3-gatsu no Lion é um anime que está em exibição atualmente, mas precisamente em sua segunda temporada, baseado no famoso e premiado mangá de mesmo nome, de autoria de Chika Umino. E O Mestre de Go é um livro de Yasunari Kawabata, famoso escrito japonês e ganhador do Prêmio Nobel de literatura em 1968, sendo o primeiro japonês a ganhar tal prêmio. Mas o que estas duas obras de mídias diferentes possuem em comum? Mostram um relato vívido da importância que os jogos de tabuleiros tradicionais possuem na cultura japonesa, e é sobre isso que vou falar um pouco neste texto.
É evidente que em 3-gatsu no Lion e em O Mestre de Go os jogos praticados são diversos, sendo o shogi (xadrez japonês) e o go, respectivamente. Entretanto, tal diferenciação dos jogos não faz diferença neste texto, já que ambos são jogos tradicionais japoneses, possuindo a mesma estrutura de ranking, a existência de mestres e torneios especializados, e o mais importante, a mesma importância no Japão.
Não vou me aprofundar nas regras dos jogos, mas sucintamente, Shogi é uma espécie de xadrez de origem chinesa que se desenvolveu no Japão. As peças são promovidas ao atingir o território do adversário, ganhando maior poder e liberdade de movimento. (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 11.). Enquanto Go é um jogo estratégico de soma zero e de informação perfeita para tabuleiro, em que dois jogadores posicionam alternadamente pedras pretas e brancas, o jogador que obtém mais território ganha o jogo.
Falando um pouco sobre as obras abordadas neste artigo, 3-gatsu no Lion, ganhador em 2011 do 4º Manga Taisho Award e do 35º Kodansha Manga Award, além de em 2014 ter ganhado o grande prêmio do 18º prêmio Osamu Tesuka, utiliza o shogi como um pano de fundo para explorar a vida e o psicológico dos personagens. Entretanto, mesmo não sendo o objetivo do anime, o shogi está lá, sempre presente, servindo como um elemento perfeito para entendermos as emoções dos personagens. O anime também não foca nas regras e nos jogos em si, mas nas reações dos personagens enquanto praticam o jogo, por isso, é desnecessário ter conhecimento do jogo em si para poder assistir esse anime.
Em 3-gatsu no Lion é possível ter uma percepção detalhada de como o shogi é importante para os jogadores e para o Japão como um todo. Temos o protagonista Rei, que desde cedo foi considerado um prodígio do shogi, e acompanhamos o esforço que é para se manter competitivamente entre os melhores jogadores do Japão enquanto precisa lidar com os seus próprios dilemas pessoais. O mesmo ocorre com os outros personagens que jogam shogi que aparecem no anime. Em suma, se você quer ser um bom jogador, deve se dedicar muito, treinando exaustivamente.
Lembrando que 3-gatsu no Lion não é o único anime que aborda em sua temática algum jogo tradicional japonês. Outros tantos animes também já fizeram isso, sendo o jogo como aspecto principal ou secundário em seus enredos. Destes animes, posso citar Hikaru no Go, onde o protagonista joga go enquanto é possuído por um jogador famoso que havia morrido, trazendo um lado sobrenatural para o anime. Shion no Ou, onde a protagonista joga shogi profissionalmente, sendo muda por um trauma causado em seu passado. Também temos Saki, um slice-of-life sobre um clube escolar de mahjong, que é outro jogo de tabuleiro oriental muito famoso no Japão.
Touhai Densetsu Akagi: Yami ni Maiorita Tensai também um bom exemplo de anime sobre jogos, especialmente mahjong, onde o protagonista se envolve no submundo de apostas perigosas. Menciono que o mangá que originou este anime foi publicado em uma revista especializada em mangás sobre mahjong, a Kindai Mahjong. A próxima temporada de animes de janeiro de 2018 irá trazer mais um anime sobre shogi, Ryuuou no Oshigoto!. Lembrando que todos esses animes foram adaptados a partir de mangás, sendo que ainda há muitos mangás sobre jogos que não foram adaptados, como 81diver, Mononofu, Koma Hibiki, entre muitos outros. Esse grande número de obras baseadas em jogos tradicionais japonesas comprova que este é um tema relevante para obras artísticas.
