Em 03 de Novembro de 2015 foi divulgado pelo Dissidência Pop a notícia de que a editora brasileira JBC iria lançar um mangá de autoria de Gou Tanabe com adaptações de contos do autor H. P. Lovecraft para mangá. O anúncio havia sido dado por Cassius Medauer no podcast Henshin Online nº 55. Atualmente o mangá já se encontra para ser comprado pela internet e nas bancas de revista, sendo encontrado por acaso pelo autor deste blog, comprado e consequentemente lido, portanto, vamos para sua análise.
Só para situar o contexto da obra, o mangá em análise foi adaptado e ilustrado por Gou Tanabe (um autor um tanto desconhecido) em volume único, sendo que já está em elaboração uma segunda coletânea de contos ilustrados baseados na obra de H. P. Lovecraft, como A Cor que Caiu do Espaço. O mangá, com o título original The Hound And Others Stories foi publicado em 2014 na revista Comic Walker, apresentando os três seguintes contos adaptados: The Hound, The Temple e The Nameless City. No Brasil, os títulos ficaram:
O Cão de Caça (já vi The Hound traduzido no Brasil pela editora Hedra com o nome O Sabujo, mas O Cão de Caça ficou melhor, pois nem todo mundo sabe o que é um sabujo, que é um grande cão de caça), O Templo e A Cidade Sem Nome.
Sempre é bom informar, mesmo que seja em um pequeno resumo quem foi H. P. Lovecraft, para o caso de algum leitor desconhecer a sua obra, para isso cito a breve biografia dele que consta na orelha do mangá:
“Nascido em 1890, nos Estados Unidos, Lovecraft é considerado um dos principais autores do gênero de horror da história e inspirou diversos mestres do terror contemporâneos, como Stephen King [O iluminado], Alan Moore [V de Vingança] e Junji Ito [Uzumaki]. Seus contos, que hoje fazem parte do imaginário coletivo, eram publicados em revistas pulp. Entre suas obras mais famosas estão ‘O Chamado de Cthulhu’, ‘A Sombra Vinda do Tempo’ e ‘Nas Montanhas da Loucura’. O reconhecimento de seu trabalho veio apenas após sua morte, em 1937, a mitologia de suas obras (principalmente o mito de Cthulhu) foi expandida por diversos autores e vários de seus cenários e personagens continuam fazendo aparições em outras obras, inclusive animes e mangás. Entre criadores que incorporam elementos lovecraftianos em seus trabalhos estão Chiaki J. Konaka (roteirista de animes) e Hideyuki Kikuchi (escritor e mangaká).”
Lovecraft já é figura carimbada aqui no blog, tirando a postagem na qual publiquei o anúncio da JBC: JBC Anuncia o Lançamento de Adaptação em Mangá de Contos de H. P. Lovecraft., já fiz a análise dos elementos lovecraftianos dentro da franquia Digimon: Lovecraft e Digimon. Mais semelhanças que o esperado.
Feitas as devidas apresentações, antes de começar a análise da obra em si, é necessário fazer algumas considerações. Primeiramente, eu não li os três contos adaptados. Sim, mesmo eu sendo um admirador da obra de Lovecraft eu não li tudo que ele escreveu ainda, embora eu possa afirmar que li bastante coisa, infelizmente Gou Tanabe pegou uns contos dele não muito famosos. Então minha análise se limitará ao material adaptado e pelo o que eu conheço da obra de Lovecraft, pois não é preciso ter lido os contos previamente para perceber se a obra pegou ou não a essência da “coisa”.
