Quem gosta de um mangá que se passa em um mundo pós-apocalíptico cheio de mistérios? Eu particularmente gosto. E se esse mundo é habitado por garotas fofas?
Acho que já ouvi essa premissa antes. Esse tipo de mangá/anime vem se popularizando nos últimos tempos, tendo como bons exemplos Girls’ Last Tour e Gakkougurashi! Mas Sakura no Sono é ainda mais peculiar! O que dizer de um grupo aparentemente normal de amigas que estudam juntas e vivem no subterrâneo conjuntamente com uma fauna e flora absurda, além de estranhos seres fúngicos gigantes? Devo mencionar ainda que essa sociedade é habitada somente por mulheres jovens e que a protagonista idolatra algo que somente é mencionado em um livro antigo, o misterioso, inimaginável e inacessível pênis?
Se você leu o primeiro parágrafo e chegou até aqui sem ser repelido pela premissa absurda, bom trabalho! Não pense que Sakura no Sono é algum tipo de ecchi ou hentai, muito longe disso, estaria mais para um slice-of-life com toques de aventura, mistério e humor negro. O que parece ser algo fofo e até mesmo engraçado, acaba se tornando algo muito mais obscuro ao longo deste mangá. Esse tipo de “obscurização” não é nada novo no mundo dos mangás, mas é sempre (ou quase) muito divertido.
Mas quem é o autor/autora de Sakura no Sono? Bem, primeiro uma ressalva, não confundam o Sakura no Sono deste texto com o Sakura no Sono de 1986, de autoria de Akimi Yoshida, uma mangá shoujo ai que até deu origem a um filme live-action relativamente famoso. Esse Sakura no Sono, sobre qual vos escrevo, é de autoria de Fumiko Fumi, publicado de 11 de julho de 2013 até 13 de agosto de 2015, composto por dois volumes e 22 capítulos. Foi publicado na revista Champion Tap! Publicação pouco conhecida, o mangá mas famoso publicado por ela é Mahou Shoujo Site (um mangá muito interessante também).
Sakura no Sono significa “Jardim de Cerejeiras”, aquelas famosas árvores que florescem em uma profusão cor de rosa e que são um dos símbolos do Japão. O engraçado é que não há cerejeiras no mundo deste mangá! Será alguma metáfora? Falando um pouco de sua criadora, a autora de Sakura no Sono, Fumiko Fumi, é uma mangaká bem singular por abordar temas polêmicos de uma maneira pouco casual, seu mangá mais famoso é Bokura no Hentai, sobre três garotos que se tornam crossdressers por motivos diversos. Esse é um tema comum em suas obras.
Sakura no Sono não é um caso diferente, pois na própria descrição em sites como My Anime List, ele possui a classificação gender bender (além de várias outras), ou seja, quando o personagem se veste ou se disfarça como um membro do outro sexo, não necessariamente por orientação sexual, os motivos podem ser os mais variados. E onde entra o gender bender em Sakura no Sono? Vocês que terão que descobrir, já que faz parte de uma das revelações do mangá. E já adianto, esse é um mangá que possui várias reviravoltas e nada é realmente bem o que parece!
Creio que quem leu este texto até aqui ainda não entendeu muito bem do que esse curioso mangá se trata. Vou tentar escrever uma sinopse útil. Tudo começa com Sakura e suas amigas, Youko, Yoyo e e Minmin levando uma vida escolar aparentemente comum. Tudo é só aparente, pois rapidamente percebemos que esse mundo é mais bizarro do que aparece. A escola possui somente elas de alunas e nada mais. Só existem mulheres nesse mundo. E pouco tempo depois percebemos que não se sabe o que é um homem.
Também fica perceptível que elas moram em um mundo pós-apocalíptico, pelas primárias condições de vida nas quais elas são expostas, nada muito drástico, mas facilmente perceptível, como o número seleto de livros velhos que elas possuem acesso. O mundo também se mostra bastante diferenciado, por possuir uma série de cogumelos gigantes e outras criaturas fúngicas adaptadas à vida no subterrâneo, pois além de tudo, é notado que elas moram debaixo da terra.
As garotas são ensinadas que não existem mais humanos vivendo na superfície e que lutar é um tabu entre elas. Um elemento importante e misterioso sempre aparecendo numa cena e outro são os chamados Guardiões, criaturas gigantescas e levemente humanoides, as quais funcionam como uma espécie de divindade para aquele grupo diminuto de pessoas. Tudo começa a mudar quando uma estranha menina, Elizabeth, aparece transferida para a escola delas (aparentemente há outros poucos assentamentos humanos).
Essa garota Elizabeth, que ninguém sabe ao certo de onde venho, desde cedo aparenta saber mais do que demonstra, e começa a semear a desconfiança nas garotas, especialmente Sakura, sobre o estranho mundo em que vivem. Mas ela também começa a “semear” outras coisas mais intensas nesta pequena comunidade exclusivamente feminina. Para ter uma noção, no primeiro encontro entre elas, Elizabeth beija Sakura na boca! Com a chegada dessa nova aluna, as coisas começam a ficar bem estranhas no pequeno mundinho delas.
Elizabeth se surpreende verdadeiramente com os estranhos costumes da pequena sociedade ali estabelecida. O estudo que elas recebem na escola é meramente figurativo, pois mesmo sendo adolescentes, são ensinadas apenas coisas básicas, como somas e subtrações simples. Há outras coisas estranhas dignas de menção, como a curta expectativa de vida delas, o que é ajudado pela total ausência de médicos, sendo que quando alguém pega uma doença é só esperar para morrer. Isso sem falar nos estranhos ritos funerários, onde o velório é comemorado com uma bela festa e jantar.