Hikaru no Go, exemplo de anime/mangá onde o go está presente como um elemento central. |
E qual a relevância do livro O Mestre de Go de Kawabata para este tema? Esse é um livro muito singular, pois foi um romance derivado de uma série de reportagens feitas pelo próprio autor. De 26 de junho a 4 de dezembro de 1938 foi publicado no jornal Tokyo Nichi-nichi Shinbun um relato aficionado de uma grande partida de go entre o “invencível” mestre Shusai e Minoru Kitani (no romance seu nome foi mudado para Otake). A morte do mestre em 1940 motivou Yasunari Kawabata a transformar suas 64 reportagens da partida (partidas de go e shogi podem durar meses, dependendo do evento, onde são realizadas apenas algumas jogadas por dia) em uma obra literária.
O diferencial de O Mestre de Go não foi simplesmente narrar uma partida memorável de go, mas sim traçar um retrato do grande choque psicológico e das delicadas estruturas emocionais envolvidas ao jogar um jogo aparentemente simples, mas com um desenvolvimento muito complexo e com muitas sutilezas a serem exploradas pelos jogadores mais atentos. Kawabata foi feliz em mostrar com exímia perícia a leitura dos gestos e e expressões dos jogadores, criando um relato vívido das tensões no jogo e nos bastidores.
Neste livro, também é possível fazer uma leitura crítica da oposição entre o Japão tradicional e o moderno, visto que o mestre foi o último dos “antigos”, antes do go ter sido modernizado para se adaptar ao novos tempos, perdendo um pouco de seu aspecto de “arte”:
“Pode-se-ia dizer que o mestre sofreu na última partida de go de sua vida com o racionalismo da modernidade, que tornou tudo rigorosamente amarrado em meticulosas regras; com isso, a graça e a elegância dessa arte tornaram-se artigos obsoletos, o respeito e a consideração aos superiores foram esquecidos, e nem ao menos há o mútuo apreço como seres humanos. O belo costume de longa tradição do Japão, ou do Oriente, inclusive o Caminho do Go, está arruinado; tudo é regido por cálculo e normas. A ascensão pela escala que rege a vida do jogador profissional de go é determinada por um sistema de pontuação, que avalia até os mínimos detalhes; o que mais importa é a estratégia de luta para derrotar o adversário, e não há mais espaço para desfrutar da dignidade e dos saber do go como uma arte.” (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 67.)
Yasunari Kawabata, autor de O Mestre de Go. |
Igualmente como ocorre com 3-gatsu no Lion, O Mestre de Go não é apenas uma descrição técnica das 237 jogadas da partida, e nem ao menos é necessário entender o jogo para a apreciar sua leitura. É a relação dos personagens que importa. Claro que ressalvadas as devidas proporções, o mestre de Go é muito mais centrado na figura dos competidores, o velho mestre e o oitavo dan Otake, além, claro, do narrador, o repórter (autor), que se envolveu ativamente na disputa, enquanto 3-gatsu no Lion possui uma grande gama de personagens, com eventualmente um ou outro personagem tendo o seu destaque em cada arco.
Para se ter uma noção da influência e da importância do “mestre de go” Shisui, ele recebeu o título de mestre Hon’inbo, que foi hereditário até o vigésimo primeiro mestre, isto desde 1612 com a fundação da escola Hon’inbo de go. O último foi justamente o mestre Shusai. Ele foi realmente uma quebra de paradigma do modo tradicional de se declarar o mestre do go, já que ao se aposentar cedeu à Associação Japonesa de Go o título Hon’inbo, o qual passou a ser utilizado pelo vencedor do campeonato de mesmo nome. (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 9.)
