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Vê essas notas voando? Elas não estão aí à toa… É por aí que vai o enredo de Speed Grapher |
“Sangue, suor e lágrimas”, diz um. “Esse é o cheiro do dinheiro”, responde outro [1]. Isso resume bem apropriadamente muito das discussões que Speed Grapher vai fazer.
Mas, não, sangue, suor e lágrimas não são do esforço pelo qual alguém obtém dinheiro. Afinal, não é assim que nenhum dos personagens do anime enriqueceu. O sangue é das mortes; o suor é do sofrimento alheio; e as lágrimas são dos que viram seus queridos serem mortos por dinheiro. Com 24 episódios, o anime, lançado em 2005, foge um pouco do convencional pelo seu tema e nos leva a uma reflexão sobre dinheiro, poder e capitalismo.
A princípio, o enredo é simples: temos, de um lado, Saiga, um jornalista investigativo e ex-fotógrafo de guerra e, de outro, um grande clube secreto frequentado só pela nata da sociedade. A diversão dos mega-empresários e políticos é regada a muito sexo e um certo fetiche pelo mistério. Todos usam máscaras para não se identificarem, mas o maior segredo está na outra personagem principal, Kagura. Uma garota de 15 anos ganha o status de “Deusa” nesse clube e por trás de tudo isso está sua mãe, Shinsen Tennouzu, uma grande magnata, e o amante dela, Suitengu. A história se desenrola a partir daí, mas não será meu foco entrar em detalhes para evitar spoilers.
O mundo dos ricos e a relação mercado-Estado
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O dinheiro compra tudo mesmo em Speed Grapher: pode até fazer sua professora sair pelada de sua casa carregando uma pilha de dinheiro |
Eu particularmente gostei muito dessa abordagem. É uma forma de crítica mais sútil, menos direta, mas não menos eficaz na minha concepção. Eu, enquanto aluno de Ciências Sociais, sei que foi sempre tendência nas pesquisas acadêmicas enfatizar a pobreza ao se estudar a desigualdade social, mas o campo de estudos focado na riqueza surge há pouco tempo [2]. Em um dos estudos pioneiros no Brasil, O que faz os ricos, ricos?, Marcelo Medeiros destaca a importância do tema, justificando assim: “uma parte da população mais rica compõe as elites políticas e empresariais cujas ações afetam diretamente uma grande massa de pessoas, inclusive os pobres” [3]. E é o que o anime retrata bem ao mostrar os panos de fundo do mundo dos ricos: como eles mandam e desmandam na política e tiram recursos públicos para seu proveito.
Para além do “bom” e do “mau”
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Suitengu em uma declaração para se refletir |
Após descobrirmos o porquê de Suitengu ser “mau”, algumas coisas nos levam a questionar se ele é realmente mau. Matar um pai na frente de uma criança é definitivamente mau e ele mata muitos e usa outros. No entanto, quando Saiga pergunta para ele “Quantos você teve que matar?”, ele responde: “As únicas pessoas que eu feri nesse país são aquelas que são manchadas pela ambição e dinheiro” [6]. Meu objetivo não é chegar a uma conclusão se ele é mau ou não, mas apenas quero despertar o debate e cada um que chegue a sua conclusão. Mas o interessante aqui é: ele é a encarnação do “mal” no começo da série, depois vemos que tem gente que é mais má ainda e ele, na verdade, está apenas se vingando destes. Se se vingar for algo necessariamente negativo, colocaríamos Guts como o cara mau de Berserk?
Imperialismo: breves considerações
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Alguns burocratas e governantes conversam em inglês e até mesmo o anime usa legendas em japonês nesses momentos |
Na hora que vi pensei na invasão dos EUA ao Iraque em 2003 e também aos ataques à Síria em 2017. Suitengu é um produto das ações experimentais do próprio governo americano e quando ele começa a causar problemas a coisa é anunciada como um ataque terrorista. Percebam que é a “ameaça terrorista” que justifica os EUA mandarem foguetes para o Japão. Não sei se foi o objetivo dos criadores (é possível já que as memórias do Iraque estavam “fresquinhas”, mas o caso da Síria ainda não tinha acontecido), mas a semelhança com o modus operandi dos EUA no Oriente Médio é enorme. Vejamos: tanto no Iraque [9] quanto na Síria [10] foi dito que era por conta da presença/uso de armas químicas e apoio a grupos terroristas (al-Qaeda e ISIS, respectivamente). As duas acusações se provaram falsas no Iraque [11] e não há clareza ainda sobre a veracidade quanto à Síria. A ironia é que os EUA tem envolvimento no surgimento desses dois grupos [12]. A venda de armas para o Iraque e para a Síria é um ponto bastante em comum com o anime e a única diferença é a forma da riqueza que os EUA quer: não são ações de uma empresa, mas o petróleo.
