Spirit of Wonder foi o único mangá de Kenji Tsuruta, autor de Omoide Emanon, a receber uma adaptação em anime, isso em 1992. Uma mistura de romance, comédia e ficção científica misturados em uma atmosfera bucólica da Inglaterra do final do século XIX. Esse curioso OVA de apenas 42 minutos acompanha a história de uma jovem asiática chamada apenas de Miss China que cuida sozinha de uma restaurante e hospedaria à beira mar em uma cidade costeira da Inglaterra, que por um acaso do destino, acaba se envolvendo com uma das mais fascinantes invenções de um inventor pobretão.
Esse é um OVA diferente de tudo o que eu vi em termos de animação japonesa, mas antes de adentrar em suas especificidades, vou escrever um pouquinho sobre os seus aspectos técnicos. Além de ser um OVA de apenas um episódio de pouco mais de 42 minutos, lançado em 3 de junho de 1992, e baseado em um mangá de mesmo nome de autoria de Kenji Tsuruta, possui algumas informações interessantes. O nome completo da obra é Spirit of Wonder: China-san no Yuuutsu, que traduzido pode ser algo como “espírito de maravilha: a Melancolia da srta. China”. Eu sei que essa abreviação ficou meio esquisita, mas me pareceu difícil achar uma boa tradução para Spirit of Wonder. No Ocidente o OVA recebeu títulos como Spirit of Wonder: Miss China’s Ring e Spirit of Wonder: Miss China’s Melancholy.
Spirit of Wonder recebeu uma continuação em 2001, chamada Spirit of Wonder: Shounen Kagaku Club, mas que segue outros personagens e possui apenas uma ligação tênue com a obra original. No mesmo ano, conjuntamente com essa sequência, foi lançado três especiais de curta duração (de 12 a 16 minutos de duração), esses sim sendo uma sequência direta do Spirit of Wonder original, apresentando algumas aventuras da própria Miss China com os inventos malucos mas geniais do dr. Breckenridge. O estúdio responsável pelas adaptações de Spirit of Wonder foi o estúdio Ajia-Do, que na presente temporada está produzindo o ótimo anime Kakushigoto.
Agora uma questão pessoal, não que seja uma regra do Dissidência Pop, mas costumo analisar obras separadamente quando são lançadas dessa forma, como sequências e spin-offs, mas como isso não é uma regra rígida, nesse texto vou analisar Spirit of Wonder: China-san no Yuuutsu, o clássico de 2001 e os curtas de 2001, Spirit of Wonder:China-san Tanpenshuu, pois são complementares, além do fato de que tanto o OVA de 1992 e os curtas possuírem curta duração, assim tenho mais material para escrever sobre. Não vou escrever sobre Spirit of Wonder: Shounen Kagaku Club neste texto por ser uma obra bastante diversa da fonte original, merecendo um texto próprio.
Vamos nos aprofundar um pouco mais no enredo de Spirit of Wonder. Além de Miss China possuir um restaurante e hospedaria herdado dos pais, muitas coisas interessantes acontecem. Ela hospeda o dr. Breckenridge, pobre mas talentoso, embora um tanto maluco aos olhos das pessoas normais. O sujeito sempre atrasa o aluguel, o que faz Miss China sempre o ameaçar e até arrombar a porta aos chutes diversas vezes para que pague o aluguel, ele sempre dá desculpas de que logo enriquecerá e poderá pagar tudo que deve. O dr. Breckenridge possui um assistente, Jim, um jovem que por sinal Miss China possui um interesse romântico que de certa forma é recíproco.
Miss China não possui grandes interessantes em invenções em ciência, pois leva uma rotina pesada pro ter de manter um estabelecimento super movimentado e popular. Não raras vezes precisa apelar para a força ao separar brigas (ela perita em artes marciais e todo mundo fica impressionado com isso). Por ser um OVA curto de pouco mais de 40 minutos, tudo avança muito rapidamente, o enredo principal gira em torno do desejo de Jim dar um presente maravilhoso para Miss China, o que está conectado com a invenção do dr. Breckenridge que está quase pronta. Inicialmente, Jim pretende dar um anel feito de uma pedra lunar, mas o presente acaba se perdendo e ele busca algo muito mais magnífico e surpreendente.
Não vou dizer agora o que é o presente que Jim resolve dar para Miss China, pois é o elemento mais importante da história, mas é algo completamente louco e insano, e não faz quase nenhum sentido cientificamente! Mas é extremamente divertido e surreal, fazendo jus ao título “Spirit of Wonder”. E isso é o OVA original de Spirit of Wonder, uma obra bastante original, com uma boa dose de comédia e um romance interessante. Contudo, o ritmo é bastante lento, mesmo para 42 minutos, a história avança suavemente, sem pressa, alguns podem achar até mesmo um pouco arrastado, mas essa é a ideia, um enredo sem grandes pretensões que entrega algo mágico no final. E mesmo que tenha um andamento aparentemente sem grandes emoções, o clímax é muito impressionante, fazendo um contraste interessante destes elementos aparentemente conflitantes.