Sem uma citação do livro fica difícil mensurar a importância que mo mestre Shusui possuía para o go, não sendo diferente de um grande mestre de alguma arte marcial ou algum grande monge budista, já que o go, além de seu aspecto de jogo, possui muita interpretação espiritual, diante da dualidade de suas peças pretas e brancas, lembrando o contraste do Ying e Yang. O go, como o shogi, vai muito além de apenas um jogo, sendo um “Caminho” e uma “Arte”, que objetivam o aprimoramento pessoal. Neste sentido acho que a seguinte citação vem bem a calhar:
Mestre Hon’inbo Shusai, o último grande mestre de go. |
“Havia mais de trinta anos que o mestre Shusai não jogava com as pedras pretas. Era o ‘primeiro’ sem haver o ‘segundo’. Enquanto ele estava vivo, não existia um detentor do oitavo dan que seria o sucessor natural. Sua capacidade estava muito acima de seus contemporâneos de go, e entre a geração jovem não havia quem chegasse perto e que pudesse sucedê-lo. Um dos motivos por que mesmo hoje, decorridos dez anos de sua morte, não há como determinar um sucessor do título de mestre de go talvez seja grande presença do mestre Shusai. É possível que ele seja o último dos mestres venerados pelo espírito tradicional do go como Caminho e Arte.” (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 67-68.)
Por tudo isso, para o japonês, os jogos tradicionais, como o shogi e o go, possuem uma importância diferenciada, não se tratando de apenas um mero passatempo quando o objetivo é obter a excelência. Lembra muito as artes marciais, que também fazem parte das artes tradicionais japonesas, como o caso do karatê e do judô. Menciona-se que até o sistema de ranking dos jogos e das artes marciais são as mesmas, kyu (classe) e dan (grau). No caso do go, o iniciante começa na classe mais baixa, 20 kyu, até chegar a 1 kyu, e depois passa ao plano dos dan, que vão do primeiro ao nono. O mesmo ocorre com o shogi. (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 13.)
No Ocidente, o jogo de tabuleiro que mais se aproxima da competitividade vista entre os jogos orientais é justamente o xadrez, onde vemos grandes campeonatos e grandes enxadristas como o russo Kasparov. Mas, mesmo assim, o xadrez é um exceção, pois nunca ouvimos alguém dar tanto destaque para damas ou gamão, que são outros jogos praticados no Ocidente. Além disso, o xadrez é ainda visto pela maioria das pessoas como uma espécie de passatempo, ou um hobby, não uma profissão, o que destaca a falta de importância dada aos jogos de tabuleiro no hemisfério ocidental. Ou melhor, destaca o quanto os japoneses adoram o shogi e o go, sendo uma parte relevante de suas vidas. O seguinte trecho ilustra com maestria este caráter próprio que o shogi e o go possuem como Caminho e Arte no Japão:
“Talvez não houvesse em outros povos uma diversão ou jogos tão intelectuais quanto o go e o shogi. Talvez não houvesse em outras nações um jogo que reservasse o tempo de deliberação em oitenta horas para uma única partida que se estendesse por três meses. Teria o go se aprofundando, da mesma maneira que o teatro nô e a cerimônia do chá, nos mistérios da tradição japonesa?” (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 144.)
Fotografia da lendária partida entre o mestre Shusai e Kitani Minoru, que deu origem ao livro O Mestre de Go. |
Mesmo existindo o xadrez no Ocidente, em suma, segundo o livro, não haveria como um ocidental entender com maestria o que significa o go e shogi para os japoneses. A não ser, claro, que o estrangeiro faça uma imersão profunda nos ensinamentos desta arte, caso contrário, será somente um jogador habitual, sem nenhuma pretensão mais elevada e que joga por diversão. E isso é errado? Ao meu ver não, nem para os japoneses. A questão é mais profunda, no sentido de ter uma verdadeira completude da arte do jogo em questão, sobre todos os seus aspectos, com um aprofundamento tanto físico como mental, não diferindo muito da prática budista, por exemplo.