Mas o que mais surpreende, e por sinal é o elemento mais non-sense de Sakura no Sono é a ingenuidade das personagens, principalmente da Sakura, em sua busca por descobrir o que é um pênis. Na segunda página do mangá já somos inseridos neste tema “absurdo”, com a Sakura perguntando se sua amiga Youko sabe o que é um pênis. Naturalmente ela não sabe o que é, e pergunta de onde a menina tirou essa ideia maluca. Sakura responde mostrando um livro que encontrou que fala sobre o tema. Ocorre que é um livro erótico, que, por certo, passou despercebido entre os livro infantis da parca biblioteca delas.
Vocês devem estar se perguntando, se elas não sabem o que é um pênis, como se reproduzem? Não entrarei em spoilers, mas posso dizer que elas possuem uma espécie de ritual de inseminação. Mas isso não é tudo, o que mais chama a atenção é a “colorida” imaginação da ingênua Sakura, que imagina o pênis sendo uma espécie de grande poste negro e lustroso, com a capacidade de voar, curar doenças, e outros atributos fantásticos! Sakura chega ao ponto de inventar uma dança do pênis, transformando isso em um culto bizarro de adoração fálica.
Isso sem falar nos nomes sugestivos de diversos capítulos. Por sinal, o primeiro capítulo de chama “Friendick” em inglês, uma junção das palavras “friend” (amigo) + “Dick” (pênis). Sei que é difícil levar a sério um mangá que usa esse termo como o nome do primeiro capítulo, mas deem uma chance a Sakura no Sono, pois como eu já disse anteriormente, mesmo que pareça uma história non sense de humor chulo, possui muito mais material guardado na manga. Essa ignorância sobre o que é um órgão reprodutor masculino faz parte de uma forte e longínqua conspiração.
Sakura e suas amigas protagonizam uma série de situações curiosas. Como quando, logo no início do mangá, ela encontra um estranho bichinho, e acaba levando para o seu dormitório. Como é uma pequena sociedade somente de meninas, a sexualidade é um tabu. Assim sendo, o bichinho acaba “acariciando” a protagonista, que ao acordar não sabe nem por onde começar a descrever a experiência sensorial que teve na noite passada. Sakura no Sono, além de uma trama de mistério em um universo pós-apocalíptico, é um história de desenvolvimento e amadurecimento das personagens. Sakura nem ao menos sabe o que é menstruação até vivenciá-la.
Concordo que muitos pensem que um mangá com uma premissa mirabolante destas deva ser algo exclusivamente cômico, nada muito sério. Entretanto, isto é um engano, já que a medida que o enredo avança, percebemos que nada é exatamente o que parece. Sakura no Sono é um daqueles mangás que conseguem conciliar o humor (negro no caso), com uma boa dose de mistério. Principalmente a chegada da Elizabeth, que interfere na ordem habitual das coisas, com isso a história toma um rumo mais sombrio e emocionante.
Estou morrendo de vontade de dizer as coisas que acontecem nesse mangá, mas isso seria apenas spoiler, o que estragaria a experiência de ler essa curiosa obra sem saber de seus pormenores. Por exemplo, no que consiste o elemento gender bender em Sakura no Sono? Será que os homens estão realmente extintos? Qual a natureza dos “guardiões”? Essas e outras perguntas, que ao longo do mangá são respondidas, fazem desta obra algo ímpar.
Se você espera um final agradável e que responda suas perguntas, lamento dizer que você não terá esta experiência, já que mesmo que o mangá tenha dado uma resolução satisfatória para a obra, acabou não dizendo muita coisa, principalmente da curiosa situação das habitantes das profundezas. A única crítica quanto a isso que pode ser feita é no sentido de apontar que o final foi muito corrido, de uma hora para outra o mangá acabou sem responder todas as pergunta que a um primeiro momento pensamos ser vitais, mesmo que isso não se mostre absolutamente verdade após uma análise apurada.
Sakura no Sono acaba se mostrando um debate apurado sobre a diferença entre o homem e a mulher, e como estes não foram criados para viverem separados, mas em união. O quão horrível seria um mundo habitado apenas por homens, ou por mulheres? Ambos teriam que procurar soluções para os problemas gerados por este tipo de situação, e estas soluções nem sempre seriam as melhores ou as mais normais. Feminilizar meninos para satisfação sexual, o roubo e aprisionamento de mulheres apenas para servirem como geradoras de crianças até não poderem mais. Estes tipos de anormalidades são abordadas em Sakura no Sono, o que quebra sua aparência de um simples mangá de comédia.
Mesmo com tudo isso, Sakura no Sono de Fumi Fumiko consegue ser um mangá “fofo”, um quase slice-of-life perfeito, tirando todo o aspecto conspiratório e pesado. Essa impressão é ajudada pela arte do mangá, que contribui muito para deixar uma aparência leve e relaxante. Mas como já estamos cansados de saber, a arte de um mangá nem sempre corresponde ao tipo de obra que esperamos que ela represente. A justaposição entre as personagens inocentes típicas de um slice-of-life de meninas fofas fazendo coisas fofas com um mundo esquisito e cruel dá um efeito interessantíssimo, como vemos em outra obras, como Alien 9, e Girls’ Last Tour.
Mesmo que o final tenha ficado um pouco corrido, e que a história do mangá pudesse ter sido bem mais explorada, deixando várias eventos significativos sem uma conclusão, o resultado final é bastante satisfatório. Impossível terminar Sakura no Sono sem simpatizar com as meninas de seu elenco. Para quem gosta de um mangá com meninas fofas fazendo coisas fofas em um mundo pós-apocalíptico e com certo conteúdo explícito, esse é um mangá mais do que recomendado!