Esse vai ser um texto um pouco diferente do que estou habituado. Não quero exatamente fazer uma análise de todos os pormenores de Tekkon Kinkreet. Por ser uma obra de renome, boas análises abundam pela internet. Quero focar em alguns aspectos simbólicos da obra mais icônica de Taiyo Matsumoto.
Há bastante tempo eu vinha “namorando” este mangá. Por alguns motivos, até recentemente, eu não havia lido esta obra. Primeiro, por ter sido publicado no Brasil, eu fazia questão de tê-la fisicamente. Achar as edições que a Conrad lançou em três volumes sob o título Preto e Branco é uma tarefa hercúlea e praticamente impossível a preços justos. Curiosamente, essa edição da Conrad foi lançada em 2001. Eu lembro muito bem de ver divulgações sobre esse mangá naquelas muitas revistas sobre animes que saíam nas bancas antigamente, mas como eu era apenas uma criança, ainda não tinha a compreensão do que Tekkon Kinkreet significava. Ou melhor, eu não tinha a noção do que qualquer mangá significava.
Em maio de 2018, a Devir relançou a obra no Brasil, em um único tomo contendo os três volumes publicados originalmente. Um calhamaço de mais de 600 páginas. A obra foi lançada pelo selo Tsuru, uma linha de mangás da editora especializada em clássicos de grandes autores. O problema desta vez foi o preço, naturalmente muito salgado. Contudo, com as andanças que a vida dá, consegui por as mãos na minha própria edição do mangá recentemente. Devorei a obra em pouco tempo, em que pese seu grande tamanho, e muitos pensamentos e interpretações brotaram na minha cabeça. E justamente para ordenar essas ideias que criei este texto.
Que Tekkon Kinkreet possui um aspecto dualista ninguém pode negar. Só de olhar para as personagens principais se nota isso, um se chama Shiro (branco) e o outro Kuro (preto). Por isso até apreciei o nome alternativo da obra utilizado no Brasil (e em outros países também), Preto e Branco. Quem conhece o mangá também já notou que Taiyou Matsumoto é muito subjetivo nas ideias que quer passar, apelando ao simbolismo fantástico. Em uma rápida olhada no mangá, percebe-se que mesmo se passando em um ambiente aparentemente humano e normal, tanto a cidade em que se passa o enredo como as personagens parecem imbuídas de uma certa forma de “magia”.
A arte de Taiyou Matsumoto também ajuda nisso, com os seus quadros com desenhos pouco definidos e estilizados, que por vezes parecem ter sido desenhados por algum pintor surrealista como Salvador Dali. O aspecto onírico da sua arte é evidente. Pelo menos em Tekkon Kinkreet muitas vezes o leitor é pego na dúvida se está no meio de um sonho, de uma alucinação ou de um evento realmente místico. O mundo deste mangá é uma cidade japonesa estilizada, parece real, tem todos os problemas de uma grande metrópole comum, mas detém uma aura de irrealidade. Parece tudo mesmo um grande sonho, nem feliz e nem triste.
No título há uma alusão ao taoismo. Mas o que é o taoismo? De forma resumida, é uma tradição filosófica e religiosa milenar originária da China. Essa filosofia enfatiza a harmonização da vida com o tao. Este tao significa o “caminho”, que seria a força motriz por parte de tudo que existe. O principal escrito sobre o taoismo é Tao Te Ching, um livro atribuído a Lao Zi, ou Lao Tze (tem várias formas de escrita do nome do sujeito), que forma os alicerces deste conhecimento filosófico/religioso.
Um dos conceitos mais difundidos e importantes do taoismo é o yin e yang, que quase todo mundo já ouviu falar. Aquela esfera dividida em duas partes iguais, uma preta e uma branca. Em suma, isso representa a dualidade de todas as coisas existentes. Para tudo há um oposto de igual importância. Lembrando que não há juízo de valor entre os elementos opostos. Por exemplo, a noite não é inferior ao dia. O Sol não é inferior à Lua. O homem não é superior à mulher, e por ai vai. Isso se aplica para tudo (céu/terra, dentro/fora, rápido/lento, forte/fraco, cima/baixo, esquerda/direita, passado/futuro, vida/morte, tempo/espaço, etc.). Esse é o motor da própria existência de todas as coisas.
Vemos essa situação de forma bem clara em Tekkon Kinkreet. Shiro, o branco, é pouco inteligente e puro de coração, sendo guiado sempre pelos seus sentimentos e instintos, enquanto o Kuro, o preto, é bastante inteligente e frio, e além disso tem uma visão utilitarista da vida, demonstrando um racionalismo exacerbado. Os dois são completamente opostos, e o mangá, desde o início, faz perceber que um complementa o outro, enquanto Shiro é protegido e guiado por Kuro, este, em compensação, mantém sua sanidade através de Shiro.