Segundo, uma adaptação é sempre uma adaptação. Diante das características marcantes e únicas de Lovecraft, sempre foi necessário certo cuidado para adaptar muitas de suas obras, sendo que muitas das histórias que escreveu apenas podem existir na forma escrita, visto o tênue risco de perder a essência e o fantástico de suas histórias. Por exemplo, cores que não existem no espectro das cores humanas, como representar isso? Se bem que em um mangá isto seria mais possível, visto ser preto e branco. Ângulos, geometria não-Euclidiana e outros absurdos geométricos, etc, etc…
E o mais importante, uma das coisas que mais prende na escrita de Lovecraft é justamente sua forma de narrar os fatos. Não é simplesmente “dar medo”, é a sensação de assombro por estar de frente de algo inimaginável que transcende a realidade de uma forma absurda. Esta sensação é auxiliada pela sua extensa adjetivação, que é criticada por alguns, embora no seu caso eu ache fundamental. Diante desta breve exposição está o risco de se adaptar Lovecraft, seja para os quadrinhos, para um anime ou filme que seja, pois nunca uma adaptação conseguirá fielmente interpretar e expor a sensação de se ler Lovecraft na fidelidade de suas maneiras.
Li o mangá, e embora tenha gostado do mesmo, não apreciei da mesma forma que aprecio os contos de Lovecraft na forma original. Não digo no que concerne a história, que tratarei mais a frente, mas como disse acima, as sensações de se ler Lovecraft não podem ser passadas para uma adaptação de forma fiel. Não consegui ficar prendido no enredo como quando leio uma história escrita pelo próprio Lovecraft. Mas, adianto, isto não é uma crítica, pois gosto e quero que cada vez mais haja adaptações de sua obra, mesmo sendo quase impossível o derivado superar sua origem neste caso. Também não tiro o mérito de Gou Tanabe, visto ter embarcado na custosa missão de adaptar Lovecraft, o que não é para qualquer um, e, dentro dos limites impostos, fez um bom trabalho, conforme ficará mais evidente no decorrer desta análise.
E quanto à fidelidade da adaptação para com o original? Embora eu não tenha lido os três contos da coletânea, nada me impediu de investigar pelo menos a sinopse e os pontos chaves dos mesmos, e, com essa breve análise, concluí que aparentemente as adaptações seguem bem fiéis a ordem dos fatos narrados nos contos. Entretanto, verifiquei algumas “liberdades” de Gou Tanabe nos enredos, as quais indicarei posteriormente. Claro que esta análise a respeito da fidelidade está sujeita à mudanças até que eu definitivamente leia os respectivos contos.
Então vamos analisar conto a conto de forma breve, expondo também uma igualmente breve introdução:
Primeiramente temos O Templo, neste conto, parafraseando a própria sinopse do mangá, temos um submarino à deriva e uma estranha maldição, mais especificamente, é a história da insanidade causada a bordo de um submarino alemão após a destruição de um navio inglês e o achado de uma pequena parte de uma escultura de mármore, culminando em descobertas fantásticas nas profundidades do oceano. E justamente, logo de cara, verifiquei uma modificação do original!
Mesmo não tendo lido o conto original, a constatação da modificação foi simples, visto que a história acontece dentro de um submarino alemão da época da Primeira Guerra Mundial, já a adaptação de Gou Tanabe nos apresenta um submarino da época da Segunda Guerra Mundial. Não que eu seja um especialista em submarinos, a descoberta segunda análise que fiz por haver uma bandeira da Suástica no submarino e quanto aos uniformes utilizados pelos soldados. Fiquei cismado, porque Lovecraft não viveu durante a Segunda Guerra mundial, pois morreu em 1937. Entendo a escolha de Gou Tanabe, visto ser mais fácil e prático adaptar alemães em guerra ambientados na Segunda Guerra Mundial do que na Primeira.
Este fato não prejudica o entendimento da obra, nem é de grande relevância, mas fiquei um pouco chateado, talvez eu esteja sendo exigente demais. Mas enfim, o conto progride com o seu andamento devido e culmina numa descoberta avassaladora e um desfecho típico dos contos lovecraftianos. Achei um bom conto para ser adaptado, não exige muitas reviravoltas nem desenhos de criaturas extraordinárias. A adaptação conseguiu me manter curioso até o fim.
