Como combinado, continuação do artigo “Gnósticos Sonham Com Robôs Gigantes? O crescimento do gnosticismo nos animes japoneses, de autoria de Miguel Conner e Elan Gonzales. Nesta segunda parte o autor continua dissertando um pouco sobre determinadas obras que possuem influência gnóstica. Depois faço algumas análises de minha própria autoria.
Você pode conferir aqui a primeira parte do artigo aqui: Gnósticos Sonham Com Robôs Gigantes? O crescimento do gnosticismo nos animes japoneses. Parte 1.
Revolutionary Girl Utena
As protagonistas Utena e Anthy |
No dia do funeral de seus pais, a tomboy Tenjou Utena é confortada por um príncipe em um cavalo branco chamado Dios (Deus em espanhol). Encorajando ela a nunca perder sua nobreza inata, o príncipe dá a órfã um anel de sinete e disse que vai levá-la com ele um dia. Perturbada e impressionada, Utena decide que vai se tornar um príncipe também.
14 anos depois, Utena frequenta a Academia Ohtori, onde ela conhece a estudante chamada Anthy Himemiya, uma menina que está em um relacionamento abusivo com outro estudante. Utena luta para proteger Anthy e é tragada para uma série de duelos de esgrima com os membros do conselho estudantil. Anthy é referida como a Noiva da Rosa e é dada para o vencedor de cada duelo. Ela é reconhecida como a chave para uma futura revolução, e o atual campeão é constantemente desafiado pelo direito de possuir a Noiva da Rosa. Utena se torna a paladina do rei Arthur em busca do Santo Graal que é Anthy.
Utena forja alianças e cria novos inimigos dentro do Conselho Estudantil, assim como os outros estudantes da Academia Ohtori, crescendo em habilidade com cada vitória. Enquanto isso, forças místicas se chocam no enredo enquanto ela busca a verdade por trás do misterioso ser chamado Fim do Mundo, que parece estar manipulando o Torneio pelos seus próprios fins sombrios.
Verdades secretas vão lentamente sendo descobertas depois de cada duelo, Anthy e Utena como Sophia e Cristo subindo através das camadas das realidades falsificadas em despertamento físico, mental e espiritual. Similar a Serial Experiments Lain, este anime é extremamente onírico e poético, empanturrado com monólogos internos e cenários ilusórios que podem ou não terem acontecidos.
O gnosticismo de Revolutionary Girl Utena é muito mais sutil do que nas outras séries, aparecendo na superfície como um conto de fadas pós-moderno em identidades de gênero e é sexualmente mais agressivo. A única referência flagrante ao gnosticismo é a invocação do Conselho Estudantil, que foi quase que diretamente extraído do livro de Herman Hesse, Demian, quando descreve o Deus acima de Deus conhecido como Abraxas:
“Se ele não puder quebrar a sua casca, o pintinho vai morrer sem nunca ter nascido. Nós somos o pintinho; o mundo é nosso ovo. Se nós não quebrarmos a casca do mundo, nós vamos morrer sem nunca verdadeiramente termos nascido. Quebrar a casca do mundo. Por uma revolução do mundo!” (Se houver quaisquer dúvidas, a música tocada ante esta recitação é chamada Lenda do Deus Chamado Abraxas).
A Academia Ohtori é o mundo das formas ou Kenoma (vazio) dos gnósticos, um reino onde os poderes da luz e das trevas lutam através de seus vassalos de forma maniqueísta, manchuriana e maquiavélica.
O Demiurgo é personificado como um duelista chamado Akio, embora ele se enquadre na categoria gnóstica mais medieval de Satanás (adversário). Suas maquinações obscuras serve, tanto para mantê-lo no Torneio como para aumentar o seu poder para ambições futuras. O objetivo principal de Akio além de vencer é separar o ser andrógino que Utena e Anthy se tornaram, assim como as tentativas do Demiurgo com Adão e Eva no Livro Sagrado de João da biblioteca de Nag Hammadi (e o que os deuses gregos fizeram com Hermafrodito no Simpósio de Platão). Embora sempre frustrado, Akio persevera até que culmine na batalha entre a luz e as trevas no final de Revolutionary Girl Utena.
