Iriya no Sora, UFO no Natsu: das guerras cotidianas às guerras intergaláticas

Por trás de uma aparente série de romance, se esconde uma interessante trama sobre os efeitos da guerra

O fim do mundo lhe parece um bom cenário para um romance? Não? Pois bem, Iriya no Sora, UFO no Natsu vai tentar provar o contrário.

Imagine o seguinte: extraterrestres estão tentando invadir o mundo e os humanos têm que combatê-los. “A guerra já havia começado. Só que ninguém percebeu” [1], anuncia a protagonista nas duas primeiras frases do anime de apenas 6 episódios. Inspirado na light novel de Mizuhito Akiyama, publicada entre 2001 e 2003 pela MediaWorks, a série de OVAs produzida pela Toei Animation foi lançada em 2005. A estória segue Naoyuki Asaba, um estudante comum, que se apaixona por Kana Iriya, a última esperança da humanidade nessa guerra. 

Guerra: quem mata, quem morre e por quê?

A princípio, quando assisti a série toda de supetão, confesso que não vi nada além de um romance com uma narrativa confusa [2]. Mas, na verdade, a narrativa não é exatamente confusa, mas é apresentada de forma não-linear, o que é até interessante pensando bem. E, apesar do romance ser, sim, central, não é a única coisa que está presente em Iriya no Sora. No meio desse amor, está uma grande guerra que pode pôr fim na humanidade e que é essencialmente apocalíptica. A esse tipo de narrativa os japoneses passaram a chamar de sekaikei, ou literalmente “o tema do fim do mundo” [3]. Não vou me deter em explicar todos os detalhes desse gênero, pois o que será relevante aqui é apenas o seguinte: “Nas histórias sekaikei, não há ilustrações ou descrições dos inimigos: nós nunca sabemos o que eles são, como eles se parecem, por que eles atacam, nós só sabemos que eles trazem a crise do fim do mundo” [4]. Tirando o fato de sabermos que são extraterrestres, é precisamente isso: não sabemos suas motivações e eles nunca aparecem.

Apesar da abertura ter cenas como essa enfatizando naves de combate, Iriya no Sora não segue o estilo de Gundam e outros mecha e se foca mais numa luta não vista por nós telespectadores

A partir disso, pretendo fazer alguns apontamentos sobre as guerras de forma geral. Afinal, o que move uma guerra é a busca pela derrota do inimigo. Mas quem é esse inimigo? Por que lutamos contra eles? Bom, isso nem sempre é muito claro, principalmente para aqueles em posições inferiores dentro da hierarquia do exército e da sociedade como um todo. Pensemos na invasão do Iraque cometida pelos Estados Unidos. Os motivos para os governantes, seus ganhos e seus motivos são muito claros: a busca pelo petróleo. Mas e, para os milhares de soldados que vão ao fronte sem saber se irão voltar? Supostamente o dever cívico de combater o “mal”, no caso, a “ameaça terrorista”. Esse caso é emblemático, para mim, porque não se confirmou a presença de armas nucleares e químicas no Iraque [5], ou seja, o motivo pelo qual os soldados lutavam era falso. Me parece ser esse o caso de Iriya: ela luta contra sua vontade e passa por vários problemas por isso.


Além do romance ser evidentemente afetado pelo fato da menina não poder estar sempre presente, o pior são os danos a ela mesma, que recorrentemente espirra sangue pelo nariz, tem perdas temporárias de visão e uma dificuldade em se relacionar com as pessoas. Considerando que isso só traz prejuízos para si mesma, é normal seu desejo de fugir com seu amado. No entanto, seu desejo pessoal não pode estar acima de seu dever cívico de proteger o planeta. Afinal, os motivos da guerra não serem claros para os cidadãos comuns, possivelmente é que fez surgir o serviço militar obrigatório. Isso gera uma caçada aos dois por parte dos superiores militares. Para mim, foi impossível não pensar na música “Núcleo Base” do Ira! em que um amor é separado pelo alistamento: “Meu amor, eu sinto muito, muito, muito, mas vou indo […] Eu tentei fugir, não queria me alistar”. Bom, também é bem óbvio que dezenas de famílias ficam sem um pai depois de uma guerra. Então, não só amores são impedidos de acontecer, como amores que existem são destruídos.


