Um garoto vê um estranho objeto caindo o céu, vai até o seu encontro e acha um casulo, abre-o e retira um alienígena de dentro que mais parece uma espécie de borboleta antropomórfica moe.
O rapaz a leva para casa, coloca-a em uma caixa de papelão e a cria como um bichinho de estimação exótico. Bem, nisso se resume Ogeha, simples né? Mas há mais do que isso nesse polêmico mangá, pois o que dizer quando o garoto possui tendências sociopatas e trata a alienígena de uma maneira que pode ser chamada de abusiva? Mas porque consideramos abusiva? Só porque ela é moe ou kawaii? Se fosse apenas um inseto grande e nojento poderia ser tratado de qualquer maneira e até morto? Esses são alguns dos questionamentos levantados por este mangá bem peculiar.
Ogeha foi publicado de 14 de fevereiro de 2015 até 17 de agosto de 2016 na revista Comic It, uma publicação com poucos mangás serializados. O mangá é de autoria de um mangaká chamado Oimo, sendo Ogeha seu único trabalho serializado até o momento, além de algumas participações em uma coletânea de yaoi e em uma antologia hentai muito bizarra, sobre yuri, lactação e mulheres grávidas (sério, esse autor possui gostos bastante controversos…, Ogeha é até bem leve pensando bem). Mas não pensem errado, Ogeha não é um hentai, não tem nenhuma sexualização, longe disso, ele é até mesmo classificado como um josei com temáticas de ficção científica e drama.
O nome Ogeha vem de ageha, que é como se chamam as borboletas da família das papilionidae, elas não possuem um nome próprio em português, mas em inglês são chamadas de Swallowtail butterfly (borboleta rabo de andorinha). essa família é caracterizada por borboletas grandes e coloridas, o qual incluem mais de 550 espécies. Essas borboletas, no Japão, estão relacionadas mitologicamente com a morte, sendo mensageiras que transitam entre o mundo dos vivos e dos mortos. No contexto do mangá, Ogeha é o nome dado pelo protagonista Satoshi Kiji à criatura em forma de borboleta encontrada por ele, sendo uma simples variação de ageha, já que as asas do ser pareciam realmente um inseto deste tipo.
Kiji é um protagonista interessante, como eu disse no primeiro parágrafo, ele acha a menina borboleta dentro de um casulo. A estranheza do rapaz já começa ali, quem é que, em seu juízo perfeito, sai do meio da noite para abrir um casulo gigante no meio da floresta e leva uma criatura claramente alienígena para casa? O curioso é que Kiji não cogita nada de estranho na situação, para ele a Ogeha é apenas um inseto interessante, grande e nojento. Ele possui uma curiosidade genuína pela garota alienígena, como se fosse um menino com sua coleção de insetos. Ele a arrasta pelas pernas, chama de nojenta e esquisita, mas não com raiva e sim com um sorriso no rosto.
Neste ponto entramos em quem é o Kiji. O mangá não o aprofunda em todos os seus meandros, mas é perceptível que ele é um rapaz com uma carga elevada de dissociação com o mundo à sua volta, poderíamos chamá-lo de sociopata talvez, pela sua falta de inteligência emocional e empatia. Ele frequenta a escola, conversa com os colegas e faz tudo que um garoto normal faria, mas é só, ele não se interessa por absolutamente nada que se faça socialmente, como por exemplo, a menina que gosta dele não tem a mínima chance de se aproximar, pois Kiji vive fechado em seu mundo.
O mesmo ocorre em relação aos estudos, ele está prestes a se formar na escola, devendo, como a maioria dos jovens, prestar um vestibular e até mesmo frequentar um cursinho. Ocorre que Kiji não possui a mínima vontade de estudar ou seguir qualquer carreira pré-estabelecida no momento, e deliberadamente foge de suas obrigações, e isso nos aproxima dele, pois é algo relativamente comum dos adolescentes passarem. Desta forma, mesmo com suas tendências sociopatas, ele é bem comum, um adolescente que não sabe o que quer da vida e que curte colecionar insetos.
Mas nada disso foi o que fez a maioria dos leitores torcerem o nariz, o pior mesmo foi o tratamento conferido à Ogeha, que pode ser considerado bastante negligente. Ele a colocou para morar em uma caixa, constantemente a chamava de “suja” e “nojenta, a arrastava pelas pernas, e para coroar tudo, frequentemente a deixava sem alimentos, até se dar conta que devia alimentá-la, essa situação melhora ao longo do mangá, mas é bastante perturbadora, isso sem falar de deixá-la suja e não se dar conta do mau-cheiro, além de outras abusos variados. Por isso, resumem este mangá como “um sociopata torturador de uma alienígena moe”. Mas não é tão simples assim.