Misturando papéis de gênero, o salvador gnóstico e o divino feminino aparecem na trindade de Utena, Anth e no eventual retorno do Príncipe Dios (que passa a ser o irmão de Anthy). As funções de salvador e salvado, hierofante e sicofanta, alteram-se continuamente; em cada um se sacrifica para o outro, de várias maneiras, muitas vezes na aparência do imaginário cristão.
Mas no Kenoma, como muitas vezes acontece no gnosticismo, a personalidade (fagulha divina) pode se perder na névoa da existência. A audiência eventualmente descobre que Akio e o Príncipe Dios são um e o mesmo, suas ambições obscuras eram originalmente um altruísmo pragmático. No mesmo tempo, Utena sucumbe à sede de poder e perde seu propósito original de se tornar uma figura nobre, ao invés de somente uma órfã no universo (como todos os seres humanos são verdadeiramente no gnosticismo).
Anthy, que talvez represente a alma humana, encontra a si mesma capturada como a alma é eventualmente aprisionada entre as irregulares e confusas batalhas entre o material e o espiritual. Em mais um golpe do destino, príncipe Dios (Aiko) descobre que ele é o misterioso Fim do Mundo, ao menos Utena pode relembrar o porquê dela ter iniciado sua jornada e Anthy poderá escolher sua verdadeira lealdade.
Ghost in the Shell
Na versão em filme de 1995, este anime cyberpunk foi um sucesso comercial nos Estados Unidos. Ele abriu as portas para uma série de animações japonesas mais ousadas, que incluíram sua série de televisão, Ghost in the Shell: Stand Alone Complex. Sua influência em Matrix é quase canônica; em fato, os criadores de Ghost in the Shell, Production IG, foram chamados para criar um dos episódios de Animatrix, uma série de pequenos episódios baseados no seu mundo.
Philip K. Dick teria ficado impressionado com esse mundo alternativo onde modificações cibernéticas são tão comuns onde até mesmo o lixeiro é parte máquina. O filme lida com as façanhas da Formosa cyborg major Mokoto Kusanagi, e a força policial conhecida como Seção 9. Sua maior missão é parar um hacker chamado Mestre das Marionetes. As habilidades do antagonista são tão avançadas que ele pode realmente reprogramar a personalidade e a memória de qualquer ser humano melhorado pela tecnologia (em outras palavras, de qualquer um que deseje).
Espelhando Serial Experiments Lain (mencionado na primeira parte do artigo), a história se passa em dois mundos – o virtual e o real. Mas contrastando com Serial Experiments Lain, o mal supremo é realmente uma manifestação do mundo virtual. O mestre das marionetes é realmente uma magnífica inteligência artificial que deseja o domínio sobre a dimensão material.
Obviamente, o Mito do Demiurgo é representado pelo Mestre das Marionetes e o mito do Salvador/Divino Feminino pela própria Mokoto. No entanto, o mito da Alma Caída está presente pelo conceito de “fantasma” do filme, uma insinuação da fagulha divina e da contemplação gnóstica com a reencarnação. Um “fantasma” é a alma individual, ou uma consciência mais específica, na definição atéia de Ghost in the Shell. Não importa o quanto a maquinaria abranja um indivíduo (como Mokoto cujos componentes humanos são somente sua cabeça e sua espinha cervical) ele ou ela é considerado um ser humano com todos os direitos e privilégios. Um fantasma (consciência) pode ser transferido em qualquer outra forma mecânica, desde que haja suficiente tecido humano. Uma pessoa pode mesmo ser potencialmente reproduzida em um novo corpo sintético se o seu fantasma foi copiado em um banco de dados.