Até aqui evitei de entrar em spoilers, mas para dar continuidade vou ter que revelar o fim da trama. Então, se não viu o anime, pare por aqui. Dados os avisos, as coisas ficam ainda mais nebulosas quando descobrimos que os inimigos não são apenas alienígenas. Isso pode contradizer o que eu disse sobre os inimigos serem desconhecidos em algum grau, mas a questão é que Iriya não sabe disso. Então, continua valendo a ideia do soldado que luta acreditando em um ideal, mas, na verdade, está sendo usado para fins que não são os seus. Assim como os soldados dos EUA foram levados a acreditar que combatiam terroristas, Iriya é levada a acreditar que combate apenas extraterrestres quando combate também outros humanos [6].

Da guerra do fim do mundo às nossas guerras pessoais

Discutida a guerra social, vamos nos ater a Iriya e ao Asaba e entender as guerras psicológicas pelos quais eles passam. Outra característica central do sekaikei é que ele centra-se principalmente no relacionamento entre dois amantes e uma grande narrativa universal/genérica do fim do mundo: “Os problemas internos de uma pessoa acabam sendo desenhados na mesma linha de uma catástrofe em escala mundial, como uma guerra ou esse tipo de coisa” [7]. Nesse sentido, conforme a guerra vai mal, a garota vai mal, com isso afetando o seu psicológico, como já dito. E, se os militares privam Iriya de sua individualidade, é exatamente quando ela percebe o que é importante para ela e toma uma atitude por livre e espontânea vontade (ou seja, quando seu psicológico está bom) que finalmente a guerra pode acabar (ou seja, que a guerra pode terminar “bem”).

 
O amor entre Asaba e Iriya é o que conduz a trama toda – permeada por guerras tanto no nível intergalático quanto no nível das existências diárias



Lá vamos nós para mais alguns spoilers para nos aprofundarmos nisso. Apesar de Iriya ser colocada para lutar sem saber muito bem por que luta, ela descobre em Asaba sua razão para lutar no fim das contas. No último episódio, os militares revelam, através de uma carta, que Iriya já não conseguia lutar tão bem depois de ter que matar sua própria amiga para pará-la quando o traje desta fica com defeito e põe em risco a segurança da humanidade. Embora ela suprima essa memória, só a sua morte já é o suficiente para deixá-la abalada. Então, os militares enviaram Iriya para conhecer Asaba na esperança de que ela pudesse voltar a ter um motivo para lutar. E isso dá certo. Após alguns conflitos entre os dois, eles se separaram. Mas, no momento derradeiro, Asaba revela que a ama e que está disposto a fugir com ela e sacrificar a humanidade para viver com ela. Porém, dado a reciprocidade do sentimento, ela decide que ele precisa viver, então sacrifica-se na guerra. 


Tudo isso é muito interessante para discutirmos egoísmo e altruísmo. O amor é algo tão complexo que pode ser ao mesmo tempo egoísta e altruísta, como vemos nos atos de ambos. Quer dizer, sacrificar a humanidade em prol de seu próprio prazer é algo definitivamente egoísta no sentido de que pensa em si mesmo antes dos outros – por mais que, ao mesmo tempo, ele esteja tentando salvar a Iriya, o que é algo altruísta. Por outro lado, se sacrificar pela humanidade e pelo seu amado é evidentemente uma atitude altruísta, ao passo que, ao mesmo tempo, pode ser tido como egoísta por desconsiderar a opção dele. Paradoxal, talvez. O amor prova-se um sentimento tão complicado que não pretendo chegar a uma conclusão sobre qual seria a decisão correta.  


Mais paradoxal ainda é o fato de que ela tomou essa decisão por livre arbítrio, sendo que esse era o caminho que o exército queria impor a ela. É importante notar que, se eu disse que a parte alta do exército tem um objetivo na guerra, isso não exclui que os soldados tenham suas próprias motivações. A motivação de Iriya era autêntica, por mais que tenha sido secretamente manipulada pelo exército. Assim, temos uma breve possibilidade de pensar o que move as nossas existências: vivemos para nós mesmos ou para os outros?; isso é bom ou ruim?; vale a pena morrer pelos outros? O existencialismo, tão presente nas obras japonesas, aparece aqui sutilmente. 

Considerações finais

Iriya no Sora, UFO no Natsu é uma obra interessante. Principalmente para quem gosta de romance, é plausível de algumas emoções e lágrimas certamente. No entanto, é possível extrair reflexões interessantes sobre a guerra, sobre o que leva as pessoas a matarem e a morrerem, mas também, de um modo mais amplo, sobre o porquê das pessoas viverem, o que as move, qual o papel do amor ao próximo e a nós mesmos nisso tudo. Como é um obra curta, no mínimo, será um ótimo passatempo para aqueles que buscam algo diferente do habitual.   