O segundo conto adaptado é aquele que nomeia o mangá, O Cão de Caça, e, novamente citando a sinopse oficial, trata-se de “dois amigos violadores de túmulos que tentam escapar de uma criatura terrível”. É justamente isso, mas dando mais alguns detalhes importantes, estes dois amigos são estudiosos de ocultismos, e, inclusive, segundo é mencionado no conto, eles leram uma cópia do Necronomicon. Este livro é muito especial, aparecendo em muitos dos contos de Lovecraft, causando excitação no leitor sempre que é mencionado, diante de sua importância. Este misterioso livro foi escrito há muito tempo pelo Árabe Louco Abdul Alhazred, e é o melhor meio para manter contato com as entidades lovecraftianas e realizar todo tipo de magia negra mais perversa possível, existindo poucas cópias desse livro no mundo inteiro.
Voltando ao conto, esses dois amigos investigam um túmulo de um antigo e famoso violador de túmulos, mas tudo acaba mal, por mexerem aonde não deviam ter mexido. Neste conto aparece a primeira criatura lovecraftiana deste mangá, nada muito grandioso como Cthulhu mas quebra o galho eficientemente na história. É o típico conto lovecraftiano no sentido de expor como a curiosidade e a sede de conhecimento humano são perigosas, visto que os seres humanos não estão preparados para vislumbrar as verdades mais profundas, sendo meras criaturas insignificantes no contexto do universo, e, portanto, quem envereda no caminho da busca destes saberes arcaicos acaba por se tornar um louco, ou algo muito pior. Uma adaptação interessante, por ser um conto que insere elementos importantes da mitologia lovecraftiana.
E, por último, temos o conto A Cidade Sem Nome, que, para mim, foi o melhor conto dos três, onde “um explorador se embrenha pelas ruínas de uma antiga civilização e descobre que a realidade pode ser muito mais aterrorizante como imaginava”. Como já disse acima, é justamente este terror de encarar a realidade que norteia muitos dos contos de Lovecraft, e neste não é diferente. Este conto em específico é parecido com os contos e histórias de cunho arqueológico, onde pesquisadores ou exploradores encontram ruínas ou restos de civilizações de criaturas alienígenas antiquíssimas que fizeram morada no planeta terra há muitas eras, e, ocasionalmente, estes exploradores descobrem revelações sobre a verdadeira origem da raça humana.
Este foi o conto que mais gostei pela junção dos seguintes fatores, um mistério antigo, uma raça primordial, a questão de entrar de cara no desconhecido em ruínas e cavernas e não saber o que vai encontrar, o suspense e o medo. E por fim, neste conto, não sei se há no original, mas sua introdução foi muito bem vinda, há a citação mais icônica do Chamado de Cthulhu: “Não está morto o que pode eternamente jazer, e após eras estranhas até a morte pode morrer”. Assim termina a adaptação destes contos de H. P. Lovecraft, e ao final, Gou Tanabe tira um espaço para algumas palavras suas sobre o trabalho de adaptar o mestre do terror cósmico para o mangá, que acho bom citá-las:
“Noites em que não podemos dormir. A sensação de alguém estar atrás da porta. Uma voz inaudível. Medos e ansiedades que todos nós já sentimos. quando éramos crianças. Uma intuição primordial da morte. Lovecraft é o escritor (sacerdote) que criou a escuridão crepuscular na forma de mitologia. Chego a ficar assombrado com a riqueza de sua criatividade. Criei estas obras como se fosse um dos apóstolos dos deuses criados por ele. Não sinto como se tivesse terminado. A imaginação continua a crescer. “Desenhe assim”, “por que desenhou deste jeito?”… Continuo ouvindo as vozes dos deuses.”
Essa citação é muito importante para se entender um pouco o mangaká, visto que como já havia dito, não é qualquer um que encara este desafio de adaptar Lovecraft seja para qual mídia for. Perceber-se um comprometimento sincero por parte de Gou Tanabe, tanto é que até realmente “ingressou” de corpo e alma no universo lovecraftianos dos mitos de Cthulhu. Por isso se percebeu na leitura um esmero de alguém que já leu e apreciou o autor. Assim, chego a conclusão de que a adaptação foi muito bem feita, ressalvando os pontos negativos já mencionados acima, como a dificuldade de transmitir a “aura” de horror nos contos, e algumas liberdades criativas do enredo.
