A pirataria é sempre um tema que uma hora ou outra aparece por aí e sempre há gente comentando sobre, especialmente entre os blogs animísticos, visto que as indústrias do anime e do mangá estão fortemente relacionadas à pirataria, seja desde o mangá que você lê na internet até o cosplay que você faz para ir num evento.
Assim, chegou a vez de mim, Gato de Ulthar, conjuntamente com outros dois colegas blogueiros, o Diego do É só um Desenho e o Vinicius Marino do Finis Geekis conversarmos um pouco sobre o tema da pirataria, e o resultado deste bate-papo está logo abaixo. Só lembrando que essa iniciativa de reunir companheiros blogueiros para uma “conversa-artigo” não é recente, já fizemos isto algumas vezes, com um resultado muito satisfatório:
É possível analisar um anime objetivamente?
Debate. A Filmografia de Makoto Shinkai
Os animes são uma mídia para adultos?
Deixando de enrolação, iniciemos o mais novo debate, desta vez sobre a questão da pirataria aplicada ao universo dos animes e mangás.
O que é pirataria na acepção moderna do termo? Acho que pode ser definida como o desrespeito aos contratos e leis nacionais e internacionais quanto ao fábrico ou reprodução, venda ou distribuição de material sem o pagamento dos direitos autorais, de marca e ainda de propriedade intelectual e de indústria alheia. Lembrando que esta prática é considerada um crime em vários ordenamentos jurídicos, inclusive no Brasil, mesmo que o responsável não busque enriquecimento com a prática.
Esta introdução serve para situar o contexto, mas em nossa conversa não nos dedicaremos aos aspectos legais da situação, mas sim quanto aos aspectos subjetivos de ordem moral e social da prática, visto que a pirataria no âmbito das formas de entretenimento (tirando quem vende cópias piratas) muitas vezes serve como um estímulo e forma de conhecermos obras que nunca chegariam ao nosso conhecimento pelas vias legais.
O mais recente caso envolvendo o tema foi a questão da JBC contra um famoso site de scans. A JBC exerceu seu direito de coerção legal para que os scans de obras que já foram licenciadas por ela fossem tiradas do site, com o intuito de coibir a prática de pirataria. Entretanto, deixando o aspecto legal de fora, foi ou não um tiro no pé? Muitas obras que as editoras trazem para o Brasil são mangás que os brasileiros já conhecem ou tiveram contato somente por meio dos scans.
Desta forma, as editoras se beneficiam muito com estes sites que disponibilizam e divulgam os mais variados mangás, os quais permitem que um grupo de interesse se forme no Brasil, justificando a publicação da dita obra, a qual passaria desconhecida se não fosse o trabalho considerado ilegal dos sites que disponibilizam tradutores. Assim aparece a questão: até que ponto os scans e os fansubbers são úteis ou prejudiciais ao mercado? Eles interferem objetivamente de forma negativa nos lucros das empresas? Ou servem como uma forma de divulgação gratuita para as obras? Estas não são perguntas de fácil resposta, mas espero que por meio deste debate tenhamos uma luz para tentar entender um pouco mais a fundo esta questão. Assim, deixo para os meus colegas começarem a expressar suas opiniões.
Vinícius
Discutir pirataria sempre é muito difícil. Em parte, eu acho, porque toca em duas questões relacionadas.
De um lado, há a visão da pirataria como um “mal menor” para solucionar um problema ainda mais sério: a dificuldade de acesso à cultura. É a visão, como o Cat bem colocou, que vê a pirataria como uma forma de estímulo ou divulgação gratuita – ou, pior, como o único meio de se obter acesso à obra.
Existem, de fato, casos de mercados que não existiriam sem a ação da pirataria. Um deles é o de Nollywood, a indústria cinematográfica nigeriana. Segundo pesquisadores, o consumo de filmes na Nigéria começou a partir de VHSs piratas de filmes americanos. A popularidade das fitas estimulou a produção de filmes nacionais, que se tornaram um sucesso de bilheteria.
Será que poderíamos comparar isso com os fansubbers? Não sei dizer ao certo, mas é importante lembrar que no Brasil, também, o consumo de anime deve muito aos discos piratas.