Notas

[Nota 1: Acabei não achando em português a série (não que eu tenha realmente procurado muito rs), e assisti pelo player do GoGoAnime: https://ww3.gogoanime.io/iriya-no-sora-ufo-no-natsu-episode-1. A cena ocorre literalmente nos primeiros segundos do episódio.]
[Nota 2: Mudei um pouco de ideia não só depois de pensar um pouco, mas graças aos dois primeiros parágrafos de “Pontos do conflito e do anime…” de uma review do Netoin: http://www.netoin.com/2011/11/conflitos-drama-veja-em-iriya-no-sora.html]
[Nota 3: Infelizmente não encontrei nenhum artigo em português que aborde centralmente essa questão. Eu irei explorar alguns aspectos do gênero ainda, mas quem quiser uma introdução mais ampla que contextualiza o aparecimento dessa narrativa no Japão, sugiro esse artigo em inglês: http://www.e-ir.info/2013/02/01/apocalyptic-imagination-sekaikei-fiction-in-contemporary-japan]
[Nota 4: LONGO, Angela. “Pós-humanismo na máquina anímica: Visões explosivas do humano animação japonesa”. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, p. 59. Disponível em <https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/157618/001019894.pdf>. Acesso em: 10/09/17.]
[Nota 5: Ver nota 9 e 11 do Speed Grapher]
[Nota 6: Vou traduzir literalmente o trecho que acontece no episódio 6, a partir dos 4:05, segundo o player do GoGoAnime (https://ww3.gogoanime.io/iriya-no-sora-ufo-no-natsu-episode-6):
“Imagine isto. A Terra está sendo invadida por OVNis. Iriya é o único piloto do caça que pode contê-los. E, se ela for derrotada na batalha final que está por vir, toda a humanidade será destruída. Se eu te dissesse isso, você acreditaria em mim? Ou que tal isso? Mantenha isso entre nós, certo? A guerra que Iriya está lutando é apenas uma guerra humana normal. A causa dessa guerra foi a invenção de um dispositivo de controle de gravidade. E, para fazê-lo funcionar, um tipo especial de percepção extrassensorial é necessário. Apenas uma criança cujo sistema nervoso passou por um tratamento especial pode operá-lo. Todo clamor público sobre OVNIs é apenas um meio para um fim: para fazer as crianças acreditarem que elas não estão matando humanos, nós convencemos elas que seus oponentes são ETs que vieram invadir a Terra. Você pode pensar nisso como um jogo. Um jogo onde você morre de verdade se for atingido. Acreditando nisso, Iriya abateu dezenas de pilotos inimigos como ela, e também matou dezenas de milhares de civis em Estados inimigos. Se eu te dissesse isso, você acreditaria em mim?”
“Imagine this. The Earth is being invaded by UFOs. Iriya is the sole pilot of the fighter that can counter them. And if she’s defeated in the upcoming final battle, all of humanity will be destroyed. If I told you that, would you believe me? Or how about this? Keep it between us, okay? The war that Iriya is fighting in is just an ordinary human war. The root cause of this war was the invention of a gravity control device. And in order to make it work, a special kind of ESP is needed. Only a child whose nervous system has undergone special treatment can operate it. All the hue and cry about UFOs is just a means to an end; to make the kids believe that they aren’t killing humans, we convinced them that their opponents are aliens who’ve come to invade the Earth. You can think of it like a game. A game where you die for real if you get shot down. Under that belief, Iriya has shot down dozens of enemy pilots just like herself, and has also killed tens of thousands of civilians in enemy states. If I told you that, would you believe me?”]


[Nota 7: THOMAS, Stefanie. “Sekai-kei as Existentialist Narrative: Positioning Xenosaga within the Genre Framework”. Tese (bacharelado) – The Ohio State University, 2014, p. 11: “One’s own inner problems end up drawn along the same line as a world-scale catastrophe, such as a war or that sort of thing.” Disponível para download em: <https://etd.ohiolink.edu/!etd.send_file?accession=osu1397573383&disposition=i>. Acesso em: 11/09/17. Esse artigo também me trouxe algumas contribuições para o que escrevi a seguir quando aborda o sacrifício de Iriya na página 98.]

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