Mas é importante também analisar o aspecto dos desenhos de Gou Tanabe e consequentemente o seu traço. Percebe-se logo de cara que seu traço, principalmente no que concerne o design dos personagens foge do convencional dos mangás, ficando mais próximo à realidade de um corpo humano, se assemelhando até ao traço de uma HQ ocidental. Embora haja esta característica de aproximação com as feições reais dos seres humanos, sua arte não é das mais detalhadas na questão dos traços individuais, mas percebe-se um cuidado especial quanto aos detalhes do ambiente, como cadeiras, piso, árvores, pedras, utensílios domésticos, etc…
Gou Tanabe também faz bastante uso de sombras, o que foi fundamental para conferir uma “aura” sombria ao mangá, sempre priorizando tons escuros mais próximos do preto com pequenas iluminações ocasionais para quebrar a escuridão, como uma lâmpada de um poste ou uma lamparina, e ainda o uso de borrões e rabiscado, criando um ambiente sujo quando necessário. As criaturas também foram bastante detalhadas e tiveram o seu horror realçado com o já citado uso de tons escuros para conferir uma atmosfera sombria e atemorizante. Assim, verifica-se que a arte do mangá casou com a proposta dos contos, criando o ambiente ideal para um conto de H. P. Lovecraft.
Sobre a edição nacional
Além destes aspectos também comentarei sobre a edição brasileira editada e comercializada pela JBC. Primeiramente, destaca-se o bom acabamento do mangá que pode ser considerado um acabamento de um livro, uma capa suficientemente grossa e resistente com orelhas nas quais consta a breve biografia de Lovecraft e uma sinopse breve do mangá. A capa segue o padrão do original, não há muito o que comentar. As folhas são brancas e a espessura delas é boa, quase não há transparência, claro que o fato do mangá manter sempre tons escuros também ajuda. O mangá é relativamente fino, possui apenas 170 páginas e o preço de capa é R$ 21,90. Um pouco mais caro que um mangá convencional, mas condizente com o preço devido, visto a qualidade do mesmo, seja de folhas, como de acabamento. A JBC está de parabéns pelo lançamento, tanto pela qualidade do mesmo quanto por ser um título fora do convencional que vemos por aqui.
Considerações finais
Bom, considerando a parte de história e de arte como todo, o autor cumpriu o que prometeu, adaptou três contos de H. P. Lovecraft com uma fidelidade grande, embora não perfeita, dentro dos limites do possível. Bem como, embora a emoção e o prazer de se ler o mangá não tenha consegui chegar no mesmo patamar de ler um conto de Lovecraft escrito, se deve destacar que é uma adaptação, e já devemos nos considerar sortudos por ter sido adaptado de uma forma bastante fidedigna. Verifica-se um cuidado do autor em tentar recriar a atmosfera de terror e assombro que é característicos das obras lovecraftianas. Sendo moderadamente bem sucedido nesta missão. Então, sim, é uma leitura válida para aqueles que conhecem lovecraft, bem como para aqueles que não o conhecem, visto ser uma obra de terror bastante competente, embora não dê “sustos” a esfera do horror neste mangá se dá em um âmbito muito mais psicológico.
Hoje estou transcrevendo bastante coisas, mas acho fundamental transcrever o que o editor do mangá, Cassius Medauar escreveu na introdução do mangá sobre o fato do leitor ter tido ou não contato com a obra de Lovecraft antes de ler esse mangá: “Se você nunca leu nada dele, aqui é uma boa chance de conhecer seu trabalho com a transposição de três de seus contos em quadrinhos. Se já conhece, vai curtir poder ver a bela transposição feita em mangá com um clima sombrio incrível.” Faço minhas as palavras dele, eu, que já tive contato com Lovecraft, realmente curti ler esse mangá, e aqueles que nunca leram nada do autor, pode servir como um elemento que desperte a curiosidade para ler as obras escritas por H. P. Lovecraft.
E como estou analisando a edição nacional como um todo, também devo dizer que valeu os R$ 21,90 gastos, tanto pelo bom conteúdo como pela qualidade do material empregado na sua produção, sendo uma aquisição inestimável na estante de qualquer apaixonado por histórias de horror. Então, ficamos por aqui em mais um post do Dissidência Pop, até a próxima.