Devilman Crybaby: a caça às bruxas, demonização do “outro” e perseguição da diferença

Devilman Crybaby é um anime que nos faz refletir: o que faria até o demônio chorar?

Demônios existem ou são meros produtos da nossa imaginação? Como são: seres monstruosos e asquerosos, muito diferentes dos seres humanos, ou seriam os próprios seres humanos? Seriam um meio de diferenciarmos o bem do mal? O que é o bem e o que é o mal? Essas e outras questões são o que movem a trama de Devilman Crybaby. Lançado em 2018, a obra traz para o século XXI o cenário do clássico mangá de Go Nagai, Devilman (1972-1973)

A atualização vem através das mãos do diretor Masaaki Yuasa, cuja obra vinha sendo aclamada por sua inventividade. (Seu anime Kemonozume (2006), a quem Devilman Crybaby foi comparado e até chamado de um sucessor espiritual, já foi analisado por mim aqui no blog.) Yuasa consegue fazer o anime dialogar com nossa era, não só ao incluir rappers e redes sociais, mas ao tocar em temas importantes que estão em alta, como a comunidade LGBT e o preconceito de forma geral. Nesse sentido, argumentarei, a seguir, como o anime é uma grande alegoria a caça às bruxas, a demonização do “outro” e a perseguição da diferença.  

A caça aos demônios e à diferença  

Para começar, para quem não viu nem o anime nem leu o mangá, a trama se centra em Akira Fudo, um jovem tímido, por vezes chamado de “chorão” (eis exatamente o que significa “crybaby”). Ele tem como amigo de infância Ryo Asuka, que, de forma sucinta, poderia ser definido como o oposto exato de Akira. Certo dia, Ryo aparece para informar Akira da existência de demônios e do seu desejo de combatê-los. Para isso, ele induz Akira a se fundir com um demônio e se tornar um Devilman, um ser com um coração humano, mas com o corpo e os poderes de um demônio.   

O interessante para meu argumento é que esses demônios são supostamente um povo que vive na floresta amazônica, mais especificamente no Peru. Há uma leve diferença com relação ao mangá já que é uma ruína maia que é citada na obra original, enquanto que o povo pré-colombiano associado ao Peru é o inca. De uma forma ou de outra, é um povo indígena, como fica óbvio pela caracterização dos mesmos e do cenário. 

A primeira aparição dos demônios em Devilman Crybaby é em uma balada bastante agitada em que há o uso de drogas e pessoas (semi-)nuas se beijando e até transando. Seria o que o típico “tiozão” chamaria de um “antro de perdição”. E é interessante também que tenham pessoas LGBTs na cena, pois não é algo tão comum de ser mostrado como apenas mais um fato normal da realidade e de forma igualitária com relação a heterossexualidade em animes. A sexualidade feminina também é bastante explorada, sendo que quase todos os demônios da balada são mulheres e sua forma demoníaca se utiliza dos seios ou da vagina como parte de seus poderes.

A sexualidade em geral também é bastante explorada como uma característica dos demônios. Por exemplo, uma vilã central se transforma em demônio sempre depois de se masturbar. Falando nisso, outra personagem feminina central se masturba e, quando se transforma em demônio, tem o desejo de transar até com uma pessoa morta. Com o nosso protagonista também não é diferente: ele, que via pornô escondido, depois da transformação, exibe seu gosto para a escola toda; seu pênis aparentemente fica maior ao ponto das garotas notarem; e ele também se masturba mais frequentemente. Todas essas características diferentes que Akira adquire ao se tornar um (homem-)demônio são também facilmente associáveis a puberdade e a juventude.  

Os primeiros demônios no anime são associados a sexualidade jovem e feminina (imagem de cima) e a origem dos demônios está associada à povos indígenas (imagem de baixo). Isso quer dizer algo? E se quer, o que isso quer dizer?

Assim, por enquanto, temos um padrão de demônios associados à povos indígenas e à sexualidade, especialmente a jovem e a feminina. Isso poderia ser interpretado de duas formas distintas: que o anime está “demonizando” essas coisas ou que o anime está apontando como essas coisas são “demonizadas” pela sociedade. A primeira interpretação eu li em uma crítica de Lynzee Loveridge para o site Anime News Network do primeiro episódio, especificamente sobre a sexualidade feminina. Algumas escolhas de ângulo enfatizando a bunda de personagens femininas também são um ponto negativo que favorecem essa interpretação. No entanto, irei argumentar pela segunda opção (já explorada por outros, mas, ao meu ver, não o bastante) me baseando no próprio anime e no histórico de Devilman e de Go Nagai.