Considerações finais
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Speed Grapher não é um anime de putaria como fazia parecer o anúncio do Animax, mas definitivamente não é para crianças. Não só por cenas como essas, mas pelos seus temas. |
Notas
[Nota 4: http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/quem-e-mais-corrupto-o-estado-ou-o-mundo-empresarial-e-financeiro/]
[Nota 8: Episódio 24. A partir dos 15:59, segundo o player do Anima Curse: https://animacurse.moe/?p=41402]
[Nota 9: Bush disse em discurso de setembro de 2002: “Em 1991, o Conselho de Segurança da ONU, através da Resolução 687, exigiu que o Iraque renunciasse todo seu envolvimento com terrorismo e que não permitisse que organizações terroristas operassem no Iraque. O regime do Iraque concordou. [Mas] ele quebrou essa promessa. Em violação a Resolução 1373 do Conselho de Segurança, o Iraque continua abrigar e apoiar organizações terroristas […] Em 1991, o regime iraquiano concordou em destruir e parar de desenvolver todas suas armas de destruição em massa e mísseis de longo alcance e em provar ao mundo que o fez através do cumprimento de inspeções rigorosas. [Mas] o Iraque quebrou todos os aspectos desse acordo.” (Tradução livre de “In 1991, the U.N. Security Council, through Resolution 687, demanded that Iraq renounce all involvement with terrorism, and permit no terrorist organizations to operate in Iraq. Iraq’s regime agreed. It broke this promise. In violation of Security Council Resolution 1373, Iraq continues to shelter and support terrorist organizations […] In 1991, the Iraqi regime agreed to destroy and stop developing all weapons of mass destruction and long-range missiles, and to prove to the world it has done so by complying with rigorous inspections. Iraq has broken every aspect of this fundamental pledge.”)
O secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, citou no Conselho de Segurança da ONU como argumentação contra o Iraque que um dos seus propósitos era “compartilhar convosco o que os Estados Unidos sabem sobre as armas de destruição em massa do Iraque e também do envolvimento do Iraque com o terrorismo” (Tradução livre de “to share with you what the United States knows about Iraq’s weapons of mass destruction as well as Iraq’s involvement in terrorism”.)]
[Nota 10: Trump disse após lançar os mísseis: “Não pode haver discordância sobre o fato de que a Síria usou armas químicas proibidas, violou seus compromissos ante a Convenção contra Armas Químicas e ignorou as advertências do Conselho de Segurança das Nações Unidas. […] Esta noite peço a todas as nações civilizadas que se juntem a nós para por fim à carnificina e ao banho de sangue na Síria, e também para acabar com o terrorismo em todas suas formas.” Antes disso, a embaixada americana já tinha alegado no Twitter que o governo sírio apoiava o ISIS.]
[Nota 11: Sobre as armas: http://acervo.estadao.com.br/noticias/acervo,com-justificativa-falsa-iraque-era-invadido-ha-10-anos,8951,0.htm
[Nota 12: Principalmente através da disponibilização de armas aos “rebeldes” que lutavam contra as “ditaduras” no Oriente Médio. Diz a BBC: “Rebeldes mais tarde admitiram que algumas armas terminaram com grupos afiliados a al-Qaeda” / “Rebels later admitted some weapons ended up with an al-Qaeda-affiliated group.”
[Nota 13: O site Anime News Network entrevistou o diretor. Na sequência, duas perguntas e duas respostas que selecionei, com tradução literal feita por mim mesmo.
Pergunta: Nosso entendimento é que Speed Grapher vai se passar numa versão futurística de Tóquio onde a divisão entre ricos e pobres é extrema. Isso é apenas um cenário ou há críticias sociais que você e os outros criadores estão querendo passar? / Our understanding is that Speed Grapher will take place in a futuristic version of Tokyo where the divide between rich and poor is extreme. Is this merely a setting, or is there some social commentary that you and the other creators are trying to put forward?