O mangá da vez que dá as caras no Dissidência Pop é :REverSAL (sim, o nome se escreve assim mesmo) da autora Kemuri Karakara. Partindo de uma premissa um tanto inusitada dentro de um universo já bastante adaptado, os “Survival Games”, temos uma simpática Gueixa apaixonada por Tokusatsus como protagonista, tentando sobreviver em uma versão alternativa de Kyoto repleta de criaturas assassinas.
:REverSAL é um mangá composto por dois volumes publicados a partir de 25 de maio de 2011 até 25 de abril de 2013 na revista eletrônica Web Comic Beat’s, revista esta que não possui em seu histórico nenhuma obra de grande relevância. Sobre autora Kamuri Karakara, há poucas informações disponíveis, mas se pode dizer que é uma mangaká com um renome intermediário, com uns nove mangás já publicados, todos dos anos dois mil em diante. Dentre os seus mangás mais famosos deve ser citado Donten ni Warau, que inclusive ganhou uma adaptação em anime de qualidade razoável na temporada de outono de 2014.
Quanto ao mangá objeto desta postagem, :REverSAL, em síntese, este segue a história de uma jovem aprendiz de gueixa dos dias atuais chamada Ayame Matsuyuki, a qual possui uma personalidade que o senso comum não acharia condizente como uma gueixa, que é reconhecida pela delicadeza na maneira de se portar e agir. Ayame é bastante extrovertida, e o critério mais particular de sua personalidade é sua fixação, bem típica de protagonistas de “battle shonens”, em se tornar uma heroína que batalha pela justiça em prol dos fracos e oprimidos, desejo motivado pela sua paixão por tokusatsus.
Só a protagonista com sua construção bastante peculiar já é suficiente para retirar este mangá do senso comum, não é todo dia que vemos uma gueixa querendo se tornar uma heroína. Mas qual o mote do mangá? Como mencionado anteriormente, se trata de um tema já trabalhado exaustivamente na indústria do entretenimento, os famosos “Survival Games”. Neste tipo de obra, inspirada em games, os personagens são inseridos geralmente em um jogo mortal, no qual a derrota, majoritariamente, significa a morte, sendo então um “jogo pela vida”, onde os atos praticados repercutem no mundo real.
Citando exemplo deste tipo de obra impossível não mencionar o clássico Battle Royale, onde uma turma de estudantes é obrigada a se enfrentar até que somente reste um sobrevivente. Outras obras do gênero são Btooom!, Sword Art Online, Liar Game, Dwarvin’s Game, Real Account, Deadman Wonderland, Gantz, Doubt, No Game No Life, Log Horizon, Ousama Game, Suicide Island, Ikkitousen, Tokyo Girls Destruction, entre muitos outros, ufa! Como dito este é um lugar-comum da indústria dos animes/mangás que já se encontra saturado. Então para se destacar é preciso que a obra mostre algo mais, ou inove com algum elemento diverso para não cair no mar do esquecimento, será que :REverSAL conseguiu se destacar?
Além da protagonista feminina de temperamento forte e caracterização bastante peculiar o que já chama a atenção logo de cara, há outros elementos do enredo a serem destacados. Ayame mora em Kyoto e trabalha como gueixa, dançando e entretendo os fregueses de noite. Um belo dia ela salva um misterioso homem de ser atacado por um cachorro, o cara sai correndo e Ayame acha uma espécie de console de videogame que ele deixou cair. Todo mundo lembra de que a curiosidade matou um gato né? Há coisas que não devem ser mexidas, aquele videogame é uma delas, sem se dar conta Ayame se cadastra em um misterioso jogo e é enviada para uma Kyoto “reversa”, daí o título do mangá.
Ayame sempre acreditou na existência de um mundo reverso, onde ela poderia se tornar uma heroína, o problema é que as coisas não aconteceram como ela as havia concebido em sua criativa e idealista mente. Na Kyoto reversa, realmente reversa, pois tudo está ao contrário, como realmente fosse um espelho, ela é obrigada a enfrentar os habitantes de Kyoto, inclusive conhecidos, que neste mundo reverso seriam uma espécie de zumbis, como ajuda ela tem o cão que mordeu o cara que deixou o console cair, neste mundo o cão fala e é a voz da sabedoria para Ayame, como o grilo falante do Pinocchio.