Antes do torrent virar uma ferramenta disseminada, era bem comum achar lojas de DVDs de anime falsos. Algumas eram bem organizadas e criavam até capinhas personalizadas com sua “marca”.
Não estou exagerando se disser que alguns animes não podiam ser encontrados de nenhum outro jeito. Certa vez saí perguntando na Liberdade onde poderia comprar DVDs originais, e os vendedores gargalharam da minha cara.
Eles tinham razão, pois era preciso quase impossível obtê-los. Já cheguei a gastar pequenas fortunas em tarifas alfandegárias importando animes pela internet. A alternativa era pedir a alguém que estava indo ao exterior para procurar o filme ou série lá fora.
O que nem sempre funcionava. Veja, por exemplo, minha versão francesa (!) de A Garota que Viajava pelo Tempo, que nunca assisti porque o disco não roda nos meus aparelhos.
Imagino que muita gente passou por coisa parecida e acabou desistindo. Sem a pirataria, essas pessoas jamais teriam conhecido o anime.
Agora, antes de defender a prática, é bom lembrar que esse “pirata benevolente” possui uma característica muito específica: ela acredita que a cultura tem valor.
Pode parecer óbvio, mas não é. Esse pirata quer patrocinar a arte, mas não consegue ir atrás dos originais. É por causa de gente assim que serviços pagos de streaming, plataforma de financiamento coletivo e, em menor medida, e-books tiveram tanto sucesso recentemente.
O problema é que esse pirata não é o único (nem talvez a maioria). Há também quem acredita que a cultura não tem valor. Para esses caras, se uma obra pode ser encontrada de graça, é porque ela não vale nada.
Essa pessoa pode até dizer que age por “militância”, mas é tudo conversa. Já ouvi de mais de um pirata que é “obrigação” dos criadores oferecer algo a mais, em “troca” da lealdade dos fãs. Ou, pior ainda, que artista “de verdade” não trabalha por dinheiro, mas por amor.
É como se a obra fosse só um brinde, dado de graça com outro produto (não cultural) que ele esteja disposto a pagar.
O pirata que não vê valor na cultura jamais vai pagar de boa vontade pelo seu entretenimento. Ele não tem nada a oferecer à indústria, e ela não tem por que se esforçar para agradá-lo. É um comportamento nocivo, e precisa ser combatido.
Como combatê-lo, claro, é um outro problema.
Eu acho interessante começar dizendo que a questão de qual o real impacto da pirataria é uma ainda totalmente em aberto, e existem exemplos que pendem para ambos os lados. De um lado, temos notícias como esta, do portal R7, que alega que a pirataria teria causado um “prejuízo de R$ 80 bilhões ao setor privado em 2015”. Ou, então, esta outra notícia, desta vez do portal IG, que alega que a pirataria de softwares seria responsável por um “prejuízo mundial de R$ 300 bilhões ao ano”. Já do lado oposto, você tem declarações como as de Neil Gaiman (Gaiman on Copyright Piracy and the Web), que alega que a pirataria desponta como uma das responsáveis pela popularização de seu trabalho. Ou, então, você tem o caso da popular série de TV Game of Thrones, que aparentemente deveu boa parte de seu sucesso à pirataria (Is Piracy Helping Game of Thrones?).
Exemplo de um anúncio de uma loja de dvds “alternativos”. Detalhe para o nível da qualidade da produção. Antigamente eram comuns estas lojas em eventos de anime, atualmente, só na internet mesmo. |
Ambos os lados, porém, possuem seus problemas argumentativos. Dentre os que criticam a pirataria, existe uma falta de transparência evidente no que diz respeito a como se chega a esses números aparentemente exorbitantes. Digo, ambas as notícias que mencionei até chegam a mencionar suas fontes, mas boa sorte encontrando qualquer coisa no site do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (http://www.fncp.org.br/). Já quanto ao estudo da Business Software Alliance, este afirma em sua descrição metodológica que a pesquisa “quantifica o volume e o valor de softwares não-licenciados instalados em computadores em um dado ano”, o que traz a sua própria leva de problemas: afinal, tal método parece partir do princípio de que se a pessoa não tivesse acesso ao pirata ela invariavelmente compraria o original, e acho que todos sabemos que este provavelmente não seria o caso. Mas no extremo oposto aos exemplos de Gaiman e de Game of Thrones podem muito bem ser considerados como pura evidência anedótica, e não como indicativos de uma tendência invariável.
