Mesmo sendo um mangá voltado para a demografia shounen, já que foi publicado na Shounen Jump+ (mesma publicação de mangás como Fire Punch, Spy x Family e Ao no Flag), ele foge um pouco do lugar comum, tratando com sutileza temas pesados, como é o caso da violência doméstica e o peso do arrependimento, com uma pitada de fantástico que torna o conjunto da obra mais saboroso.
Toumei Ningen no Hone foi serializado de 26 de setembro de 2017 até 13 março de 2018, totalizando 4 volumes e 22 capítulos, um mangá curto, mas não tanto assim. O seu autor é o Jun Ogino, que por mais incrível que possa parecer, é mais conhecido pelos seus hentais, além de outros mangás não tão famosos. Contudo, sem sombra de dúvidas, até o momento Toumei Ningen no Hone é a sua melhor obra e a mais relevante. Mas já adianto desde já que neste mangá você não encontrará nada minimamente relacionado a conteúdo sexual de qualquer tipo.
Mas sobre o que se trata esse mangá? Tudo começa no seio da família de Kinomiya Aya, nossa protagonista, uma garota tímida e reclusa. Em um primeiro momento parece que a sua família é normal, com pais amorosos e um irmão mais velho, mas as aparência enganam. O pai de Aya constantemente bate na sua mãe, acusando-a dos mais diversos deslizes, enquanto Aya observa tudo assustada e seu irmão simplesmente ignora tudo, como se não morasse no local, não demonstrando empatia por ninguém, buscando sobreviver mediante a sua atitude egoísta. É dentro deste contexto de família disfuncional que começa Toumei Ningen no Hone.
A mãe de Aya tem que esforçar para manter a casa e educar seus filhos enquanto é agredida constantemente. Principalmente as duas vivem em constante terror e isso repercute na vida pessoa de Aya, que se tornou uma menina reclusa e sem amigos, não sem motivos, mas por ter medo de se aproximar das pessoas e invejar as famílias de seus colegas de classe. Um dia, quando Aya observou mais uma vez o seu pai sendo violento com a sua mãe, ela começa a manifestar um curioso poder depois de experimentar uma grande dose de estresse, ela consegue se tornar invisível.
Não precisa ser um grande psicólogo para perceber que a invisibilidade de Aya é bastante simbólica, servindo metaforicamente como um meio dela desaparecer de um ambiente doentio e se esconder de todos, já que não sabe quem lhe poderá machucar ou ferir. Aya eventualmente passa a aprender a usar os seus poderes e até onde eles alcançam, ela se torna muito confidente em relação a eles e então o verdadeiro começo do mangá se inicia, com uma ação que repercutirá drasticamente na sua vida. É engraçado que só de ler a sinopse do mangá já dá para perceber que vem algo pesado pela frente, e é isso mesmo, até o título do texto deixa isso subentendido.
Devo ressaltar que é extremamente difícil falar sobre esse mangá sem dá spoilers, já que o principal evento da obra se dá logo no início e não é interessante ser revelado de qualquer maneira. Mas não se preocupem, primeiro vou escrever um pouco mais sobre os aspectos técnicos e de enredo dessa obra e quando eu precisar realmente soltar um ou outro spoiler eu avisarei com antecedência, estamos combinados? Pois bem, acho que é mito interessante dispor sobre o tipo de sobrenatural que é trabalhado em Toumei Ningen no Hone e como ele é usado na ficção.
Diferente de obras que claramente podemos classificar como fantásticas, onde há criaturas de outro mundo e até outros mundos inteiros, magia e poderes de todos os tipos, no presente caso temos algo que pode ser chamado de realismo fantástico, também chamado por alguns de realismo mágico. Essa escola literária surgiu no começo do Século XX principalmente na América Latina, com nomes famosos da literatura mundial como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Gabriel Garcia Márquez.