Kiji não é mau com a Ogeha, ele apenas a trata como um bicho de estimação exótico. Claro que ele não a trata como um cachorro, mas sim como um inseto guardado em um pote com furos, ninguém dá muita bola para insetos em potes além de alimentá-los de vez em quando. E como plus, ela é um inseto gigante, com demandas muito maiores do que se fosse apenas um besouro. Evidente que Kiji é problemático em não se dar conta de que a Ogeha é um ser consciente (que até aprende a falar) e com sentimentos, com a mesma complexidade e necessidades de um ser humano, mas isso é fruto de sua própria falta de empatia com os seres vivos.
Neste contexto, se forma um relacionamento bastante doentio para os padrões humanos. Para Ogeha, que somente conheceu o Kiji como ser humano, ser tratada mal lhe parece natural e isto é bastante perturbador. Em pouco tempo se forma uma reação de dependência bastante forte, pois Ogeha só come quando Kiji lhe alimenta, só toma banho quando ele percebe que ela está fedendo, entre outras coisas, para ela ele é seu salvador e protetor. O curioso e que Kiji não tem más intenções, pelo contrário, mesmo em sua mente quase sem empatia ele tenta ajudar Ogeha, sendo que seu tratamento melhora com o tempo, ele inclusive pergunta para o professor como cuidar de uma borboleta, e fica realmente preocupado quando ela foge ou fica doente.
Já comentaram que a menina borboleta sofre da síndrome de Estocolmo, que ocorre quando uma pessoa continuamente submetida pro agressões e intimidações, passa a sentir empatia e até amor pelo agressor. Só que essa análise é errônea, pois Ogeha nunca teve um ensinamento do que seria um padrão de conduta normal, para ela aquilo é a realidade e Kiji nunca foi um agressor. Na verdade ele é um cuidador relapso e maldoso por omissão, não por ação. Um acontecimento digno de nota se deu quando ele chegou do colégio e a Ogeha estava assistindo Titanic na televisão, sendo que desligou o aparelho sem se importar com o apelo dela para continuar assistindo.
A vida da criatura é bastante limitada, vivendo sempre trancada no quarto. Para que ela não fugisse, Kiji inventou que todos os outros humanos eram maus e terríveis, o que reforça ainda mais a situação de submissão dela. Não dá para saber ao certo se ele realmente se preocupa com ela, nutrindo sentimentos ternos, mesmo que de sua forma distorcida, ou se a preocupação dele se resume a preocupação que temos quando uma propriedade nossa desaparece. A questão é que tanto ele como ela precisam um do outro. Penso que para Kiji a Ogeha é um ser que lhe dá apoio e atenção sem lhe cobrar nada, nem exigir que ele estude ou trabalhe, mas apenas querendo ele como ele realmente é.
O mangá deliberadamente deixa as motivações da Ogeha ter chegado na terra um tanto abertas, já que o autor quis exclusivamente focar nos aspectos da relação entre as duas personagens principais. Contudo, foi interessante a inclusão das duas lagartas alienígenas para pelo menos contextualizar a Ogeha um pouco. Diante disto, curioso observar como o mangá subverteu o famoso tropo do invasor alienígena insectoide que quer espalhar ovos pela Terra, mostrando que um plano destes pode dar absolutamente errado, como no caso da Ogeha, que originalmente deveria ter crescido mais antes de ser arrancada do casulo e colocar diversos ovos em vários lugares, com o intuito de expandir sua espécie.
Outro elemento interessante foi o fato do Kiji, em nenhum momento, ter se dado conta da conspiração alienígena que ocorria ao seu redor, nem ao menos percebeu que estava sendo caçado por lagartas alienígenas ou que a própria existência da Ogeha desafiava a lógica e devia ter algum motivo obscuro de sua chegada na Terra. Nesse aspecto sua completa falta de empatia e entrosamento social proporcionou que encarasse a sua situação com a mais completa naturalidade, e até que isso lhe salvasse a vida. Kiji praticamente transitou em seu próprio mundinho do começo ao fim da obra, apenas tendo em mente que Ogeha era uma estranha borboleta objeto de sua estranha e relapsa atenção.
Vocês devem estar se perguntando onde eu quero chegar com isso, talvez que eu queira justificar os maus tratos recebidos pela Ogeha pelo fato de que o Kiji era problemático socialmente. Mas não é isso. O que quero passar é que mesmo que seja muito desagradável acompanhar certas partes do mangá, é evidente que Kiji evolui ao longo da obra, mesmo que não se torne completamente uma pessoa normal, então não vejo motivos para crucificá-lo como um vilão ou apenas um garoto psicótico, ele é bem mais que isso. Isto até ilustra muito bem como são os relacionamentos reais, uma sequência de erros e acertos, muitas vezes mais erros que acertos.