Tudo isso em mente, eu sinto que a questão de se a pirataria ajuda ou não a este ou a aquele mercado é uma bem difícil de ultrapassar o nível do achismo ou o da especificidade em demasia (se focando demais neste ou naquele caso para provar qualquer que seja o ponto). E a questão se torna ainda mais imprecisa quando consideramos a pirataria ao longo do tempo. Claro, num momento de vácuo de produtos licenciados, onde nenhuma empresa lança a determinado conteúdo, a pirataria pode ter o efeito de divulgar aquele produto e de atrair interessados, mas e quando a situação muda para uma na qual há empresas que trazem o material licenciado? Essa é exatamente a situação em que vivemos, e por mais que muitos defendam que a pirataria ajudou a popularizar os mangás e animes no Brasil, este argumento me soa um tanto quanto anacrônico: não é porque ela cumpriu esta função no passado que isso justifica a sua existência no presente. Contextos diferentes não pediriam por interpretações diferentes quanto ao papel da pirataria, afinal?
Fiquem a vontade para contrariar minhas colocações, e se por ventura conhecem algum estudo amplo e transparente de quais os reais efeitos da pirataria, por favor, sintam-se a vontade para comentar. Mas por conta de tudo isso que expus, eu acho que seria mais interessante deixar um pouco de lado o contexto numérico, de quantos fãs de obra X a pirataria produziu, ou quantas obras da mídia Y se beneficiaram dela, para entrar em um contexto talvez um pouco mais moral: afinal, seria moralmente correta a existência de direitos autorais?
Consumir algo artístico sem pagar aos devidos donos é moral ou imoral? |
Há quem diga que não, e eu devo dizer que existem alguns argumentos interessantes nessa linha. Em primeiro lugar, temos a colocação de que a ideia de alguém ganhar dinheiro por toda a vida em cima de algo que produziu é praticamente exclusiva das propriedades intelectuais. Mas ainda mais relevante provavelmente seria o argumento do cerceamento do que as pessoas podem fazer com aquilo que compram. Mesmo que você compre um CD, DVD ou semelhantes, você não é livre para decidir, digamos, fazer o upload daquilo em algum site e distribuir internet afora. Porém, paradoxalmente, você é livre para emprestar a obra para um amigo ou conhecido. Eu vou ser o primeiro a admitir que essa é uma comparação problemática, já que a diferença de escala entre ambos é certamente abissal. Mas permanece o fato de que é apenas uma diferença de escala, então ainda assim acho que existe um argumento a ser feito aqui. Em outras palavras: é certo que a legislação defina o que podemos ou não fazer com aquilo pelo que pagamos? (assumindo, claro, que não estamos usando do que compramos para ferir alguém)
Talvez o maior argumento quanto à imoralidade da pirataria é a sua associação com o roubo, mas esta é bem difícil de sustentar. Afinal, o roubo pressupõe alguém perdendo uma dada propriedade para outra pessoa. É o que ocorre com a pirataria? Talvez sim, talvez não. Do ponto de vista da lógica, quem perdeu foi o vendedor do original, mas sua perda é totalmente virtual, diria até mesmo ilusória. Você imagina que aquele que pirateou compraria o original se não tivesse acesso ao ilegal, e disso conclui que teve um prejuízo qualquer X: e daí a associação com o roubo. Mas é evidente que esse é um cenário ideal, e não necessariamente a realidade concreta. É perfeitamente possível que a pessoa não compraria o produto mesmo que não existisse o pirata, e nisso nós vemos o quanto a ideia de prejuízo advindo da pirataria é bastante problemática de sustentar com precisão. Além disso, novamente vale a lembrar a questão do empréstimo. Se eu empresto um livro a um amigo, ele lê, e decide não comprar um para si, como isso é diferente da pirataria? Honestamente, parece que a diferença é, essencialmente, a legalidade de um e a ilegalidade do outro.