Os dois formam uma unidade, e quando essa unidade é quebrada, como vimos no mangá, a ordem é destruída e tudo vira uma catástrofe. Shiro sofre a ausência de Kuro, e Kuro vira uma fera incontrolável com uma sede de sangue irracional. É como se ambos fossem exatamente o conceito de yin e yang e necessariamente precisassem um do outro para se completar, lembrando que tudo que existe apresentaria tanto o princípio yin quanto o yang. É como se ambas as personagens, Shiro e Kuro representassem uma única pessoa, pois temos em nós todos esses elementos complementares, como sentimento/razão, felicidade/tristeza, calma/raiva, etc. Ou seja, precisa-se manter a harmonia destes elementos para a vida fluir normalmente.
O enredo se passa na cidade fictícia de Takaramachi, que também apresenta esse aspecto contrastante do tao de forma bem evidente. A cidade é um misto de delinquência com desenvolvimento social. É um lugar por vezes desolado e horrível, mas que é casa adorada por muita gente. Quando o vilão principal da trama, Cobra, chega no local e começa a fechar os estabelecimentos tradicionais com o objetivo de implantar parques de diversão para crianças normais e saudáveis, percebe-se bem claramente a roda do tempo girar e o antigo passa a dar espaço para o novo, só que nem sempre o novo é melhor, muitas vezes é pior. Essa é outra característica das filosofias orientais, a noção cíclica do tempo, não há um desenvolvimento em linha reta que implique declaradamente que depois de hoje o amanhá será melhor.
O amanhã pode muito ser pior do que o hoje, a existência é uma roda contínua com altos e baixos, como a roda da samsara do hinduísmo, o círculo das reencarnações representada por uma mandala que identifica o início da vida como um bebezinho até a morte na velhice, o eterno retorno de tudo que há no planeta Terra. Independentemente de se acreditar ou não em reencarnações, isso não vem ao caso, o principal ensinamento deste conceito é apontar que todas as coisas passam por um ciclo. O Ocidente se afastou deste entendimento com o iluminismo que floresceu na Europa nos século XVII e XVIII, que via o desenvolvimento humano como um constante progresso. E meio a isso, o Oriente ainda permaneceu de certa forma fiel à compreensão cíclica da existência.
O progresso de Takaramachi no mangá não é uma coisa boa, nem é ruim, ele apenas é o que é., Sendo bom ou não, é um movimento natural de ocorrer, Kuro e Shiro podem enfrentar os invasores quantas vezes conseguirem, mas todos na cidade, principalmente os mais velhos, como o mendigo que os aconselha, sabem que essa mudança é inevitável, se pode atrasar o fluxo, mas não evitá-lo completamente. Enquanto muitos estabelecimentos comerciais tradicionais estão fechando as portas na cidade, outros vão abrir no lugar, mesmo que sejam da rede de parques de diversão do Cobra, ou de outro investidor, isso não importa. Em certo sentido a cidade vai ser limpa da “escória”, como Cobra preconizava.
A delinquência mais visível como os yakuzas, marginais de rua e crianças infratoras vai certamente diminuir enquanto os bairros vão sendo limpos e saneados, mas outro tipo de delinquência vai aflorar, como nos casos dos criminosos de colarinho-branco como Cobra e outros empresários inescrupulosos. Talvez no futuro outra explosão social ocorra, a qualidade de vida diminua, a pobreza e o desemprego aflorem e a cidade volte a ser como era, tudo é possível diante do fluxo das coisas.
A partir desse ponto dá para entrar na dinâmica particular da yakuza conforme exposto no mangá. Em Tekkon Kintreet temos a seguinte situação. Suzuki, o qual chamam de “Rato”, retorna à cidade depois de um tempo afastado. Esse afastamento se deu pela perseguição policial que sofreu algum tempo atrás. Ele é um macaco velho da cidade, mas ela está mudada, está pacífica até demais. Suzuki sente que haverá uma erupção de violência em qualquer momento, justamente para quebrar essa calmaria. Aqui temos novamente uma concepção cíclica do universo. Suzuki acaba entrando em conflito até com o seu superior, o chefe da máfia, que vendo somente os lucros, acaba por se aliar com o Cobra para construir os parques de diversão na cidade. Suzuki é da velha guarda, dos moldes antigos, não consegue aceitar essa modernização na maneira de agir.
Esse conflito dentro da própria Yakuza me fez lembrar até do clássico do cinema O Poderoso Chefão (1972) que é um filme que trata com uma maestria ímpar essa dicotomia entre antigos e novos costumes dentro da máfia, no caso do filme, da máfia italiana. O contexto é diverso, mas a situação é semelhantes. No filme, o chefe da respectiva família mafiosa, Don Corleone, se posiciona contra os novos métodos e práticas, como o tráfico de drogas. Essa negativa acarreta sérias consequências. As coisas acabaram mudando, por bem ou por mal.