Assim, Ghost in the Shell é um jogo de xadrez entre o divino feminino e o demiurgo pela particular divina coletiva, o tabuleiro sendo suas viagens entre e dentro de várias formas sensíveis em ambas as realidades. E já que o Mestre das Marionetes as vezes oculta os fantasmas das pessoas através da manipulação de suas memórias e identidades, as fagulhas divinas individuais são muitas vezes enterradas ou perdidas como acontece em muitos mitos gnósticos. Makoto, uma salvadora sensual, é a consciência heróica que pode enfrentar de igual para igual o Demiurgo (ou Mestre das Marionetes) em confrontos intelectuais e muitas vezes violentos.
Ghost in the Shell é certamente inovador por ser o primeiro anime a lidar de forma Madura com as questões filosóficas de “o que faz um ser humano ser humano?”, “o que faz um ser humano ou máquina consciente?” e “o que é realidade?” A maioria dos animes adultos do gênero seguiu o exemplo com estas e outras questões pós modernas que são mais bem deixadas entre homens e máquinas.
Sua prole televisiva, Stand Alone Complex, introduziu várias estirpes de inteligência artificial para aumentar tanto a violência como as reflexões filosóficas (e apagar ainda mais as fronteiras entre o mundo real e o virtual).
Há muito mais series de animes com biologias gnósticas, ainda que muitos deles incorporem outros elementos gnósticos. Aqui estão alguns dos Aeons [entidades emanadas de Deus, geralmente em pares, e que existem no Pleroma]:
Irmãos Elric |
Esta popular e acessível série é muito menos gnóstica e possui mais traços do hermetismo medieval. Full Metal Alchemist se passa em um universo alternativo modelado após a gênese da Revolução industrial européia. Alquimia é superior a qualquer ciência, porém, mais semelhante à alta magia do que a antecessora da química.
Dois irmãos, Edward e Alphonse, tentam ressuscitar sua falecida mãe usando alquimia. Seu ritual dá terrivelmente errado, e Edward apenas salva seu irmão prendendo sua alma em uma armadura (a máquina e suas questões são tratadas mesmo neste cenário relativamente pastoral). Os irmãos se tornam alquimistas do Estado a fim de encontrar a famosa Pedra Filosofal que poderia conceder à Alphonse um corpo humano novamente [e ressuscitar sua falecida mãe]. A imagem gnóstica da cobra numa cruz é prevalente em todo Full Metal Alchemisty [destaca-se também as claras referências à Árvore da Vida, Sephiroth, na série, inclusive na abertura].
Roger Smith e seu mecha |
A série se passa na Cidade Paradigma, a última metrópole sobrevivente em um mundo devastado. Os sobreviventes remanescentes não tem somente suas memórias do cataclismo perdidas, eles são presos por lembranças nebulosas, alucinações e pesadelos vívidos. Eles permanecem em um estado de quase loucura em um ambiente de estado policial. Embora futurista, há um pesado elemento de filme noir em The Big O.
O protagonista principal é um homem conhecido como O Negociador, a única pessoa que inexplicavelmente recupera suas memórias do mundo de antes de “O Evento” que dizimou a civilização humana. Suas memórias e talentos são revelados como uma série de progressos, justaposto enquanto ele abate as memórias de outros cidadãos. Torna-se evidente ao Negociador que a Cidade Paradigma é uma fábrica em massa quando ele começa a perfurar a realidade por trás da realidade da situação da humanidade.
A série termina com a revelação que o mundo inteiro é uma realidade simulada criada por uma sofisticada e senciente tecnologia. A batalha decisiva segue entre várias facções da Cidade Paradigma desejosos de controlar a tecnologia dos deuses. Mas tudo terminado com o mundo começando a ser metodicamente deletado e resetado. O Negociador é uma espécie de clone mimético do Negociador anterior cuja função primária era negociar com a tecnologia dos deuses para a sobrevivência. Este efeito faz dele um salvador gnóstico recorrente similar ao Neo em The Matrix.