Tudo isso são perguntas que eu deixo para consideração, e eu mesmo não tenho uma resposta clara a nenhuma delas. Só quis apontar o quão complicada pode ser essa questão, bem como o quão complicado pode ser o simples falar dela.
Declaração de Cassius Medauar, gerente de conteúdo da JBC, sobre a questão da pirataria, motivado pela recente briga entre a JBC e um grande site de scans. |
Gato de Ulthar
Tanto o Vinícius como o Diego demonstraram muito bem os prós e os contras da problemática da pirataria. O fato é o seguinte: sendo moralmente ruim ou boa, a pirataria quando utilizada como um meio de acesso à arte (downloads ou leitores ou canais online), vai continuar existindo, querendo ou não. O pleno acesso a tudo que a indústria de animações e quadrinhos pode oferecer só pode ser alcançado mediante o uso destas fontes ilegais. É praticamente impossível que chegue até as nossas mãos a ínfima parte de tudo que é produzido artisticamente no mundo. Errado ou certo, a pirataria se mostra uma necessidade para aqueles que querem enxergar por completo este mundo de possibilidades.
Poderíamos mencionar os sites de streamming como uma alternativa barata e viável para se combater a pirataria. Ocorre que mesmo esta “solução” apresenta os seus entraves sérios, como a questão do acervo. Sabemos que para uma obra ser exibida por um meio oficial ela deve ser autorizada pelos detentores dos seus direitos de transmissão. Dessa forma, o acervo de um site destes sempre será menor do que de um site “pirata”, onde as amarras dos direitos autorais não estão presentes.
Quanto ao alegado prejuízo da indústria por parte da pirataria, tenho algumas ideias sobre o tema. Mesmo com a pirataria a todo vapor, ainda há lucro no mercado, ela apenas pode diminuir a faixa deste lucro, ressalvadas as obras que são um completo fiasco. Creio que tanto as fontes legais como as piratas irão conviver eternamente. Pelo menos, até o presente momento, não vejo nenhuma forma de resolver este dilema. Este é um casamento problemático, mas duradouro. A indústria tem que se adaptar aos meios de distribuição ilegal se quiser se manter no mercado. Ainda mais, ressalta-se o ódio generalizado quando algum meio legal concentra forças contras os meios de difusão pirata, vide o caso JBC.
Vinicius
Vou aproveitar a discussão sobre prejuízos para falar de algo polêmico: e quando a pirataria traz lucro?
Sim, sei que isso pode parecer maluco. Se o detentor dos direitos está fazendo dinheiro com a obra, como dizer que está sofrendo pirataria?
De fato, não se trata de pirataria em si. Falo aqui de um caso específico de violação dos direitos autorais. Acredito que muitos fãs não saibam (ou não sabem muito bem), mas os criadores são donos não só da obra, mas de tudo o que está dentro dela. Isto inclui personagens, lugares, símbolos e tudo o mais.
Exemplo de um mangá Doujinshi, onde autores independente criam estórias alternativas de obras já existentes. |
Por tabela, atividades como cosplay, AMVs e fanfics são tecnicamente violações. O problema é que detentores de direitos não só parecem aceitar esse tipo de coisa, como muitas vezes as encorajam – para seus próprios ganhos.
É o que alguns estudiosos chamam de “fan labor”. Se pararmos para pensar, é uma coisa bem espinhosa. Por um lado, fãs têm a liberdade para criar em cima das obras que tanto amam. Por outro, grandes empresas poupam uma fortuna em publicidade fazendo fãs trabalharem de graça. Com a “cereja no bolo” de que podem tirá-los de circulação a qualquer momento, caso comecem a atrapalhar.
Legal e moralmente, ninguém está “errado”. Mas é uma situação bem estranha, ainda mais porque a maioria dos fãs não sabem que estão à mercê dessas companhias, nem que o que fazem é trabalho.
Recentemente, tive a oportunidade de entrevistar vários cosplayers que trabalharam profissionalmente com o hobby. (https://finisgeekis.com/tag/profissionais-do-cosplay/) A todos perguntei se já tinham tido problemas com direitos autorais.