Como já deu pra entender o cara que deixou cair o console também estava no jogo, daí sua conduta desesperada, o indivíduo se chama Takayuki e ao contrário de Ayame é totalmente covarde, mas tenta de coração ajudar Ayame no que precisa, visto ela demorar um pouco para se dar conta de sua situação no jogo. Um personagem um tanto descartável, fora ser o motor da Ayame para esta entrar no jogo, e protagonizando alguns alívios cômicos. Então é isso, dentro deste contexto se desenvolve :REverSAL, na busca de uma saída deste jogo maldito e propiciando para que Ayame seja a heroína que tanto sonhou.
A estrutura do jogo mistura elementos clássicos e futuristas, por ser passar em Kyoto que é repleta de templos e a protagonista ser uma gueixa a caracterização clássica está formada, contrastada pelos elementos do próprio jogo, o console futurístico, os equipamentos, as armas, etc. Contudo, até mesmo a natureza do próprio jogo mistura elementos sobrenaturais xintoístas antiquíssimos com elementos modernos. O que torna a ambientação do mangá bastante curiosa.
O jogo em si parece um daqueles famosos games “online”, cada personagem que entra no jogo recebe uma arma, a maioria são pistolas, salvo raras exceções, Ayame, infelizmente, fica sem nenhuma, visto que entrou pelo console de Takayuki, e então, há somente uma arma disponível, que fica com ele. Sim, ela já começa desfavorecida! No jogo há caixas de itens sobrevoando os personagens, com munição, itens de cura, etc., como em qualquer jogo. No jogo há missões, que são designadas aos personagens, algumas específicas e outras gerais a todos os jogadores, através do console do game.
Daí pra frente o mangá se desenrola da maneira costumeira, com a busca por uma saída ou do término jogo, como em qualquer obra do gênero. Mas, diferentemente do senso comum :REverSAL mostra algumas surpresas no enredo. Daqui pra frente pode ter alguns spoilers moderados, leiam por sua conta e risco. Por exemplo, Ayame, nutrindo aquele desejo de ser uma heroína da justiça apresentou bastante resistência no sentido de ter que atacar as criaturas, gerando algumas reviravoltas.
Desde o começo do jogo Ayame é atacada e ferida pelas criaturas, entretanto ela se recusa peremptoriamente a atacar qualquer uma delas. Surge aquele dilema, será que os seres do mundo reverso possuem sentimentos? Podem apresentar consciência? Seria moral matá-los de forma sanguinária? Parece que somente para Ayame surgiu estes dilemas. E por incrível que possa parecer ela tenta iniciar uma conversação, inclusive protege e ajuda uma menininha zumbi, e por mais incrível ainda seus esforços apresentam resultados! Quebrando estas barreiras Atame consegue alguns aliados bastante curiosos.
Inclusive surge outra problemática, a de que os seres humanos, os próprios jogadores, seriam os vilões, os habitantes do mundo reverso estariam apenas se defendendo. Assim, a verdadeira maldade só poderia ser oriunda do gênero humano. Por essas e por outras o principal antagonista é um jogador e não algum elemento do jogo. Sempre surge aquela questão neste tipo de obra, onde um jogador dominador ou com desvios morais passa a manipular os demais para atingir o seu objetivo, fazendo tudo para sobreviver/ganhar o jogo, não medindo esforços.
É dentro deste contexto geral que se desenvolve :REverSAL. Ayame busca a saída e o consequente término do jogo, entretanto ela não se deixa dominar pelo senso comum e age de maneira bastante particular, acreditando no que acha correto. Este tipo de atitude tem os seus prós e contras, favorecendo-a no sentido de buscar uma união entre todos os participantes do jogo para encontrar uma solução que gere a menor quantidade de dano, sejam jogadores ou as criaturas “mantidas” como vilãs, sendo que este conceito é bastante relativo dentro da obra.