Protagonistas de Last Exile |
Os ingredientes gnósticos não são imediatamente provados. O ambiente do anime é um mundo moderadamente terraformado que tem todas as características de uma fantasia “steampunk”. O planeta é conduzido por uma organização elitista e fascista chamada A Guilda. Este grupo obscuro manipula um conflito entre duas nações em guerra. Alguns dos patentes elementos gnósticos são o capitão da aeronave salvadora que é crucificado em uma cruz, uma imperatriz exilada chamada Sophia que detém as chaves para a paz e a verdade, e uma conclusiva rebelião contra A Guilda pela civilização uma vez que A Guilda realiza seus jogos de Svengali [Svengali é o nome de uma personagem de ficção no romance Trilby de George du Maurier, datado de 1894. O romance criou o estereótipo de um hipnólogo de mau caráter que persiste no tempo, virando um adjetivo para manipuladores de mal caráter, como A Guilda em Last Exile].
Last Exile também gira em torno dos cruciais “mistérios sagrados” que trazem uma espécie de “gnosis” aos personagens principais. O grego Koiné é curiosamente a linguagem escrita dos seus habitantes [Koiné é uma forma de grego bastante difundida nos primeiros séculos da era cristã, servia como uma “língua franca” comercial no mediterrâneo na época do Império Romano, sendo inclusive a língua na qual foi escrito o Novo Testamente. Também, curiosamente no livro de Philip K. Dick, “Valis”, é a língua na qual o protagonista recebe suas mensagens “divinas”].
Por fim, há o tema de relembrar o passado, uma existência idealizada (Terra) que contém as respostas para as situações presentes que esperam esperançosamente que tragam à humanidade a sua liberação e individualidade.
Haruhi Suzumiya, a descontraída deusa da série |
Deus esquece que ele é Deus e cai no Kenoma [mundo material e visível], tomando a forma de uma petulante estudante. Ela possui ambos os traços de Sophia e do Demiurgo. O famoso episódio “it’s a Good Life” da série “Twilight Zone, sobre uma criança onipotente, vem imediatamente à mente [“Twilight Zone” foi um seriado de ficção científica e paranormalidade das décadas de 50 e 60]. No entanto, esta série de anime é mais esotérica e introspectiva].
Nava Sol Bianca que dá nome à série |
Um grupo de voluptuosas piratas espaciais buscando pelo maior tesouro do universo, um lendário objeto conhecido como o “G’Nohsis” (Gnosis). Depois de uma tempestade de aventuras, a tripulação da nave Sol Bianca adquire o G’Nohsis. Elas descobrem que o objeto não é mais que um disco de armazenamento de dados guardando informações sobre o paradeiro de um lendário planeta primitivo que foi habitado uma vez pela humanidade. Claro, o mundo é a Terra, há muito perdido e talvez guardando segredos para a iluminação (ou apenas um verdadeiro tesouro para alguns das piratas espaciais).
Pedaço da capa do primeiro volume do mangá |
O Evangelho Gnóstico é agora um Mangá (história em quadrinhos japonesa), mas vale a pena mencionar. A série, atualmente em curso, transparece no futuro onde uma grande pandemia erradicou grande parte da população mundial. Como Ghost in The Shell e Time of Eve (mencionado na primeira parte do artigo, que tem um sabor “Cyberpunk”, embora mais industrial na textura). O enredo trata de um campeão chamado Elijah e seus conflitos com a Federação Propater e vários sindicatos do crime. Até este ponto, o mangá não revelou nenhum tema gnóstico subjacente; mas certamente emprega terminologia gnóstica, o que poderia representar temas mais profundos quando o autor decidiu introduzir as reflexões filosóficas inevitáveis.
Um dos principais personagens é Sophia, uma “hacker” com um corpo completamente cibernético. Similar à divina Sophia das linhagens mais radicais do gnosticismo, ela é brutalmente melancólica e promíscua por causa de seu sentimento de “ausência de um lar”, e propensa ao desespero histérico. Ela falhou em atacar seu filho com uma faca, talvez ecoando a tentativa de Sophia em destronar sua própria prole, o próprio Demiurgo, em certos dramas gnósticos.
A história inclui Aeons, soldados robôs quase invencíveis, assim como uma personagem chamada Ennoia (um dos nome do Divino Feminino no gnosticismo). As notas de rodapé admitem que ambos eles foram nomeados em homenagem aos “deuses gnósticos”. O robô protetor de Elijah se chama Cherubim, uma referência ao conceito gnóstico de um guardião angélico ou superior. O Mito do Salvador toma a forma de Maya, uma inteligência artificial semelhante a Deus.