A animação é bastante razoável para o ano de 1992. Até chega a me parecer algo ainda mais antigo, talvez essa impressão foi fortalecida pelo uso das cores, como pode ser visto nas imagens que acompanham o texto. Mas a própria ambientação oferece essa impressão, por se passar em uma região pesqueira da Inglaterra, cheia de casinhas, pontes de pedra, feiras e paisagens naturais muito bonitas. Naturalmente a animação dos curtas de 2001 está muito mais refinada, mas manteve com maestria o mesmo estilo da animação e o design dos personagens, oferecendo mais fluidez nas cenas. Como já comecei a falar desses curtas, vamos nos aprofundar sobre eles.
O primeiro, Planet of Miss China, é o que mais mantém o espírito do OVA clássico de 1992. Como o nome em inglês sugere, neste curta temos uma viagem para Marte e seus canais depois de um experimentos aparentemente ter dado errado, embora não seja realmente Marte e umas coisas muito loucas acontecerem. Inclusive o dr. Breckenridge se transforma em um monstro gigante e destrói tudo ao seu redor, sendo enfrentado por uma Miss China super poderosa. Mas tem algo nessa curta além de loucuras psicodélicas, vemos um pouco mais do passado da Miss China enquanto ela ainda morava na China com os seus falecidos pais.
O segundo curta se chama Shrinking of Miss China, que traduzido rapidamente é o encolhimento de Miss China. Essa pequeno OVA é surpreendentemente divertido. Fazendo jus ao caráter fantástico da franquia, Miss China acaba sendo encolhida através de mais um experimento do desastrado dr. Breckenridge. O inovador é que o encolhimento é bastante lento. Acompanhamos Miss China diminuir aos poucos, e como ela vai se adaptando à sua nova condição até que encontrem uma cura. Por exemplo, vemos o estranhamento dos clientes quando ela passa a ter o tamanho de uma criança, ou ainda vemos ela deslizando pelo lenços e escalando as gavetas até a penteadeira e se penteando com uma escova de dentes, e ainda ganhando roupas de bonecas e soldadinhos de chumbo. Esse OVA tem uma pegada bem ao estilo do estúdio Ghibli, pelo caráter “mágico”, mesmo se tratando de algo aparentemente científico. Na minha concepção esse foi o curta mais divertido.
Temos por último o curta Sake Cup of Miss China, que é provavelmente o mais intimista e menos surreal de todos os curtas, e a melhor oportunidade de conhecer mais da Miss China. Ficamos sabendo que a família dela possuía uma receita especial de saquê e este era o maior legado de seus ancestrais. Miss China acaba levando o saquê até à praia e começa a se embriagar lentamente, fazendo uma retrospectiva de como chegou no país com os pais, das dificuldades que passou nos primeiros momentos para manter o restaurante e hospedaria, a chegada do dr. Breckenridge e de Jim e como eles movimentaram a sua vida para melhor, até ajudando com invenções para a produção da receita de saquê.
Estes três OVAs curtos são muito importantes, afinal de contas o OVA de 42 minutos de 1992 não teve capacidade de dar um aprofundamento na personagem da Miss China. Com esses acréscimos de 2001 conseguimos conhecer um pouco mais dos seus desejos e medos, como também do seu passado. Embora se possa assistir o original de 1992 por ser uma obra fechada e completa, enxergo estes especiais como fundamentais para a compreensão e apreciação da série.
Ainda tem algumas coisas que poderia falar sobre Spirit o Wonder. Embora não seja uma obra repleta de ação e de grandes reviravoltas, consegue ser bastante animada, principalmente com as demonstrações de força da Miss China e suas tentativas de cobrar o dr. Breckenridge, todas infrutíferas. Confesso que não esperava ver muito fan-service em Spirit of Wonder, mas há um pouco. Miss China muitas vezes é assediada pelo dr. Breckenridge, que não perde a oportunidade de levantar o vestido dela, que por sinal é um daqueles trajes chineses que dão um bom destaque para as pernas, ou agarrar os seus seios em momentos de descuido.
Se fosse comparar o dr. Breckenridge com alguém seria com o Mestre Kame de Dragon Ball, o clichê do velho tarado. Nos OVAs ainda há algumas cenas de nudez, principalmente no OVA onde Miss China encolhe e depois aumenta. Eu acho que essa situação do Dr. Breckenridge em nada contribui com a obra no geral, mesmo que seja apenas um alívio cômico, pois foge do tom da série, que ao meu ver seria um romance bucólico com uma pegada estilo “Ghibli”.
Agora vou escrever sobre o aspecto de ficção científica em Spirit of Wonder. A obra apresenta um tipo muito específico de ficção científica que pode parecer extremamente datado para uma audiência atual, e até mesmo para os padrões de 1992. Mas essa é uma impressão que pode ser bastante equivocada. A história de Spirit of Wonder se passa na metade final do século XIX, e as invenções criadas pelo dr. Breckenridge obedecem as teorias científicas da época. Não sei se poderíamos chamar Spirit of Wonder de uma obra steampunk, que é um sub-gênero da ficção cientifica onde as obras são ambientadas no passado, e que os avanços tecnológicos ocorreram mais cedo do que na história real, como veículos voadores e computadores movidos por motores à vapor.