Ainda há espaço no enredo para um certo desenvolvimento da protagonista, mostrando o seu passado trágico e como acabou virando uma gueixa. Em especial mostra o seu relacionamento com a sua “irmã”, não de sangue, mas de profissão, visto que as gueixas de uma mesma casa se tratam como irmãs. Inclusive essa irmã é peça fundamental do enredo, estando ligada até os ossos com o jogo mortal. Uma conveniência de enredo bastante típica, ligando a protagonista a algum elemento do jogo antes mesmo de saber de sua existência.
Entretanto há pontos a serem criticados. O enredo se desenvolve de uma forma bastante dinâmica, e por certo um tanto corrida. Alguns momentos o enredo se torna confuso, e demanda uma releitura dos quadros para um entendimento melhor. E quanto aos motivos do jogo, suas origens e responsáveis por ele ficaram em aberto. O mangá tentou dar uma explicação do objetivo do jogo e da existência do mundo reverso, que estavam relacionados com o próprio destino de Kyoto e seus habitantes.
Entretanto, fica no ar quem de fato seria o responsável pela criação do jogo, e como o mangá está terminado, embora o final dê indício de uma possível continuação, faz falta algum tipo de explicação neste sentido. Claro que existe a opção do autor em esconder certos elementos para dar uma atmosfera de mistério e deixar em aberto para os leitores especularem. Só que :REverSAL não é uma obra longa e não tão memorável ao ponto de demandar uma análise tão aprofundada de suas motivações. Penso que uma explicação da existência do jogo e seu criador seria importante diante do caráter de um mangá curto como :REverSAL.
Vejo a união dos elementos clássico do Japão, como gueixas, templos e outros elementos xintoístas com elementos futurísticos de ficção científica bastante interessante, sendo um dos pontos fortes do mangá. Contudo, a existência do jogo é baseada em antigas lendas xintoístas, de um caráter manifestamente sobrenatural e a existência do jogo claramente futurístico faz crer que alguém teria o criado tendo como base a sobrenaturalidade da história. Mas, como dito acima, isto fica em aberto. Será que a própria sobrenaturalidade teria se adaptado por si mesma para lhe conferir uma roupagem moderna adequada aos dias atuais?
Uma outra coisa que me incomodou bastante foi a questão das armas, embora não seja de grande importância para a história em si. Um dos pontos que me mais chamaram a minha atenção para ler o mangá foi justamente a imagem da Ayame como gueixa portando uma arma futurística. E em várias imagens promocionais e de abertura dos capítulos ela porta uma gama bastante diversa de armamentos, uns bem pesados por sinal. Entretanto, ela nunca deu um único disparo no mangá inteiro! Era totalmente avessa às armas! Ela nem ao menos tinha uma arma. Uma pegadinha da autora. Eu que esperava uma gueixa atirando pra todo lado liquidando zumbis!
Quanto a arte destaca-se que os traços são bem limpos, fluídos e dinâmicos, característicos do desenho inteiramente digital, sendo uma característica da autora. As cenas de ação são bem construídas e os personagens carismáticos. Em especial destaca-se a caracterização da protagonista como gueixa, ficou belíssima. O trabalho com os quimonos ficou bem bacana também, bastante detalhados.
Por fim, chego a conclusão que :REverSAL é um mangá satisfatório, uma premissa interessante dentro de um universo bastante saturado dos “survival games”. Uma gueixa que é fã de tokusatsus e que quer se tornar uma heroína não é um tipo de protagonista que se vê todo dia. Bem como a ambientação que mistura o Japão clássico com o “sci-fi” é uma temática bastante interessante. Mesmo que com seus dois volumes não sejam capazes de se tornar uma obra verdadeiramente memorável diante de suas limitações, é um entretenimento bastante elogiável para quem aprecia um bom “survival game” como uma proposta fora do senso comum.