Mesmo se o movimento moderno do gnosticismo no Ocidente se enfraquecer como sempre faz na história, parece que continuarão a brotar temas gnósticos (e outros ocultos e místicos). A popularidade da animação japonesa está crescendo. Seus criadores pegaram da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal Ocidental, e aproveitaram seus frutos do “marketing”. No começo do artigo foi explicado o porquê do anime ser perfeito para cristalizar o gnosticismo em um contexto moderno agradável às massas. A chave é “catar as pérolas na lama” por causa da quantidade de material que é produzido pela indústria dos animes a cada ano.
Mas é certamente um gênero digno e útil para carregar a tocha da “gnosis”. A cultura ocidental fica na zona de segurança com temas reciclados de fantasia medieval lendária e “pseudo-iluminação”; ou aperta os olhos para encontrar suas próprias jóias para entender a natureza humana, ironicamente no Oriente, deixando para trás essas pedras sem brilho como Avatar, The Last Airbender, Dan Brown ou Philip Pullman, ou alguns lampejos de reconhecimento gnóstico em alguns episódios de Dr. Who ou nas HQs de Alan Moore. [Eu discordo em parte com o autor, particularmente gosto de Avatar, The Last Airbender].
Os japoneses podem não ter conquistado o mundo como se temia nos anos oitenta. Mas eles certamente tiveram um romance com o coração sombrio do gnosticismo de tal forma que provavelmente faria que Philip K. Dick, William Blake, Valentim e Simão Mago desejarem pilotar suas próprias unidades Evangelion a fim de lutar com os anjos monstruosos, ao invés de apenas se expressarem com os prosaicos tinta e papel.
Fim do artigo, e como prometido, agora começa a parte inédita, vou tentar apresentar mais alguns animes e mangás que abordem temas gnósticos selecionados por mim.
Irisviel, o receptáculo do Graal em Fate Zero |
O enredo da franquia de Fate segue uma premissa básica. A série se passa na cidade japonesa de Fuyuki. Nesta cidade ocorre um ritual chamado de “Guerra do Santo Graal”, o qual concede desejos para quem o possuir. Para que o Santo Graal se materialize, o Santo Graal escolherá sete Magos e lhes dá sete espíritos heróicos, os Servos, divididos em sete classes de acordo com as suas habilidades, estes são personagens históricos ou míticos. O mestre possui um contrato com um dos sete espíritos heróicos. O mestre deve provar que está qualificado a possuir o Santo Graal, para isso deve eliminar outros mestres.
As referências gnósticas são bem visíveis, a própria simbologia do “Santo Graal” é preponderantemente gnóstica. O Graal no gnosticismo, assim como a Pedra Filosofal dos alquimistas, significa a obtenção da “gnosis”, ou seja, a realização máxima da alma. Também o Graal está intimamente ligado ao Rei Arthur e seus cavaleiros que segundo o mito empreenderam uma busca ao Graal, o que reflete no desejo da Saber Rei(Rainha) Arthur por ele.
Reza a lenda que o Graal estaria escondido em algumas das fortalezas Cátaras do Sul da França, sendo perdido, ou talvez escondido, durante a perseguição à heresia cátara. O Sagrado Feminino está relacionado aos “homúnculos”, Irisviel e Illya são os exemplos mais conhecidos. Criadas para servir como receptáculo do Graal, sem o qual este não poderia se manifestar na forma adequada, podem ser comparadas ao simbolismo inerente à Maria Madalena.
Um ponto interessante é que o Graal na franquia Fate não está relacionado à “gnosis” ou salvação pessoal, ele possui uma natureza maligna, visto ser uma corrupção do Graal “bonzinho”. O Graal da franquia estaria mais relacionado com o Demiurgo, ressaltando seus aspectos de dominação e maldade, visto exigir sacrifícios muitas vezes sangrentos para conceder sua graça.