Afinal, de maneira geral, o anime trata a questão da perseguição aos demônios como uma questão de dificuldade de compreensão do “outro”, ou seja, o diferente em relação aos humanos. E se, de início, esse “outro” é o demônio, vemos na proposição final de Akira, no último episódio, a crítica a tudo isso. Diz ele: “vocês é quem são os verdadeiros demônios”. Ou seja, vocês, que demonizaram “o diferente” de várias formas, apontando o quão nocivo este “outro” era é que, na realidade, são os violentos.

Sustento essa minha interpretação com outras cenas, como as do passado de Miki Makimura, que é representada como uma jovem metade japonesa, metade americana. Nas memórias dela, vemos ela relembrar o preconceito que sofria por isso. E, nessas mesmas lembranças, vemos que ela protegia Akira, que por ser “chorão”, era taxado de “garotinha” – o que nos leva a uma discussão sobre machismo e papeis de gênero. Mas a cena mais contundente é aquela em que os rappers da gangue de Wamu são abordados pela polícia em uma loja. Ali, vemos claramente uma crítica ao racismo e/ou ao classismo. Além disso, esses rappers – ou “as pessoas que falam o que estão em suas mentes nos dias de hoje”, nas palavras do diretor – fornecem uma narração crítica das mudanças sociais durante o anime. Eles não só denunciam a pobreza, como a própria caça aos demônios quando ela começa a se intensificar.

Os rappers desempenham um papel fundamental em Devilman Crybaby. Não só em termos narrativos, mas também em termos de mensagem. Por vezes, as próprias figuras servem como forma de denúncia ao sofrerem preconceitos (imagem de cima); por vezes, eles expõem as mazelas sociais (imagens de baixo).

O diretor da série embasa tranquilamente minha interpretação. Yuasa comentou como, no século XXI, estamos próximos do cenário de guerra dos anos 70 em que Nagai escreveu o Devilman original. Ele diz que o lado ruim e o lado bom do mundo contemporâneo são potencializados pelas redes sociais (o que é um elemento frequente no anime). No lado ruim, ele cita a “pessoas negras desarmadas sendo mortas pela polícia” (o que vemos metaforizado na cena mencionada no parágrafo anterior) e o aumento do nacionalismo (visto no preconceito contra Miki); no lado bom, ele fala de pessoas gay e trans “saindo do armário” e “uma maior abertura e aceitação de opiniões e modos de vida diferentes”. 

Quanto a essa última questão, Devilman Crybaby foi interpretado como um anime bastante queer, ou seja, com personagens não somente heteronormativos. Eu concordo com essa interpretação. Além do personagem Moyoru Koda, que é abertamente gay no anime, o quarteto principal do anime (Akira, Ryo, Miki e “Miko”) tem relações homossociais que beiram a homoeróticas. Se a relação entre as duas protagonistas (que dizem “Eu te amo” uma pra outra) podem ser frutos dessa visão de Yuasa, as “tensões sexuais” entre Akira e Ryo já estão presentes desde a obra original de Nagai.

Poderia-se argumentar que Devilman Crybaby é uma interpretação mais ocidental liberal de Devilman por ter sido feita com intermédio da Netflix ou “acusar” Yuasa e/ou o presente autor de tais valores. Fato é que, em capítulo especial de Devilman, podemos ver claramente que Ryo sente algo muito forte por Akira que talvez não seja um simples amor em abstrato

A história ter esse aspecto LGBT sustenta a minha hipótese sobre a diversidade e o “outro”. Mas, independente disso, essa é uma história sobre amor e sobre sentimentos reprimidos ou incompreendidos. Isso é bem encarnado na figura de Ryo, a criança solitária que só vê a violência como forma de resolução das coisas, cuja amizade com Akira o marca. Ryo só vê a lógica da “ordem natural”, nas palavras de Yuasa, ou seja, ele acredita que os humanos se comportam apenas como animais numa luta entre “fortes” e “fracos”. É Akira que ensina algo essencialmente humano para ele: o amor. Infelizmente, Ryo só vê isso tarde demais. E, se a história é “sobre o que Ryo aprende no final”, como diz Yuasa, o que ele aprende, ao meu ver, é que o amor é fundamental. Mas além do amor específico por Akira e do clichê do “é preciso amar”, Ryo aprende sobre o amor que Akira demonstrava pela humanidade. Akira amava todos os humanos, independente de qualquer coisa, ao contrário dos outros que segregavam as pessoas entre “nós” (os bons) e os “outros” (os ruins).

Para fortalecer minha interpretação, na próxima seção entrarei em aspectos do Devilman original e da obra do Nagai de maneira geral. Afinal, embora alguns pontos menores da trama de Devilman Crybaby sejam diferentes do mangá clássico, a obra de Yuasa tem muito de Devilman, ao mesmo tempo em que ela é bem autoral em outros aspectos. E, no geral, todas as mudanças favorecerem a obra a se tornar mais compatível com o zeitgeist (o “espírito da época”) e com o “clima cultural” do século XXI e mais atrativo ao espectador dessa era, mas também tornam a narrativa mais fluída e até mais interessante em alguns momentos. Sem entrar em detalhes desnecessários, as duas personagens femininas centrais tem papeis muito mais significativos no anime e Miki Makimura deixa de ser só um mecanismo da trama que serve para a ira de Akira ao final do mangá. Os delinquentes transformados em rappers também adicionam muito, principalmente com as sequências musicais. Akira e Ryo também são mais bem desenvolvidos enquanto dois polos extremos de compaixão e da falta dela. Por outro lado, penso que o mangá deixa mais explícito algumas de suas mensagens. Vamos entender como ele surge então.