Fiquei bastante surpreso com algumas das respostas. Um cosplayer, por exemplo, afirmou que não acredita que seja um problema, pois se trata de uma “homenagem” ao personagem (o Jedi’s Burguer em São Paulo também era, e foi intimado pela Disney mesmo assim). Outra disse que cosplayers tem de “desafiar o sistema” mesmo, pois são rebeldes natos.
Lanchonete Jedi’s Grill que teve que mudar seu nome para Jeti’s Grill por pressão da Disney, atual detentora dos direitos da franquia Star Wars. |
A resposta mais interessante, no entanto, foi de uma que me disse já ter presenciado episódios do tipo (Profissionais do Cosplay: Victoria Avalor). Um criador de HQ explicitamente proibiu uma cosplayer popular de se vestir como sua personagem na convenção em que iria.
Parece que nos EUA o “fan labor” se tornou tão lucrativo que convenções passaram a pagar cosplayers convidados em vez de chamar os criadores! (The War On Cosplay – Pat Broderick Takes Aim). Isso fica bem complicado se pensarmos que os detentores de direitos autorais muitas vezes não são os autores. Ou seja: existem artistas que podem não conseguir se sustentar com seu trabalho porque as pessoas preferem pagar para ver “tributos”.
É um caso bizarro, mas que chama a atenção para uma coisa importante: a ideia de que fanart “ajuda” o criador nem sempre é verdade. Pelo contrário, mesmo uma “homenagem” ou “rebeldia” feita na melhor das intenções pode inadvertidamente prejudicar o homenageado. E o pior: alguém, que não é o criador e talvez nem o fanartist, sairá lucrando.
A situação parece ser diferente no Japão, no qual a prática do doujinshi está bem enraizada. Curiosamente, o país possui uma legislação ainda mais severa que a dos EUA quanto a direitos autorais (Ask John: Why are doujinshi allowed in Japan but not in America?), mas permite que mangakás vendam títulos independentes baseados em material protegido.
Cosplay, uma homenagem à criação de um autor ou simplesmente abuso do direito de imagem? |
De fato, tantos artistas de renome já começaram a carreira lucrando com fanart que há quem tenha chamado os quadrinhos nipônicos de “criatividade movida a roubo” (Japan’s Doujinshi Culture of Creativity Through Theft and the Monster Trying to Destroy It)
Por que será que as coisas são diferentes por lá? Já li alguns artigos que falam em um “estigma cultural em processar o outro”, “respeito aos artistas iniciantes” e coisas do tipo, mas admito que nada disso me convenceu.
Vale lembrar que, quando interessa, as editoras japonesas sabem arreganhar os dentes. Em 2011, por exemplo, a Shueisha proibiu cosplayers de interpretarem personagens da editora nas finais do WCS (World Cosplay Summit) (http://cosplace.com.br/cosplay-vs-direitos-autorais-descubra-a-relacao-no-mundo-cosplay/).
Não sei o que pensam os diretores de uma grande editora, nem conheço os vaivéns do mundo corporativo. Mas acho que vou morrer antes de descobrir o que faz uma paródia de um mangá ser considerada “ok” e um campeonato de cosplay merecer uma intervenção.
Gato de Ulthar
O Vinícius trouxe um ponto interessante, se a pirataria é capaz de gerar lucros? Bem, a guerra para provar se a pirataria faz bem ou mal dá muito pano pra manga, uma vez que, de um lado, pesquisas mostram que a pirataria de fato ajuda a espalhar um conteúdo para o público, o que gera lucros, e de outro lado, também são frequentes outros estudos dizendo que a pirataria está fazendo com que as indústrias de entretenimento tenham quedas tão absurdas.
Cosplays são um ótimo exemplo de uso de uma propriedade intelectual que é aceita pela indústria em geral, salvo raras exceções, como no caso já apontado sobre a Sueisha ter proibido cosplays de seus personagens. Mas este tipo de “fan-labor” pode ser considerado como pirataria? Além das empresas estarem ganhando dinheiro, a grande maioria dos ditos “piratas” não estão ganhando absolutamente nada, a não ser prêmios e patrocínios.