Madoka como deusa |
Este é um anime “mahou Shoujo” bastante popular e que é voltado mais para o público adulto. O anime aborda questões que normalmente não são trabalhadas em séries “mahou shoujo” tradicionais.
Resumidamente, sua história gira em torno de Kaname Madoka, uma estudante de 14 anos que vivia uma vida pacata até um evento estranho acontecer. Ela é jogada em uma complexa rede de eventos, descobre a existência das “bruxas” que são as responsáveis pelas mortes de muitos humanos tomadas como meros suicídios ou tragédias naturais. Descobre também que existem as Garotas Mágicas que realizam um contrato com uma criatura chamada Kyubey em troca de um desejo devendo combater e derrotar as bruxas.
O cerne da série gira em torno de Madoka e Homura, sendo que esta última tenta a qualquer custo evitar que Madoka se transforme em uma Garota Mágica, ao longo da série se descobre que Homura possui a capacidade de viajar no tempo e já tentou diversas vezes impedir que Madoka se tornasse uma Garota Mágica, não sem razão.
Descobre-se então a dura verdade, que os Incubadores (Kyubey) são seres extraterrestres que procuram combater os efeitos da entropia do universo e que não possuem sentimento. Eles acabam descobrindo a poderosa energia derivada das emoções de meninas adolescentes em sua transição, eles começaram a conceder desejos para determinadas meninas e transformá-las em Garotas Mágicas, para que elas pudessem amadurecer e se transformar em bruxas, proporcionando a energia necessária.
Bom, o que há de gnóstico neste enredo? Kyubey funcionaria como o Demiurgo, que como dito no artigo, na ficção científica pode assumir a forma de uma entidade alienígena. Embora sua intenção se levada em conta a ordem do universo seja justa, para os humanos ele se trata de uma criatura dominadora e manipuladora. Como o Demiurgo, de certa forma os Incubadores criaram o nosso mundo, visto que somente por sua atuação o ser humano evoluiu do estágio primário de desenvolvimento.
Outra semelhança dos incubadores com o Demiurgo seria a necessidade de exigir sacrifícios vivos, terríveis, no anime a perdição das almas das Garotas Mágicas. Também há a questão do engano, Incubadores/Demiurgo mantém os seres humanos num estado de ilusão e de eterno retorno para manter a ordem do mundo material, além de aprisionar a “alma” (partícula Divina do gnosticismo) das garotas em um mero objeto, o que ressalta que o corpo material é meramente uma morada transitória e descartável.
A série também brinca com as diversas camadas da realidade e definições de espaço/tempo, as constantes viagens temporais realizadas por Homura destacam este aspecto, sendo este tema bastante comum nas obras de ficção científica com uma pegada gnóstica.
Madoka é sem sombra de dúvidas o Sagrado Feminino, a Sophia dos gnósticos, o Santo Graal, tanto é que ela se torna uma Deusa ao fim da série, visto que com as intermináveis repetições do ciclo de sua existência realizadas por Homura ela desenvolveu o poder de realizar qualquer desejo. Então ela assume seu estado divino e age no sentido de limpar o mundo da existência das bruxas, em todas as épocas, passado, presente e futuro, retirando parte do poder maligno de dominação dos Incubadores, impedindo a existência de novas bruxas, ofertando outra fonte de energia aos incubadores.
Homura é um caso curioso, ela de certa forma pode ser considerada uma salvadora no sentido de que sua jornada resumidamente não passou de uma busca e consequente, embora inesperada para ela, despertamento da Madoka/Sophia, e de uma incessante luta contra a ordem estabelecida pelos Incubadores/Demiurgo.
Mas o destaque desta personagem aparece no terceiro e último filme relacionado à franquia “Mahou Shoujo Madoka Magica 3 – Rebellion”. Onde ela, desejosa por se unir à Madoka deusa, mesmo sem intenção racional, mas com um mero desejo insuportável, acaba criando seu próprio mundo de ilusão! Se tornando o próprio Demiurgo! Além disso, aprisionou Madoka/Sophia no mundo criado por ela.
