Crime e Castigo de Osamu Tesuka. Quando um mestre adapta outro.

Hoje eu vou falar de uma adaptação de um dos maiores clássicos da literatura mundial, Crime e Castigo, do russo Dostoiévsky, levada a termo por um dos maiores nomes da história do mangá de todos os tempos, Osamu Tesuka. Como será que se saiu Osamu Tesuka nesta adaptação de uma das obras mais importantes da literatura russa e mundial?

O mangá em análise será a versão brasileira de Crime e Castigo, lançada pela editora Newpop no ano de 2013.

Osamu Tesuka dispensa apresentações, mas é sempre bom relembrar, nasceu em 1928, em Osaka, e morreu em 1989, em Tóquio, sendo chamado por muitos o pai do mangá moderno. Seu traço é inconfundível, pois possui uma semelhança com os cartoons ocidentais, em especial com a obra de Walt Disney, sua grande inspiração. Revolucionou a indústria dos mangás com a introdução de elementos como linhas que dão a impressão de velocidade e onomatopeias. Dentre suas obras de maior destaque, citam-se Astro Boy; Kimba, o Leão Branco; Dororo; A Princesa e o Cavaleiro; entre outras.

E quanto ao autor da obra adaptada? Fiódor Dostoiévski, é considerado o maior escritor russo de todos os tempos (algumas fontes insistem em dizer que foi Tolstói, mas há controvérsias) e um dos maiores da humanidade. Nasceu em 1821 na cidade de São Petersburgo, e morreu em 1881 também em São Petersburgo. A obra de Dostoiévski é consagrada por explorar o que há de mais intenso no ser humano, sejam suas virtudes ou seus defeitos, não tendo medo de abordar os temas psicológicos mais profundos da alma humana. 

Dostoiévski foi autor de clássicos eternos como Crime e Castigo, Os Irmãos Karamazov, O Idiota, Notas do Subsolo, Memórias da Casa dos Mortos, O Diabo, O Jogador, entre outras. Diante da importância de Dostoiévski para literatura mundial, sua obra foi adaptada para muitos formatos a partir do século XX. Como estamos falando de mangás, destaco o que foi adaptado dele no Japão. Além do Crime e Castigo de Osamu Tesuka, destaca-se a adaptação em filme do livro O Idiota, pelas mãos do consagrado diretor japonês Akira Kurosawa, de 1951. Também não posso esquecer que foi lançado no Brasil, pela L&PM a adaptação em mangá de Os Irmãos Karamazov.

Agora vamos ao objeto deste post, a adaptação de Crime e Castigo feita por Osamu Tesuka se deu em 1953, sendo sua segunda adaptação de um livro famoso, a primeira foi Fausto, de Goethe. É uma obra one-shot, ou seja, possui apenas um único volume, composto de 152 páginas. Embora atualmente seja uma obra aclamada pela crítica, na época, não fez um grande sucesso como suas obras mais populares. A intenção original de Tesuka era tornar a obra compatível para as crianças, para que estas pudesse ter o contado com esta história clássica.

A adaptação de Osamu Tesuka se aproximou bastante do original, entretanto a obra recebeu fortes toques pessoais e o final foi alterado por Tesuka, que também situou a obra em outro período histórico. Enquanto Crime e Castigo originalmente se passava na Rússia da segunda metade do século XIX, a adaptação de Tesuka colocou a obra no contexto da Revolução Russa do começo do século XX.

Mas do que se trata Crime e Castigo? Em resumo, a obra segue a história de Rodion Raskolnikov, um estudante universitário humilde que vive em um quarto alugado em meio a miséria em São Petersburgo. Ele frequentemente pedia empréstimos e realizava penhores com uma velha agiota, uma criatura má, mesquinha que adorava maltratar e explorar quem ela pudesse. Precisando de dinheiro, Raskolnikov, depois de muita reflexão, acaba por decidir matar a velha com um machado, que não sua visão, não seria nada mais que um piolho e que só fazia mal para a humanidade, tornando a morte da velha não algo ruim, mas um presente para o mundo.

