Kamisama Dolls – Do shinto ao mecha.

Todo mundo já está careca de saber que a mitologia do Japão é riquíssima, milhares de anos que formaram uma amalgama entre diversas tradições, tais como o xintoísmo e o budismo. No século XX, a ficção se desenvolveu no arquipélago japonês de forma também notável, dando origem a diversos gêneros de animes e mangás, como o caso dos mechas, os velhos e conhecidos robôs japoneses. E quando temos uma união entre todos estes elementos citados? Em Kamisama Dolls temos justamente isto, um embate entre “deuses”, robôs de madeira ancestrais controlados pela vontade de seu mestre.

Kamisama Dolls é um anime de 13 episódios que foi ao ar de 6 de julho de 2011 até 28 de setembro de 2011. Foi produzido pelo estúdio Brain’s Base, o mesmo de animes famosos como Durarara!!, Mawaru Penguindrum e Tonari no Kaibutsu-kun. A obra é baseada em um mangá de mesmo nome de autoria do mangaká Hajime Yamamura. A direção do anime ficou a cargo de Seiji Kishi, o mesmo diretor de animes como Angel Beats, Assasination Classroom e Danganrompa. Kamisama Dolls ainda recebeu 6 especiais de mais ou menos 2 minutos, lançados conjuntamente com com lançamento da obra em Blu-ray e DVD.

Sobre o anime, seguimos a saga de Kyouhei Kuga, um estudante universitário que abandonou seu vilarejo e se mudou para Tóquio, tentando esquecer alguns eventos traumáticos do passado. Em certa ocasião, Kyouhei foi para uma festa da sua turma de faculdade, onde tentou se confessar para Hibino, uma garota que gostava e que por uma coincidência, veio do mesmo vilarejo dele. Mais tarde na mesma noite, ele e Hibino encontram um corpo ensanguentado no elevador. Igualmente de manira abrupta, sua irmã mais nova, Utao, chega em seu apartamento com seu kakashi, um deus de madeira controlado por ela.

Utao veio avisar Kyouhei que seu amigo do passado, Aki, fugiu da prisão no vilarejo com o seu próprio kakashi e foi o responsável pelo assassinato no elevador. Aki acaba aparecendo no apartamento e confronta Kyouhei, ocorre uma briga entre ele e Utao, o lugar fica destruído. Sem lar, Kyouhei e a irmã se mudam para a casa de Hibino, em virtude do pai dela ter o dever de acolhê-lho por ter vindo do mesmo vilarejo. Muitos fatos são logo de cara expostos, Kyouhei era o controlador do kakashi Kukuri, sendo que desistiu de possuí-lo por querer fugir do passado traumático, muito embora ele tenha percebido que fugir não adiantou de nada, visto que o seu passado retornou para confrontá-lo.

Também ficamos sabendo que Kyouhei faz parte do clã Kuga, que juntamente com o clã Hyuuga, são os guardiões do segredo dos deuses kakashis. Ambos os clãs mantém uma harmonia apenas protocolar, não sendo raros os conflitos entre ambos. Tanto Kyouhei como Utao, bem como Aki, pertencem ao clã Kuga. Eventualmente, somos apresentados a membros do clã Hyuuga, possuidores de kakashis, os quais possuem uma variedade de motivações e objetivos.

Koushirou, futuro líder do clã Hyuuga busca Aki em Tóquio, com a proposta de levá-lo a fazer parte do clã Hyuuga, ou somente caçá-lo se for o caso. Kirio, um garoto da idade de Utao, possui uma ligação profunda com o clã Kuga, e por último, temos Mahiru, uma das personagens mais descontrolas de todos os animes, a encarnação ideal de uma yandere perfeita, e principal antagonista do anime.

Basicamente, o anime gira em torno dos conflitos existenciais de Kyouhei, de como ele lida com o passado macabro e como pode ajudar a pequena irmã a segurar o difícil fardo de ser uma seki, ou seja, uma controladora de kakashi. Também tem que lidar com seu amigo Aki, que parece ser apenas um psicopata assassino, mas é mais do que isso, uma vítima da repressão e das injustiças do vilarejo. Não há um vilão principal propriamente dito, nem uma conspiração de nível global, há inimigos aparentes e problemas localizados a se resolver.

O que me fez ter interesse neste anime de 2001 foi justamente a boa animação e o conceito muito bacana de robôs de madeira. Embora não esteja entre os melhores animes, faz algumas coisas bem feito. Uma das grandes coisas de Kamisama Dolls é a superposição de temas e estilos. Há comédia para dar e vender, cenas dramáticas e outras de violência explícita. Nesse ponto, lembra muito o anime Elfen Lied. Só para constar, ambas as primeiras cenas destes dois animes, começam bem violentas. E para fechar a comparação, há várias cenas de ecchi, mas nada que não seja esperado de um habitual anime japonês, como cair de mãos em cima da mocinha peituda ou flagrá-la tomando banho.