Ogeha pode não ser um mangá tão bom assim, mas o que o torna interessante e recomendável é justamente o seu conteúdo. Ele não é para qualquer um, é muito fácil odiá-lo e abandoná-lo nos primeiros capítulos justamente pela maneira que um ser vivo como a Ogeha é tratado pelo Kiji. Esse ato de repudiar cenas de maus-tratos gratuitos e sentir repugnância por isso é natural ao ser humano. Mas devo ressaltar o que já havia comentado antes, a crueldade é mais sentida por ela parecer humana, ou pelo menos meramente “moe” ou “kawaii”. Se fosse apenas um besouro gigante e esquisito, as reações contrárias seriam muito menores.
Poderíamos chamar isso de hipocrisia dos seres humanos? Penso que não. Desde os primórdios da humanidade, quando tínhamos que lutar pela nossa sobrevivência, aprendemos a fugir e sentir repugnância pelo grotesco e diferente. Quanto mais feia ou assustadora a coisa, mais perigosa ela poderia ser. E o contrário é verdadeiro também, fomos acumulando padrões do que é belo. Por exemplo, flores e animais fofinhos quase sempre causam sensações boas ao observador, o mesmo ocorre com pessoas bonitas.
O próprio mangá mostra como julgamos pelas aparências de maneira bem efetiva ao descrever como sentimos nojo de pessoas fora dos padrões de beleza, como no caso de quando as lagartas alienígenas se disfarçaram de humanos. Primeiramente escolheram tomar o corpo de um mendigo, gordo e com a cara cheia de espinhas. O resultado foi claro e desastroso para as lagartas, pois não conseguiam se aproximar de ninguém nem buscar informações. Contudo, quando escolheram entrar no corpo de uma moça grávida, jovem e bonita, mil possibilidades e pessoas interessadas em ajudar mostraram disposição.
Kiji ensina desde o começo para Ogeha que todos os outros humanos além dele são ruins, para evitar que ela fuja ou apareça para alguém. E esse aviso está totalmente errado? Talvez na parte de todos os outros humanos, mas é sabido e óbvio que os humanos são capazes de grandes crueldades contra seus semelhantes e outras espécies. O mangá novamente dá um bom exemplo disso, mostrando como os mendigos são mal vistos e torturados pelos jovens, geralmente de classe média e alta. E essa situação de mendigos perseguidos não é exclusiva do Japão, aqui mesmo no Brasil esse tipo de ocorrência é bem frequente.
Ler Ogeha é, portanto, uma experiência interessante, afinal das contas, é difícil simpatizarmos com uma obra quando não gostamos do protagonista, e principalmente quando, aparentemente, não há nenhuma qualidade que o redime, muito menos algum fator interessante que traga outros atrativos ao enredo. A experiência se torna atrativa quando percebemos as nuances do mangá, levando em conta os motivos do Kiji agir como age e nos divertindo com as peripécias da Ogeha, mesmo sabendo que sua vida de invasora alienígena não foi bem o que sua espécie esperava.
O mangá peca por vários aspectos. Alguns personagens são mal utilizados e simplesmente saem de cena sem a menor cerimônia, sendo praticamente esquecidos, como no caso da Miki. Além disso, como o próprio mangaká afirma nos apêndices, não eram necessários três volumes para contar esta história, ele mesmo tinha achado suficiente apenas um, o que propiciaria a tornar a obra mais concisa. Poderíamos dizer que o final deixou várias pontas abertas, mas isso é uma crítica com ressalvas, pois o final foi bem satisfatório, já que o foco de Ogeha é justamente a relação dos personagens principais, sendo todo o resto apenas acessório.
No que tange a arte de Ogeha, o mangá está de parabéns, basta ver o design curioso da Ogeha e os outros elementos apresentados. Segundo o próprio autor, fora difícil encontrar um visual para Ogeha que a deixasse fofa sem que lhe tirasse o aspecto alienígena insectóide, e acho que o autor foi bem sucedido neste aspecto, pois a Ogeha teve um character design bem interessante. Quanto às outras personagens, nada que fuja do padrão, embora sejam bem desenhados.
E finalizando, você que for ler Ogeha, saiba que é normal e aceitável ficar furioso com o tratamento perpetuado pelo protagonista, mas saiba que se prosseguir até o final da obra, terá como resultado um mangá interessante, difícil de engolir, mas curioso, pois nem tudo é simplesmente como parece ser e que na vida real, como na ficção, as coisas nem sempre terminam da melhor forma possível, sendo um final satisfatório muito melhor do que um final ruim. Assim sendo, fica a dica deste mangá, desfrutem desta relação incomum entre um moleque desassociado dos padrões sociais e emocionais e uma alienígena insectóide.