Vou citar algumas das principais características do realismo fantástico: a mais importante é justamente que os elementos mágicos ou fantásticos são percebidos como parte do cotidiano dos personagens, sem maior alarde, é tudo muito intuitivo, sem nenhuma ou muito pouca explicação. Ou seja, nunca veremos tais eventos considerados sobrenaturais ou mágicos explicados, nem cientificamente nem dentro da própria magia. Não quer dizer que não seja um elemento importante, mas que a sua importância não pode eclipsar a história e que a sua explicação e seu entendimento não se fazem necessários para o enredo.
E é justamente dentro desse estilo narrativo que se encaixa Toumei Ningen no Hone. Há a invisibilidade de Aya, esse poder possui sua importância narrativa como estopim do conflito principal do mangá e como símbolo para a psique conturbada da protagonista. E é isso, não faz diferença sabermos como ela fica invisível, que reações químicas acontecem no seu corpo ou se foi uma fada que lhe deu o poder. A invisibilidade é simplesmente um fato que a Aya, e ,eventualmente, outros personagens devem lidar com.
Toumei Ningen no Hone possui uma estrutura narrativa bastante singular. Se inicia com um evento cataclísmico na vida da protagonista e se desenvolve de maneira lenta e contínua, demonstrando a busca da harmonia interior, findada por mais um momento de revoluções no final do mangá. Mesmo sendo uma obra curta (4 volumes), não é tão pequena a ponto de tornar tudo afobado, nem longa demais para se tornar um mangá arrastado. Penso que Toumei Ningen no Hone possui a duração certa para o tipo de história que foi contada.
A partir desta parte o texto apresentará algumas revelações sobre o enredo. Deixo a opção de vocês lerem ou não. Adianto que uma das revelações de enredo sobre a qual irei tratar é exposta logo no primeiro capítulo, então leiam por sua conta e risco, ok?
Pois bem, em Toumei Ningen no Hone, Aya usa seus poderes para por um fim à violência doméstica sofrida pela sua família. Ela mata o seu pai, esfaqueando-o no peito no meio da rua e em plena luz do dia. O que para qualquer um significaria a imediata prisão, para ela foi o crime perfeito, já que estava invisível no momento. Nem mesmo Aya sabe o motivo ao certo de ter tirado a vida de seu pai se foi por pena da mãe ou pelo fato de não conseguir levar uma vida normal e ansiar por liberdade. Seja como for, esse ato não exatamente a livrou do sofrimento, só o fez mudar de forma.
Toumei Ningen no Hone é portanto uma história sobre como Aya passa a lidar com a culpa pelo crime gravíssimo de ter matado o próprio pai. Ela não se engana, sabe que mesmo que ele fosse um canalha e espancasse a mãe, matá-lo não era exatamente a melhor coisa a se fazer. Aya continua isolada, só que desta vez por culpa do peso do crime que praticou. Tanto é que ela em muitos momentos enxerga o fantasma do pai, que a atormenta e joga na cara todos os seus defeitos.
Se as aparições do pai se tratam de um caso de um fantasma de verdade eu tenho minhas dúvidas, pois tudo leva a crer que é uma metáfora dos conflitos internos de Aya. Ou seja, ele não morreu, continua vivo na mente de nossa protagonista, a atormentando. Por isso, Aya necessita trilhar uma jornada psicológica de amadurecimento para de uma vez por todas enterrar esse complexo paterno que tanto a tortura.
Não é incomum na ficção histórias sobre criminosos por ocasião, que mesmo em certas condições e contextos que poderiam minimizar a culpa dos seus atos, sofrem horrores psicológicos intensos pelo ato cometido, e penso que a história mais famosa deste tipo é Crime e Castigo, de Dostoiévski. Seria muito fácil para Aya se entregar, mas segundo ela mesma, como não dava nenhum valor para a própria existência, se entregar não seria nenhum fardo, não seria uma verdadeira punição, por isso ela foi arrastando sua existência.
Aya desejava sua purificação, somente quando descobriu a verdadeira amizade junto de suas duas grandes amigas, tão diferentes entre si mas que a complementavam e sentiu pela primeira vez o que era desfrutar de uma vida plena e feliz, percebeu que havia chegado o momento de sua punição. Ela delimitou que se entregaria quando terminasse de escrever as letras de umas músicas para sua amiga e ouvisse o arranjo.