Voltando ao mangá, temos também uma curiosa relação de entendimento entre a polícia e a Yakuza. Esse tipo de relação se mostrou visível na própria realidade do Japão, a qual também evidencia uma espécie de ciclo. Enquanto a Yakuza se mantém moderadamente na linha, ou seja, praticando atividades criminais de menor potencial ofensivo, como agiotagem, extorsões, jogos de azar ilegais, etc., a polícia acaba fazendo vista grossa e deixa a máfia agir e prosperar, apenas realizando operações e prisões pontuais. Contudo, como é comum nas máfias, vez ou outra ocorre uma briga interna entre alguma família e outra e uma escalada na violência toma forma, com assassinatos e outros tipos de acertos de contas. Nestes momentos, a polícia não pode fazer vista grossa e intervém. Nestes momentos, muitos yakuzas são presos e uma nova quietude é estabelecida, até ocorrer outra erupção violenta.
Esse tipo de relação simbiótica entre policiais e yakuzas era algo bem estabelecido e corriqueiro, enquanto nenhum do lados pisasse no calo do outro, se mantinha uma espécie de ordem. Contudo, nas últimas décadas, a própria força da Yakuza vem diminuindo gradativamente. No mundo moderno esse tipo de conivência com criminosos passou cada vez mais a ser mal vista pela sociedade e os negócios foram esfriando. Em uma rápida pesquisa na internet se verifica que em 2019 havia apenas uma média de uns 15 mil membros na Yakuza, enquanto nos anos 80 esse número beirava os 100 mil.
O problema é que de certa forma muitas pessoas estão sentindo falta da Yakuza, pois nos lugares onde ela atuava, coisa pior se apoderou do espaço vazio deixado. A questão é, a criminalidade por enquanto é uma realidade mundial, mesmo nos países de primeiro mundo, e os locais “vagos” que a Yakuza acabou deixando, mafiosos estrangeiros acabaram se apoderando, como no caso da máfia chinesa. Segundo relatos e experiências, os chineses são muito mais cruéis e os crimes praticados muito piores do que os clássicos bandidos japoneses. Por piorem que fossem, os yakuzas ainda possuem certas noções fortes de honra, além de terem limites que não podem ser ultrapassados. Essa substituição da máfia japonesa pela chinesa inclusive é tratada de forma sucinta no livro Após o Anoitecer (2004), de Haruki Murakami, um dos maiores escritos japoneses da atualidade.
Em Tekkon Kinkreet, Taiyou Matsumoto abordou essa questão da invasão chinesa de uma forma bem direta até. Com a leitura do mangá, percebe-se que o Cobra não é necessariamente japonês, bem como seus três capangas oficiais, que são claramente chineses. Eles falam entre si com uma língua fictícia, que também utiliza ideogramas como no caso do japonês, chinês e coreano. Mas para bom entendedor basta, é uma representação dos imigrantes chineses, principalmente dos criminosos e dos grandes empresários. É um retrato até bem vívido da história moderna do Japão.
Dá para chegar na conclusão de que todos esses conflitos periódicos da polícia com a Yakuza, da invasão de criminosos chineses e de outras nacionalidades, mostram que todas as ações geram uma consequência, e o que é melhor e pior é só uma questão de ponto de vista. Nada é totalmente ruim nem totalmente bom, pois cada evento acarreta coisas ruins e boas. Claro que por vezes essa balança não é proporcional e mais coisas piores do que boas acontecem, mas isso é uma das características da taoismo, frisar tal existência de opostos, pois a luz depende da escuridão e vice-e-versa.
Voltando à dupla de protagonistas, vemos que mesmo eles não são tão estáticos como os nomes e a personalidade superficial parecem sugerir. Kuro, por mais racionalista e sem esperanças que pode parecer, se preocupa seriamente com Shiro, ele não admite, mas possui um lado mais frágil que precisa da companhia do amigo. Shiro, por outro lado, possui no fundo de sua mente simples um lado mais obscuro, visto na forma em que certas vezes realiza atos cruéis, mesmo que aparentemente sem malícia e premeditação. Ou seja, tanto Kuro como Shiro, possuem o branco e o preto dentro de si, como todos os humanos.
O mangá também dá um exemplo de o que ocorre quando a harmonia dos opostos é quebrada. Kuro acaba enlouquecendo e sua alma quase afunda por completo nas trevas, se entregando à escuridão total. Neste momento surge um personagem misterioso conhecido como Fuinha na versão portuguesa, um menino delinquente reconhecido por sua força e brutalidade. O personagem utiliza uma caveira de touro como capacete, além de parecer ser um anti-Shiro. Uma versão nefasta e corrompida do amigo. Só que Kuro precisa do branco e não de mais “preto” na sua vida, ele precisa do seu oposto perfeito. Como Kuro ainda não estava totalmente corrompido, soube perceber que o erro no qual estava se metendo e isto permitiu que restaurasse a “harmonia” dos opostos e a paz voltasse a reinar entre os garotos e suas respectivas mentes.
Ainda haveria uma infinidade de temas a tratar sobre este mangá tão rico de detalhes e personagens a explorar, como no casa de Kimura, que merece até mesmo um texto próprio, mas como já me alonguei demais, vou preferir ficar por aqui. Espero que tenham gostado deste modelo de texto e até uma próxima.