Raskolnikov, movido pelos seus ideais altruístas, acaba assassinando a velha agiota, e, assim poderia resolver sua questão financeira, ajudar os desamparados com sua fortuna e ainda livrar o mundo de uma exploradora de primeira. O que ajuda a tomar essa decisão é uma teoria elaborada por ele de que há poucas pessoas que estão além da lei, os gênios, e estes poderiam cometer crimes sem se preocupar com a aplicação da lei, pois seriam a própria lei. Como exemplo, se destaca Napoleão.

Depois de matar a velha, Raskolnikov tenta se manter indiferente ao seu crime, mas o seu sentimento de culpa começa a torturá-lo, entrando em uma estado de praticamente demência pelo ocorrido. Além disso, para agravar ainda mais, a polícia está em busca do assassino, e pelas mãos do juiz Porfiry, Raskolnikov é submetido a grande número de torturas psicológicas que o fazem duvidar do seus atos. Há ainda outros personagens importantes, como Sônia, a prostituta na qual Raskolnikov se envolve emocionalmente, compartilhando ambos da degradação mútua.

Então, a versão de Osamu Tesuka de Crime e Castigo foi ou não uma boa adaptação? Vejamos. A intenção de Tesuka era adaptar a obra para que as crianças pudessem ler, visto que o livro original é bastante complexo e pesado. Para esse intuito, Tesuka abrandou alguns pontos da história original. Por exemplo, retirou um assassinato, uma intriga que envolvia traição, um suicídio, etc. Também não deu muitos detalhes sobre o trabalho de prostituta de Sônia, além de não mostrar a cena do homicídio da velha agiota.

O estilo cartunesco de Tesuka também ajudou a abrandar o peso da trama, deixando mais apreciáveis pelas crianças as fortes emoções de Crime e Castigo. Entretanto, hoje em dia essa adaptação não seria considerada nada infantil! Mesmo moderado, há um forte conteúdo presente da adaptação, como homicídios, prostituição, etc. Mas porque Tesuka teria adaptado esta obra, voltada-a para o público infantil?

Quanto a isso, temos que levar em conta que os tempos mudam e o que se entende por infância também. Tesuka escreveu essa obra em 1953, pouco tem depois do fim da Segunda Guerra Mundial. A maioria das crianças da época viveram os horrores da guerra, ou nasceram em um ambiente ainda desolado por seus danos causados. Estas crianças eram muito mais maduras e “calejadas” pelo mundo do que as crianças atuais. Por tudo que passaram, essa adaptação de Crime e Castigo não tinha nada demais, além de ser uma forma de ter um primeiro contado com a literatura mundial.

Além destes pontos do enredo que foram retirados ou suavizados visando o público infantojuvenil, a principal mudança para o original foi o final alternativo criado por Tesuka e a mudança da época na qual se passa a trama. Neste ponto, vejo o toque de gênio de Tesuka. Muitos pensadores e filósofos enxergam Crime e Castigo como uma espécie de antecipação, ou até mesmo uma “profecia” da Revolução Russa vindoura.

O ato de Raskolnikov de matar a velha agiota seria uma representação fiel da luta de classes, do oprimido que se revolta e elimina o capitalismo perverso, personificado pela velha agiota. A machadada é o ato revolucionário, a saída do velho sistema para o novo. Até ai tudo bem, mas quanto aos devaneios neuróticos de Raskolnikov, sofridos após ter praticado o ato de matar a velha? Se foi algo bom, porque se sentiu culpado? Penso que esse mal estar supremo exemplifica os erros do comunismo russo, a perversão dos ideais originais do socialismo.

Além da história de Raskolnikov ser esta metáfora em pequena escala da Revolução, Tesuka colocou outras ideias suas no enredo, como seus ideais antibelicistas. Tentou passar que a violência causada pela revolução, mesmo possuindo motivação nobre, era algo ruim, visto causar muita destruição, e, principalmente, muitas mortes, sejam de inocentes ou vilões.

Agora só nos próximos dois parágrafo haverão spoilers, já que preciso falar um pouco do final alternativo. Caso queiram podem pular para o parágrafo seguinte dos dois próximos.

