das classes trabalhadoras [6]. Isso nos leva a pensar o porquê de Saki estar detida no início e sua mãe, condenada, enquanto as Mizuchi e seu pai, tão criminosos quanto, não estão. A questão não é inocentar Saki, mas refletir em que grau a justiça atua desigualmente com relação a pessoas de classes diferentes.
Saki e Remi, uma disputa de classe? |
Considerações finais
Sukeban Deka é uma obra que permite muitas discussões interessantes, mesmo se nos limitássemos aos dois míseros episódios lançados originalmente em VHS na década de 90. Poderíamos ainda falar sobre a ideia de justiça, uma vez que Saki sempre a fez com as próprias mãos e quando entra para a polícia deve seguir preceitos diferentes. Ainda daria para falar sobre ganância quanto ao desfecho de acontecimentos envolvendo as tramas das irmãs Mizuchi umas contra as outras. Quando alguém morre dizendo “meu dinheiro” algo fica evidente. “Talvez seus olhos estejam vendados por um bocado de dinheiro”, anuncia Saki perto do fim. Será que os olhos da justiça também? Até então pelo menos, sim. A condenação de Saki e, não das Mizuchi, até que a própria Saki intervém é emblemática quanto a uma condição de classe na estória.
Mulheres falando palavrão e fumando: nada de mais hoje em dia; um pouco chocante para a época |
Outro fato marcante é ser um anime de ação da década de 90 centrado quase apenas em mulheres. Revolucionário certamente. Obviamente não surge do nada, mas na trilha de Ribon no Kishi, Versailles no Bara, entre outros. Coloca a questão da violência contra a mulher e até a violência da mulher como algo significativo dentro de seu enredo. Feminista ou não? Difícil de chegar a uma conclusão e talvez nem seja necessário e nem seja essa a questão. O relevante é que influenciou certamente uma geração. Sailor Moon e Revolutionary Girl Utena devem algo indiretamente a Saki; e seu impacto é ainda visto em séries como Kill la Kill [12]. Enfim, uma obra duradoura porque significativa. Vale a pena.
Saki, na adaptação live-action para TV de Sukeban Deka, ao lado de Ryuko, de Kill la Kill |
Notas:
[Nota 1: “They have their origins in the American “Yankee” GIs who gave the Japanese their first glimpse into the cho-kakkoii (super cool) world of rock ‘n’ roll, James Dean and Levis”, diz o Japan Times]
[Nota 2: Pelo menos, segundo minha tradução do Google e meu parco conhecimento de japonês do seguinte trecho “不良青少年。第二次大戦後、髪型やファッションなどで、米国の若者の風俗をまねた青少年をさして呼んだ語” extraído daqui]
[Nota 3: “In Japanese, delinquents are referred to, both in real life and in fiction, as yankii (as in “yankee”, because of their rebelliousness and Hawaiian-patterned shirts they sometimes wore rather than an affinity with the USA)”, diz o TV Tropes]
[Nota 4: Segundo o Japan-Talk: “Yanki are associated with right-wing Japanese nationalism. They’re influenced by a glorified image of Japan’s militaristic past. They draw on themes such as Samurai and Kamikaze pilots. They might say they’d like to restore the Emperor to power. However, they aren’t very serious or organized and tend to resort to pranks, bullying and petty crime. They maintain a yakuza-like image but aren’t nearly as dangerous as the real thing.”]
[Nota 5: Segundo a Timeline: “Thus, although society deems yankii as delinquents, the group’s fighting code is organized around selective, limited violence.”]
[Nota 6: A melhor matéria em português sobre as sukeban que encontrei foi essa publicada na Vice.]
[Nota 7: CHERRY, Kittredge. Womansword:What Japanese Words Say About Women. Stone Bridge Press, 2016.]
[Nota 8: Esses movimentos e outras mulheres “vigilantes” são apresentadas em um interessante artigo aqui]
[Nota 9: Ver páginas 117-120 e 145-146 do volume 1 de Sukeban Deka, na reimpressão de 1995 do mangá, disponível aqui.]
[Nota 10: Ver páginas 242-245 do volume 3, disponível aqui]
[Nota 11: A partir do minuto 24:34 da versão dublada encontrada no Youtube]
[Nota 12: Fãs analisaram quadro por quadro o encerramento de Kill la Kill comparado-o com o encerramento da versão live-action de Sukeban Deka e você pode ver isso aqui]