Em Spirit of Wonder não há nenhum elemento steampunk contundente, só o que foge à realidade seriam justamente os inventos do dr. Breckenridge. Penso que a ideia de Kenji Tsuruta fosse remeter a um estilo das primeiras obras de ficção científica do final do século XIX e começo do século XX, como as de autores do porte de Julio Verne (Vinte Mil Léguas Submarinas e A Volta ao mundo em 80 dias) e H. G. Wells (A Máquina do tempo e A Guerra dos Mundos). Estas histórias clássicas de ficção científica estão em sua maioria datadas, superadas pelo desenvolvimento da ciência. Por exemplo, em Da Terra à Lua, publicado em 1865, de autoria de Julio Verne, os aventureiros que se dirigem ao satélite terrestre são arremessados por um projétil gigante. Essa ideia, como muitas outras da época, sem dúvida gerou comoção entre os leitores, mas o desenvolvimento científico mostrou que eram em sua maioria impraticáveis e fugiam da realidade das descobertas científicas.
E para dar mais fidelidade a este estilo, foi mantido teorias científicas da época, como o caso da Teoria do Éter, que ganhou força nas primeiras pesquisas sobre os elementos componentes do espaço, mas deixou de ser relevante com o advento da teoria da relatividade proposta por Albert Einstein. Outra teoria ultrapassada que aparece na franquia é a teoria dos canais de Marte, formulada em 1877 pelo astrônomo Giovanni Schiaparelli, onde afirma que havia uma complicada rede de linhas retas que cruzavam a superfície de Marte. Especulava-se na época sobre a possibilidade de esses canais serem a prova da existência de vida inteligente em Marte. Contudo, mesmo na época não era uma teoria plenamente aceita e há décadas já tivemos diversas sondas analisando a superfície de Marte e nenhuma encontrou os ditos canais.
Dessa forma, vai ser muito comum quem for assistir Spirit Wonder e seus derivados se deparar com várias dessas concepções ultrapassadas sobre a ciência e principalmente sobre a astronomia. Embora tenha uma parcela boa de ideias originais e interessantes, como o sistema que refletia a superfície da Lua ou de outros astros e cria uma cópia de forma reduzida, permitindo passear por esses corpos celestes distantes. É impossível dizer com certeza o que o autor da obra realmente queria, mas posso cogitar que a ideia foi exatamente emular o estilo destas primeiras obras de ficção científica, independentemente das ideias e teorias abordadas, sem se preocupar muito e focar no aspecto fantástico da coisa.
Somente neste parágrafo teremos spoilers pesados. Se quiser pode passar para o próximo. É incrivelmente surreal e louco o desfecho do OVA. A ideia é bonita e extremamente romântica, mas destruir a Lua simplesmente para criar um anel de detritos em volta da Terra para oferecer à sua Amada me parece uma péssima ideia. Em Spirit of Wonder nada demais acontece, a Lua é destruída e fica por isso mesmo. Mas não precisa ser um astrônomo para saber que isso acarretaria consequências muito severas, como a desregulação das marés, a Terra giraria mais rápido e os dias seriam mais curtos e a temperatura global provavelmente diminuiria. Ou seja, muito provavelmente o ato de destruir a Lua seria uma péssima ideia e acarretaria efeitos devastadores para a vida no planeta. Fim dos spoilers.
Tem ainda uma coisa que quero escrever sobre o tema. As vezes é difícil para alguns ler um livro destes primeiros autores de ficção científica ou ver filmes antigos sobre o tema sem estranhar concepções claramente equivocadas ou errôneas sobre fatos científicos. Até mesmo clássicos um pouco mais recentes, como os de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, que foram escritos nas década de 50 e 60, sofrem desta questão. Recentemente li Poeira Lunar (1961), de Arthur C. Clarke, neste livro há a ideia de que a superfície da Lua é coberta por mares de uma espécie de poeira movediça. Como se sabe, o homem apenas chegou à Lua em 1969, verificando que havia sim solo sólido.
A pergunta que fica, isso é um problema? Na comunidade de leitores há pelo menos vários críticas destas obras que não “envelheceram bem” por serem datadas. Eu não sou um destes, ficção é ficção. Para mim, essa obras de ficção científica com ideias e concepções absurdas são como uma espécie de livro de fantasia, dá para apreciar tranquilamente se você releva a época na qual o escritor as criou. Por exemplo, recentemente também li a Trilogia Cósmica, de C.S Lewis, escrita entre 1938 e 1945, o mesmo autor de As Crônicas de Nárnia, e neste conjunto de livros há uma diversidade gigante de naves impossíveis, alienígenas marcianos e venusianos, etc. Dito isto, Spirit of Wonder e seus derivados são plenamente apreciáveis, ainda mais que o foco não é exatamente na ficção científica, e sim no romance.
O texto ficar por aqui. Espero que tenham gosta e deem uma chance à Spirit of Wonder, que proporciona uma imersão em um tipo de ficção científica do passado, resgatando a magia de clássicos do final do século XIX. Até a próxima!