Tesuka finalizou a obra tendo como pano de fundo o começo dos distúrbios revolucionários na Rússia, mostrando uma confusão generalizada, tiros e destruição para todos os lados. No final do mangá, Raskolnikov vai até o meio da praça e proclama aos quatro ventos que matou a velha, a fim de liberar o sentimento da culpa que estava no seu coração, sendo esta prisão psicológica pior que uma prisão material.

Também há no livro esta cena, entretanto, Tesuka cortou o final da obra, onde Raskolnikov é preso, julgado e condenado a uma pena de trabalhos forçados da Sibéria. Penso que diante da Revolução Russa acontecendo, esse final ficou um pouco prejudicado. Contudo, esse final de reabilitação de Roskolnikov, do seu encontro consigo mesmo, é muito importante para demonstrar que mesmo preso ele estava livre, que se redimiu de seus pecados e se tornou uma nova pessoa.

Aqui vi uma pequena falha histórica no mangá. Um problema com anacronismo. Osamu Tesuka menciona através de um dos seus personagens que Adolf Hitler seria um destes indivíduos que se consideravam além da lei. Entretanto, em 1917, época da Revolução Russa, o jovem Adolf Hitler não tinha nenhuma representatividade política que o fizesse ser reconhecido internacionalmente.

O mesmo ocorre com Stalin e Enseihower que também são citados. Entendo que a intenção era exemplificar de maneira convincente, mas que fica estranho, fica. Inclusive Tesuka vai além com a teoria de Roskolnikov e cita outra exemplo, Jesus Cristo, seu nome não é mencionado, mas a identidade da figura na cruz é indiscutível. Aqui Tesuka tenta passar a ideia que às vezes os gênio da humanidade não são entendidos pelo povo, que os acaba perseguindo, sendo adorados pelas gerações futuras.

Em suma, a adaptação consegue ser fiel na maior parte da história e o final que envolve o contexto da Revolução Russa que combina perfeitamente com a proposta original de Crime e Castigo, que seria uma antevisão das convulsões populares que sacudiriam a Rússia no início do século XX. Mesmo sendo voltado para crianças, a obra é de uma maturidade singular. É óbvio que o mangá está anos-luz de abordar toda psicologia e os terrores existencialistas que o livro pode oferecer, mas temos que reconhecer as limitações de um mangá voltado para o público infantojuvenil. Isto não tira o crédito da obra em nada.

Quanto a arte, o Character Design do mangá, é o clássico traço de Tesuka. Com fortes inspirações nos cartoon ocidentais e nas obras da Disney. Se vocês repararem bem, poderão notar que muitas personagens utilizadas nesta obra são muito semelhantes (em aparência) a outros personagens criados por Tesuka. Por exemplo, o Juiz Porfiry é idêntico ao Duke Red, de Metropolis. Isso se dá pelo fato de Osamu Tesuka pensar nos seus personagens como atores reais, os quais podem desempenhar mais de um papel em diversas histórias distintas. Isso é realmente algo muito curioso.

Como o mangá foi lançado no Brasil, é bom falar um pouco sobre o produto nacional. O mangá, lançado em 2013 pela New Pop possui um acabamento muito bom, de livro, com papel off-set em seu interior, como das outras obras de Tesuka lançadas no Brasil pela New Pop. Como um livro, possui uma boa capa cartonada e orelhas com informações da obra e do autor. No final do mangá ainda há um posfácio de Tesuka, escrito em 1957. Um verdadeiro item de colecionador. Mas há suas falhas, na sinopse da obra constante na capa há a palavra “critividade”, o que demonstra falta de uma boa revisão.

Ao final, a conclusão pode apenas ser uma, a adaptação de Crime e Castigo de Tesuka é uma obra que merece ser lida, tanto por quem já leu o original do russo quanto àqueles que ainda não tiveram contato com sua obra, mas querem conhecer uma das mais importantes histórias da literatura universal. Serve até como incentivo para a leitura de um livro maravilhoso que é Crime e Castigo.

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