Hikaru, Umi e Fuu, as salvadoras de Cefiro |
Durante uma excursão escolar à torre de Tóquio, três estudantes: Hikaru, Umi e Fuu são convocadas pela Princesa Emeraude para salvarem Cefiro. Ao chegarem lá são recebidas pelo Guru Clef. Clef conta tudo sobre aquele mundo mágico, e que Princesa Emeraude havia sido raptada pelo sumo-sacerdote Zagato. As três garotas, foram convocadas para se tornarem Guerreiras Mágicas de Cefiro. Para conseguir isso, Clef deu a cada uma delas uma armadura que evolui conforme seu desempenho e poderes diferentes. A história se divide em duas etapas, sendo que ao final da primeira ocorre um tremendo “plot twist”.
No caso desta obra quero falar especial daquela criaturinha branca, fofa e engraçadinha, o Mokona. No entanto ele esconde mais do que parece. Ele parecia não falar e servia para indicar o caminho que as garotas deviam seguir, bem como servia como comunicador entre o guru Clef e elas, além de vez em quando invocar objetos, comida, etc. Ocorre que ao final da série é descoberto que ele não era nada menos que Deus, sim, o Deus criador do universo e de todos eles!
Mokona criou a Terra, criou o mundo de Cefiro, e todas as dimensões paralelas do multiverso criado pela Clamp, sendo tal conceito expandido pelas obras Tsubasa Reseirvoir Chronicle e XXX Holic, onde há a constante viagem por diversas dimensões distintas. Inclusive na mitologia expandida da Clamp, o Mago Clow e a feiticeira dimensional Yuuko criaram mais dois Mokonas, semelhantes ao original, Soel e Larg, sendo um branco, fêmea, e um preto, macho. Bem, como eles foram criados à imagem e semelhança do Deus criador, impossível não associá-los a Adão e Eva.
Se eu for comparar Mokona com o Demiurgo devo fazer umas ressalvas. O Mokona não parece declaradamente mal, eu o classificaria como irresponsável e descuidado. É sabido que ele criava cada dimensão, como a Terra, testando para ver se os seres humanos sobreviviam e conseguiam manter-se em harmonia e quando via que as coisas davam erradas, tentava de novo, tanto é que criou Cefiro, um mundo onde os sentimentos das pessoas possuem poder, sendo necessário o sacrifício eterno do “pilar” de Cefiro, uma pessoa escolhida para orar continuamente e manter o mundo em ordem, algo bem cruel.
Hikaru, uma das protagonistas, enfrenta a ordem estabelecida de Cefiro e destrói o sistema do pilar quando descobriu ser a escolhida para se tornar o novo pilar no lugar da falecida princesa Emeraude. As Guerreiras Mágicas claramente personificam a figura do Salvador, vindas de um mundo distante para salvar o mundo de Cefiro, especialmente Hikaru Shidou, que se sacrifica por Cefiro, até se dar conta que seja mais conveniente rebelar-se com o sistema do Pilar, enfrentando o que o Mokona criou.
A equipe original de Digimon |
Esse anime é uma franquia bastante famosa. A história da maioria das temporadas é quase sempre a mesma, um grupo de crianças é levado para um mundo digital onde habitam formas de vida feitas de dados denominadas Digimons, ou os Digimons invadem o mundo real.
A franquia Digimon, em especial suas primeiras temporadas agradam bastante as crianças pelo seu entretenimento de qualidade. Entretanto em Digimon foram tratadas muitas questões psicológicas e filosóficas com uma profundidade grande para um anime do gênero, especialmente a primeira e a terceira temporada, agradando os mais velhos também, como eu.
Uma análise gnóstica da franquia se daria no aspecto de realidades virtuais, inteligências artificiais e coisas do gênero, que são elementos constantes nas ficções científicas com traços gnósticos como a de Philip K. Dick. Inclusive, segundo informação de um leitor do blog, a série de OVAs que estão sendo lançados a partir deste mês possuem referências claras ao gnosticismo, com menção direta ao Demiurgo.