É muito difícil entender o que a indústria realmente pensa, por vezes faz vista grossa, por vezes fecha o cerco com unhas em dentes no combate de materiais feitos pelos fãs. Um exemplo é a recente caça às bruxas contra “materiais ilegais feitos pelos fãs ” protagonizada pela produtora detentora dos direitos da franquia Love Live (Produtores de Love Live estão de olho em produtos piratas da série). Love Live é uma das franquias mais bem sucedidas de animes de idols, movimentando uma quantia absurda de dinheiro envolvendo jogos, brinquedos e outros itens. Neste caso até faz sentido a marca detentora de seus direitos quererem o monopólio absoluto dos produtos derivados da franquia.
Eu havia dito que não entraríamos no âmbito legal da questão, mas é importante mencionar que o conceito aplicado de pirataria pela lei brasileira compreende exclusivamente a percepção de lucro, diretamente ou indiretamente: “Art. 184 do Código Penal: […} Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto […]”. Desta forma, se não há objetivo de lucro, não há o crime da pirataria, portanto, cosplayers e scans não estão cometendo nenhum crime, o que não quer dizer que os detentores dos direitos autorais não possam restringir o uso, o que é plenamente possível, independentemente da existência de crime ou não. A pirataria, embora seja mundialmente presente, não é bem compreendida por todos, pois divulga-se ser crime toda utilização de obra intelectual sem expressa autorização do titular, mas não é bem assim, como dito acima.
Produtos oficiais da franquia Love Live. A detentora dos direitos do anime no Japão fecha o cerco contra o material não-oficial da franquia. |
Diego
Eu acho bem interessante essa questão legal que o Cat trouxe, pois eu percebo que ela acaba meio que refletida na forma como o próprio meio otaku vê a pirataria. Existe uma forte resistência a scanlators e fansubs que lucram com o trabalho de tradução que fazem. Tanto que quando tivemos a briga mais recente envolvendo a JBC, uma parte considerável do meio defendia a editora argumentando que o scanlator começara a cobrar um pacote VIP (ou algo do gênero). É óbvio que muitas pessoas não realmente se importam se o scanlator ou fansub está ou não ganhando dinheiro, só querem saber de poder ler e assistir o que querem. E sem dúvida existe uma minoria que apoia esse tipo de prática (afinal, diversos fansubs possuem espaços para doações, certamente porque há quem doe). Mas eu acho relevante apontar que para muitas pessoas ainda é importante aquela noção do “de fã para fã”, de um trabalho gratuito e voluntário baseado na paixão pela mídia – anime ou mangá – e na vontade de divulgar certos trabalhos. Mesmo alguns fansubs e scanlators parecem ter essa noção em alguma estima. Afinal, quantos não colocam frases como “não venda ou alugue” no conteúdo que traduzem?
Mas, como seria de se esperar, a situação real é bem mais complicada. Existe, ou ao menos me parece que existe, essa resistência aos fansubs “malvados” e “gananciosos” que querem “ganhar dinheiro”, mas é fato que servidores não são gratuitos, e manter um site no ar e links de download funcionando é algo que custa dinheiro. Eu não duvido que a ideia de doações começou de forma até que inocente, realmente voltada unicamente a manter o site no ar, mas que com o tempo escalonou em algo muito maior, conforme alguns fansubs e scanlators perceberam o quando podiam lucrar com isso. E claro, tem também o problema do pessoal. Querendo ou não, fansubs e scanlators precisam de tradutores, editores, e por ai vai. A ideia de que essas pessoas recebam para fazer isso pode ser problemática por um lado, mas pode também, talvez, ser reflexo de um mercado de trabalho que não absorve todos aqueles que poderiam integrá-lo – e que então buscam meios alternativos de aplicarem seus conhecimentos.
Talvez uma solução mais viável para esse tipo de situação fosse exatamente o que aconteceu com o Crunchyrool, que começou como um grupo pirata e acabou se legalizando, se tornando hoje um dos principais distribuidores legalizados de animes e mangás mundo afora. Evidente que dar esse passo não é uma tarefa fácil, direitos autorais custam sim horrores. Mas se for possível, talvez fosse uma boa saída. Mesmo porquê, sejamos francos, o Crunchyrool bem que precisa de uma maior concorrência, dada a precariedade dos serviços que oferecem.