Saindo destes elementos mais básicos e tradicionais dos animes modernos, Kamisama Dolls possui uma premissa muito interessante. O nível de detalhes e a complexidade da trama não deixa a desejar, embora muita coisa tenha ficado mal explicada. Dentre os temas explorados do anime, eu poderia citar os mais relevantes como: folclore japonês, luta de classes, política e vingança. Entretanto, um dos maiores pontos positivos fica mesmo para como a obra lida com a moral. Há uma divisão tênue entre quem é vilão e quem é mocinho, ninguém é o que parece.

Começamos pelo Aki, que mais parece um psicopata genérico, mas que no fundo possui suas motivações de odiar o vilarejo. Koushirou, num primeiro momento, parece um vilão delinquente, mas acaba se mostrando um homem sensato e que prioriza a paz entre os clãs. Até mesmo Mahiru, que podemos chamar de antagonista principal, é apenas uma menina mimada apaixonada pelo protagonista. Retirar o típico antagonismo entre bons e maus, tornou todo mundo neste anime mais “cinzento”, o que conta pontos positivos, fugindo dos clichês do gênero.

Penso que 13 episódios foi pouco para Kamisama Dolls explorar decentemente o seu potencial latente. Apenas foi raspada a camada mais superficial dos temas e conflitos apresentados. Isso me faz mencionar outra coisa que odiei no anime, me refiro ao final em aberto. Geralmente há finais em aberto quando se tem uma perspectiva de uma segunda temporada, nenhuma outra explicação faria sentido no caso de Kamisama Dolls e seu final pilantra.

A última cena deixou clara a necessidade e a insinuação de uma continuação, onde o protagonista enfrenta um inimigo que apareceu anteriormente no anime e é um assunto do seu passado, motivador de diversos outros conflitos, como o lado obscuro de Kyouhei que aparece quando está raivoso e a admiração de Mahiru. Inclusive é uma extensão do problema que aparece na primeiríssima cena de Kamisama Dolls. Isso sem falar de muitos outros conflitos surgidos e parcamente trabalhados. Foi uma surpresa negativa chegar ao fim do anime sem muitas coisas estarem concluídas.

Na época do lançamento do anime (2011), o mangá ainda estava em publicação, só terminando a serialização em 2013. Eu não sei o quanto o anime adaptou até o momento de seu último episódio, mas, muito provavelmente, havia planos para uma segunda temporada. Mas tudo é uma questão de sucesso e vendas, e muito provavelmente o anime não teve o retorno financeiro esperado, o que engavetou o projeto indefinidamente, ou melhor dizendo, praticamente definitivamente, uma vez que transcorridos mais de 9 anos é praticamente impossível qualquer continuação. Mesmo com esta situação lamentável, tirando as pontas soltas, vamos focar no que há de bom em Kamisama Dolls.

Um dos melhores elementos do anime e um dos mais misteriosos diz respeito ao vilarejo de Karakami. Obviamente, manter o anonimato do lugar e proteger o segredo dos kakashi é fundamental, então a rigidez não é algo impensável. Não são raras as narrativas onde o protagonista foge de um lugar rígido no interior, o que faz Kamisama Dolls ser um drama familiar na melhor definição do termo. Karakami é um lugar misterioso, cada personagem reage de uma forma, Kyouhei quer esquecer que o lugar existe, enquanto Aki quer buscar vingança.

Para mim, um dos episódios mais memoráveis de Kamisama Dolls foi o sétimo, onde finalmente é revelado o passado da vila, o que aconteceu para o Aki ser preso e Kyouhei abandonar o posto de seki e sair do vilarejo. Neste episódio, conhecemos a professora Senou, uma mulher doce e dedicada que somente arranjou emprego na vila pois havia participado de um escândalo que arruinou a maioria de suas perspectivas de trabalho. 

Mas este emprego foi sua perdição, a professora Senou foi vítima da rígida sociedade local. Quando não aceitou os assédios de um dos membros do clã Kuga, passou a sofrer represálias e perseguições. Neste ponto, podemos observar como um sistema fechado pode ser cruel com qualquer um que vem de fora. Não quero entrar mais profundamente no tema, pois revelaria muito mais spoilers relevantes, mas já é possível ter uma ideia do tipo de tragédia envolvida na questão.

Contudo, o elemento que mais chamou a minha atenção positivamente para o anime é justamente o conceito dos kakashis. Traduzindo do japonês, kakashi significa literalmente “espantalho”. O que faz sentido, por serem grandes robôs feitos de madeira e materiais antigos, não deixam de serem espécies de espantalho. Uma antiga magia lhes dá vida e durabilidade para as suas partes mecânicas.