A própria existência dos Digimons como seres artificiais dotados de inteligência os quais foram criados pelos humanos, mas desenvolveram-se numa escala evolutiva própria, ilustra bem o tema, sendo mais evidenciada esta questão na terceira temporada, onde os Digimons tentam sobreviver conquistando espaço como seres vivos, no entanto os seres humanos tentam os destruir ou meramente os controlar, tais como o Demiurgo faria com os seres humanos. Também expõe questionamentos acerca do que é real e do que não é.
A menina e seu ovo |
Já falei sobre este curioso filme Angel’s Egg, a pintura animada e tive como ponto de análise na época uma perspectiva cristã do enredo diante dos elementos apresentados na época. Mas como ressaltei na referida postagem, Angel’s Egg é de longe uma das obras de mais complexa interpretação, sendo possível analisá-la de uma grande miríade de pontos de vista filosóficos, psicológicos e religiosos distintos.
O mesmo ocorre com o gnosticismo, olhando atentamente abundam na obra simbolismos e arquétipos gnósticos. A menina e o ovo são respectivamente Sophia e a Gnosis. A menina habita um mundo triste e desolado que representa nosso mundo material, o ovo que ela carrega com ela é a iluminação, a Gnosis, entretanto ele é inútil enquanto não ser chocado ou aberto, como ocorre em Revolutionary Girl Utena e na obra Demian de Herman Hesse, por exemplo, sendo o mundo o ovo, nós só conheceremos a verdade quando quebrarmos o ovo.
A menina como Sophia possui o potencial de quebrar o ovo e obter o esclarecimento, entretanto ela se vê insegura e preocupada, quando aparece a figura do Salvador, o jovem de cabelos brancos que acaba por quebrar o ovo, seu equipamento, ou arma, seja o que for, lembra claramente uma cruz, o que ressalta seu aspecto messiânico. Se pode ainda mencionar diversas referências gnósticas, como os pescadores que apenas perseguem incansavelmente sombras dos peixes, representando os seres humanos em suas prisões materiais, perseguindo uma ilusão, desconhecendo a verdadeira iluminação.
Arslan, o protagonista do anime |
Anime da temporada passada, onde o protagonista é o Edward Elric com cabelos prateados. Brincadeiras a parte, a semelhança se dá, pois a Hiromu Arakawa é autora de ambos os mangás, embora em Arslan Senki ela só seja responsável pela arte, visto a história ser derivada de uma “light novel” do mesmo autor de “Legend of The Galatic Heroes”
O príncipe Arslan, após fugir de uma guerra que devastou seu país, decide reunir um grupo de aliados que buscam vingança. Para isso eles vão precisar formar um exército para vencer os milhares de soldados que invadiram Pars, a terra natal de Arslan, controlados elo Lord Silver Mask, que tomou posse do trono.
O gnosticismo aparece com referências claras ao demiurgo gnóstico. O príncipe Arslan e o escravo capturado acabam conversando, aí o escravo lusitano (Lusitania é uma nação que busca conquistar Pars, e não, eles não são portugueses) explica que seu povo adora um único deus, Yaldabaoth, ou seja, o Demiurgo Gnóstico, responsável pela criação do mundo, sendo possível identificá-lo com o Deus dos judeus, cristãos e muçulmanos. É ainda ressaltado o caráter terrível da divindade, estampada pelo fanatismos dos seus fiéis, “converta-se ou morra”.
Finalizo por aqui o post, mas deixo claro que o tema está absolutamente longe de ser esgotado, ainda há uma infinidade de animes e mangás que eu poderia citar com referências gnósticas nos mais variados níveis, tanto é que deveria ter analisado mais mangás, os quais ficaram um tanto negligenciados.
Entre outras obras que eu poderia citar com referências gnósticas estariam inclusos Ergo Proxy, Xenosaga, Interstella5555, Haibane Renmei, Elfen Lied, Metropolis, Homunculus, The Music of Marie, Bokurano, entre muitas outras. Quem sabe eu não faço uma parte 3 futuramente. Até a próxima.