Vinicius
Confesso que não conheço a dimensão legal da coisa, mas separar contribuições para “arcar com os custos” de lucro me parece um terreno bastante cinza. Sobretudo quando tais contribuições, embora longe de serem grandes fortunas, são direcionadas a sustentar pessoas que passam a se dedicar a isso em período integral – ou, no mínimo, como um segundo emprego.
Vários “cosmakers” caem nesse terreno: costureiros especializados que fazem as fantasias de cosplayers. Também é o caso da maior parte do merchandise sobre anime a que temos acesso no Brasil.
Exemplo de venda de material para cosplay na internet sem a autorização dos detentores dos direitos dos personagens. |
Acho que não estou dizendo nenhuma novidade ao afirmar que a esmagadora maioria do que se acha para comprar em convenções e lojas otakus não são produtos oficiais. Isto seria ruim?
Por um lado, é uma possível fonte de lucro de que os detentores de direito se privam. Nesse sentido, não me espanta que os donos do Love Live tenham fechado o cerco contra esse tipo de material. Tive a oportunidade de visitar o Japão recentemente e posso corroborar a observação do Cat. Brindes da franquia realmente estão por toda a parte. Não há parque de diversões, gashapons ou máquinas de garras em que não se encontrem produtos das meninas.
Por outro lado, sendo realista, a maior parte desse material jamais chegaria ao Brasil. Brindes originais japoneses dificilmente dão as caras por aqui, e quando dão, seu preço é absurdo. Para a maior parte dos otakus, chaveiros, camisetas e almofadas “artesanais” são a única forma viável de prestigiar sua franquia do coração.
Sei que esse é um argumento meio dúbio, e nem todo mundo o compra – mesmo em círculos otakus. Acompanho alguns grupos de colecionadores de figures, aquelas estátuas colecionáveis de PVC produzidas por empresas como a Kotobukiya e Good Smile Company. É engraçado observar como de tempos em tempos reacende neles um debate sobre a “moralidade” de figures falsificadas.
Se muitos defendem a pirataria citando os preços altíssimos das figures, outros a condenam, dizendo que temos o dever de prestigiar importadoras nacionais, como a PizziiToys. O argumento é que, com o devido apoio do público, um mercado legal e saudável de colecionáveis acabaria surgindo.
A maioria das lembranças que se encontra para vender das séries de anime ou mangá não são oficiais. É raro encontrar para venda algo original. |
Não sei se a profecia vingará, mas uma coisa é certa: o público otaku brasileiro é gigantesco. Um levantamento da Netflix constatou que somos um dos países que mais assiste anime na plataforma (https://jovemnerd.com.br/nerdnews/brasil-esta-entre-os-paises-que-mais-assistem-anime-no-mundo/). E a Comic Com Experience (CCXP), hospedada em São Paulo, é hoje a maior convenção do mundo, e tem paulatinamente acrescentado conteúdo otaku à sua programação. Tudo isso mobiliza bastante dinheiro e deve nuançar nosso alarmismo.
Para finalizar o debate vou escrever algumas palavrinhas. Se você leu o texto até aqui deve ter percebido que o assunto está longe de ser esgotado, e que não chegamos a nenhuma conclusão, o que comprova a dificuldade de abordar um tema que possui tantos meandros. Como muitas coisas na vida, a pirataria possui vários lados a serem analisados, seja do ponto de vista do consumidor ou do fabricante (do original e do pirata). Vimos também que há quem somente busque lucro com a pirataria como há aqueles que realmente almejam uma difusão considerada mais justa da cultura.
Quem está certo e quem está errado? Eu não posso responder esta pergunta, apenas posso dar uma opinião como consumidor de animes e mangás, e que pode ser diferente da sua. Então, convido-o você, caro leitor, a tecer sua própria visão sobre o tema, e se quiser compartilhá-la com nós, saiba que serás muito bem vindo, então fique à vontade. O objetivo deste debate foi exatamente trazer uma luz ao tema e instigar o debate. Espero que tenhamos sido bem sucedidos nesta missão, e que aproveitem a opinião dos caros blogueiros participantes. Então, até uma próxima.