Não se sabe ao certo a história dos kakashis, mas se abe que são oriundos de um período muito antigo da história do Japão e que não há conhecimento para construir novos. Ou seja, é uma tecnologia perdida. Se são frutos unicamente de uma tecnologia esquecida do passado, ou se foram entregues por uma inteligência alienígena ou mágica, nada é informado. Há a família capaz de concertá-los, mas nem mesmo eles podem criar um do zero, imagino se alguém algum dia tentou fazer uma engenharia reversa.

Esse elemento dos kakashis se mistura com o próprio folclore xintoísta. Utao visivelmente é uma miko, ou seja, uma jovem sacerdotisa que pratica e realiza rituais do xintoísmo. O design dos kakashis é visivelmente inspirado por temas japoneses antigos. Não se parecem muito, mas o caráter “alienígena” ou “místico”, me fazem lembrar das antigas estatuetas dogu, figuras humanoides com proporções exageradas que datam do período Jomon, que se estendeu de 14.000 a 400 anos antes de Cristo.

Esse conceito de tecnologia perdida do passado me faz lembrar de todas aquelas teorias sobre os alienígenas do passado, tão bem divulgadas pelo canal History Channel nos últimos anos. Quem teria erguido as pirâmides do Egito? Ou quem empilhou as pedras de Stonehenge? E uma questão melhor ainda, quem construiu os kakashis em Kamisama Dolls? Brincadeiras de lado, é um conceito muito bacana, robôs de madeira oriundos de tempos imemoriais. Só por esse elemento o anime merece atenção.

E continuando a falar dos kakashis, as cenas de ação foram muito bem elaboradas, praticamente não há uso de elementos em computação gráfica, o que confere maior plasticidade na hora das lutas. A variedade dos robôs é bem grande, cada um possui suas próprias características e poderes. O design também é inovador, como pode ser visto nas imagens. Não são robôs comuns, com pernas e braços, dá para ver que o criador do mangá caprichou na hora de desenvolvê-los, Kokuri, o principal, parece um pino com longos braços, enquanto outros assumem as mais variadas formas possíveis.

A trilha sonora do anime pode não parecer memorável, mas há um elemento sonoro que merece o destaque. Cada kakashi possui uma espécie de melodia que é tocada quando está em ação. Cada destas músicas reflete também a personalidade de seu guardião. Um elemento simples, mas que confere originalidade ao anime. E só para complementar, eu sei que os kakashis não são mechas propriamente ditos, não são muito grandes nem pilotáveis, mas penso que se encaixem no imaginário japonês dos robôs, não sem uma grande dose de criatividade e originalidade.

A gloriosa aparição de Mahiru Hyuuga, a melhor personagem do anime.

Antes de finalizar, quero comentar ainda sobre os seis especiais de mais ou menos dois minutos. Em algumas coisas eles são engraçados, mas não agregam em nada a história. Como é comum na indústria dos animes moderna, especiais de uma série televisionada muitas vezes servem unicamente para propósitos de fan-service, e esse é justamente o caso aqui em Kamisama Dolls.

Nestes especiais temos um episódio unicamente para vermos Hibino malhando para perder peso, com um destaque imenso em sua comissão de frente avantajada, até outro onde vemos Mahiru torturando sadicamente um subalterno seu, de um ponto de vista como se fosse o expectador que tivesse sendo torturado, ou seja, apenas para satisfazer um fetiche. Isso sem falar de algo muito mais polêmico, nestes extras há uma erotização da Utao, que diga-se de passagem, possui apenas 11 anos. 

Sei que é um pouco fora de propósito, mas quero expressar que gostei muito da personagem Mahiru Hyuuga. Eu sei que ela é uma louca e sádica, a yandere perfeita, apaixonada pelo protagonista a torna um grande clichê. Mas mesmo assim, ela é super engraçada. A menina é completamente transtornada e desce a porrada em todo mundo. Esse parágrafo é só isso mesmo, queria apenas dizer que gostei da Mahiru.

No fim das contas, Kamisama Dolls pode não ser um grande anime como um todo, mas possui uma série de bons elementos, e no que conseguiu fazer bem, fez muito bem. Eu poderia definir essa obra como um bom anime mediano, divertido e envolvente. Eu assisti praticamente um episódio depois do outro, se isso não faz um anime bom, não sei o que mais faz. Kamisama Dolls foi um anime ambicioso e com grandes ideias, mas que infelizmente não teve o espaço devido para brilhar e nem direito a uma segunda temporada para fechar direito as coisas. O que eu tinha par dizer sobre o anime é isto, espero que tenham gostado.

Por fim, sejam pisados pela Mahiru!

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