Outro aspecto da psicologia dos japoneses é sua curiosa competitividade, sendo complicado para um japonês jogar apenas por diversão, sem dar o melhor de si, ele sempre irá querer vencer, como se fosse a decisão de um campeonato. Isto pelo menos até a primeira metade do Século XX, visto que desde a publicação do livro O Mestre de Go muita coisa mudou no Japão, principalmente a recepção de ideias ocidentais em geral, e essa competitividade exacerbada diminui, mas definitivamente ainda persiste, seja nos divertimentos como jogos até no acirrado mundo profissional das grandes corporações. Este aspecto também pode ser visto em 3-gatsu no Lion, onde os jogadores de shogi demonstram a acirrada disputa por rankings e vitórias.
No livro O Mestre de Go, há uma curiosa passagem sobre um encontro entre o narrador, que é um jogador amador de go, com um americano em um trem. Ambos resolver jogar algumas partidas para passar o tempo. Tanto Kawabata como os outros passageiros de trem ficaram visivelmente indignados como o americano jogava sem demonstrar grande competitividade. Mesmo que jogasse aparentemente bem, faltou-lhe “desejo de vencer”. Para o americano era tudo uma diversão, um passatempo, não se preocupando se iria perder ou vencer. Este encontro ressaltou bem essa diferença de mentalidade entre os ocidentais e os japoneses que mencionei acima. Para ilustrar essa passagem, disponho a seguinte citação:
Rei, protagonista de 3-gatsu No Lion, participando de um campeonato de Shogi quando criança. |
“Para o americano, não era diferente de ter uma discussão numa língua estrangeira de qual conhecesse a gramática básica, não havia por que levar tão a sério um jogo de entretenimento; de qualquer maneira, jogar go com um estrangeiro era bem diferente do que jogar com um japonês. Refletindo sobre isso, cheguei a pensar que talvez o go não fosse compreendido devidamente pelos ocidentais. […] É claro que seria precipitado afirmar qualquer coisa tomando o exemplo de um único americano iniciante, mas ouvira dizer que, na maioria das vezes, falta compenetração espiritual combatente nos ocidentais. O go japonês é considerado uma arte, ultrapassando a concepção do chamado play ou game. Há nele um fluxo da antiga tradição do Oriente, imbuída de mistério e de nobreza espiritual.” (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 142.)
Também é importante mencionar que o amor dos japoneses pelo go e outros jogos, como o shogi, não é unanimidade entre os orientais, é algo que se pode dizer “bastante japonês”. Na China, de onde aparentemente o go foi levado ao Japão, muitos séculos atrás, não há a mesma cultura de competição que há no Japão, sendo o go meramente um passatempo ou diversão: “Falando em tradição, o go também foi introduzido na China. Porém, o verdadeiro go nasceu no Japão. hoje a arte do go na China, como há trezentos anos, não chega a ocupar um lugar de destaque. Foi através dos japoneses que o go se tornou uma arte elevada e de profundidade espiritual.” (KAWABATA, Yasunari. O Mestre de Go. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 143.)
Posso afirma com clareza de que tudo que foi dito ao go, aplica-se ao shogi. Se substituíssemos as passagens onde há menção ao go e colocássemos o shogi no lugar, ainda seriam afirmações verdadeiras. Nisso reside a semelhança entre 3-gatsu no Lion e O Mestre do Go. E se no anime o protagonista praticasse go ao invés de shogi, ainda poderia ser um anime praticamente igual, tão bom quanto. A importância não reside no jogo em si, mas como o jogo é tratado pelos japoneses, como um elemento importante de suas vidas.
Chegando ao final deste texto, acho que foi possível traçar uma relação entre 3-gatsu no Lion e O Mestre de Go, mostrando um pouco da importância que jogos de tabuleiro como o go e shogi possuem na cultura japonesa, e como essa importância transborda para o entretenimento, sejam livros, mangás ou animes. Não quero esgotar o assunto, longe disso, apenas mostrar um pouco mais de um assunto interessantíssimo que vem sendo abordado continuamente em diversas mídias, sendo 3-gatsu no Lion um exemplo de uma obra de qualidade sobre um dos mais tradicionais jogos japoneses.