Chegou a ser realmente muito insistente a repetição do “mantra” de Aya sobre se entregar quando chegasse o momento derradeiro. Acho que todo mundo que ler deve ter desejado inicialmente que ela não fizesse isso, afinal de contas ela finalmente havia encontrado a felicidade e assassinou o pai em um momento de extremo estresse em um contexto de violência doméstica. Mas nós não somos a Aya, o fantasma da morte do pai devia ser “exorcizado”, e o único meio era ela se entregar.
É realmente curioso ela desejar ser feliz para depois se entregar, para dar valor à punição. Isso me lembra muito o processo de catarse. E não estou falando da plataforma de financiamento coletivo, e sim do conceito da psicologia. Catarse seria experimentar a liberdade quando se vive uma situação opressora, através de uma ação que represente uma resolução forte o suficiente para que isso possa ocorrer. Para Aya se entregar seria sua catarse libertadora. Se ela precisa disso para seguir em frente, quem somos nós para julgar?
Aya passou por uma grande jornada de confissão de seu crime para buscar a auto-expiação, um preparativo para antes de se entregar. Primeiramente ela contou que cometeu o crime para suas amigas, depois visitou todo mundo o qual a morte do seu pai foi revelante. Visitou o seu avô paterno, descobrindo o que levou o seu pai a se tornar violento (um forte complexo materno mal resolvido), depois o seu irmão negligente, que só assumiu essa postura para se defender, e por último sua mãe. Só depois de toda essa saga de conhecimento ela se viu preparada para o que viria a seguir.
Ainda é curioso mencionar que a invisibilidade de Aya é o termômetro que mostra sua harmonia interior. Esse poder é a manifestação psicossomática de seu trauma. Ou seja, ele só apareceu como uma válvula de escape para Aya sobreviver em um contexto de violência e abandono. Ela já se sentia e queria ser invisível, o seu corpo só reagiu à esta necessidade. No nosso mundo dito real, essa invisibilidade poderia assumir muitas formas, como algum vício ou isolamento. Quando Aya se sente pertencente a um grupo, ela deixa de pode se tornar invisível, e quando seus traumas se manifestam novamente, ela volta a ter o poder.
Quando Aya resolve finalmente se entregar, o poder já de ficar invisível não mais se manifestava, pois já tinha passado pelo processo de catarse. Ela estava plena e consciente do que iria enfrentar. Não que fosse ficar feliz em ser presa, mas os sentimentos sinceros que descobriu com suas amigas a ajudariam a cumprir sua pena. Desta forma, mesmo sendo um final agridoce, ele estabelece uma mudança efetiva na vida de Aya, assim como Raskolnikóv passa em Crime e Castigo.
Contudo, teve um ponto do mangá que acho que os leitores mais detalhistas não vão deixar passar batido e pode ser considerado uma falha no enredo. Imaginem Aya indo se entregar e dizendo que matou o pai enquanto estava invisível? Se ela ainda pudesse utilizar sua invisibilidade, não seria um problema provar sua alegação, mas como os seus poderes só se manifestam quando o seu trauma está ativo, ela certamente passará como louca e não conseguirá a purgação que tanto almeja. Só estou imaginando, mas dentro desta situação cabem duas possibilidades, ou ela fica transtornada com a situação e passa a manifestar novamente o seu poder, ou desiste disto e volta a levar uma vida normal, aceitando tudo o que ocorreu.
De qualquer forma, Toumei Ningen no Hone continua sendo um mangá bem construído, com um enredo penetrante e catártico, não só para a própria personagem como para os próprios leitores, já que dificilmente terminam esse mangá sem ao menos apresentar alguma emoção aflorada. Uma leitura gostosa e com o seu próprio ritmo, lembrando os clássicos da literatura japonesa, como um barco que desliza calmamente em um lago. Essa foi minha impressão de Toumei Ningen no Hone, e qual será a sua depois de ler esse mangá?