 

O confronto entre Nagai e os “bons costumes”

Para entendermos melhor as nuances de Devilman Crybaby, vale uma breve contextualização de quem é Go Nagai, tanto para os não familiarizados com a obra desse clássico quanto para quem sabe vagamente quem é o autor. Para começar, por que ele é um clássico? Primeiro, porque ele, assim como Osamu Tezuka ou Shigeru Mizuki, não se prendeu a um só gênero e foi pioneiro em quase tudo que fez. Seu Harenchi Gakuen (1968) é considerado o início do ecchiMazinger Z (1972) e Cutie Honey (1973), embora não seja considerados os primeiros, foram responsáveis por definirem vários padrões dos gênero mecha e maho shojo, respectivamente. Por último mais não menos importante, o tom trágico de Devilman (1972) inspirou obras tão diversas como Berserk (1987) e Neon Genesis Evangelion (1995), nas quais podem ser vistas também os arquétipos criados pela  relação de atração e repulsão entre Akira e Ryo nos pares Guts/Griffith e Shinji/Nagisa, respectivamente.

Mas, para os conhecedores, não pretendo trazer apenas informação bibliográfica, mas sim uma contextualização e interpretação da obra. Vamos lá então. Devilman é uma suavização (sim, isso mesmo que você leu) de uma obra anterior de Nagai, Mao Dante (1971). Essa obra chamou a atenção da Toei, que queria fazer um anime da mesma, mas a achou muito violenta. Acho que a narrativa se centrar em um demônio, cujo povo vivia pacificamente em Sodoma e Gomorra, reincarnou em Judas Iscariotes, e cujos inimigos principais eram “Deus” e seus lacaios Adão e Eva, deve ter sido algo que foi interpretado como algo não muito agradável ao grande público. A Toei de fato criou a versão suavizada de Devilman para a TV. Indiretamente, isso permitiu que Nagai criasse um novo mangá com o fim de fato já que Mao Dante foi descontinuado sem um fim quando sua revista acabou nos anos 1970 só tendo um fim em um reboot de 2002 do próprio Nagai.

Apesar de ser um pouco mais “suavizado” já que o protagonista não é mais um demônio que luta contra deus e sim um homem-demônio que luta contra demônios, Devilman essencialmente segue a ideia central que inspirou Mao Dante. A ideia de Nagai era relativamente simples, porém extremamente provocativa e inovadora: inverter a lógica do bem e do mal. E ele fez isso porque seu primeiro grande sucesso, Harenchi Gakuen, que também foi o primeiro grande sucesso da famosa Shonen Jump, foi bastante criticado. Apesar de conter críticas ao sistema escolar japonês, o principal alvo de protestos  parece ter sido o uso de piadas sexuais com personagens infantis. Nagai foi chamado até de “inimigo da sociedade” e associações de pais e mestres importunaram tanto o autor que ele decidiu que o fim da história seria uma meta-referência em que os alunos e professores da escola morrem depois de uma guerra sangrenta contra essas associações. 

Contra os “guardiões da moral e dos bons costumes”, é que surge Mao Dante como o confronto entre demônios e os “bons costumes”, visto da ótica dos primeiros. Se Devilman é bastante subversivo com um herói demoníaco, ele ainda termina com a vitória de Deus contra Satã. Só em Mao Dante, na conclusão final que Nagai dá à obra nos anos 2000, é que os demônios vencem na luta contra os deuses. De uma forma ou de outra, Devilman guarda bastante elementos de subversão da norma vigente. Por exemplo, Satã admite sua capacidade de amar ao final e se culpa por ter repetido o mesmo modo de agir daquele que ele mais odiava, Deus, pois, assim como esse foi cruel contra os demônios, ele foi contra os humanos.

Em uma das cenas finais do mangá, podemos ver algumas questões, como: o ciclo do ódio (passado de Deus para Satã e de Satã para os demônios); mas também a subversão do dogma cristão do diabo como alguém exclusivamente mau.

Para além da subversão da norma, Nagai também pensou em Devilman essencialmente como uma história anti-guerra. Para alguém que nasceu exatamente no ano em que acabou a Segunda Guerra, na qual o Japão foi um dos países que sofreu uma das piores consequências com o bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki, a guerra certamente é uma experiência marcante. E os 27 anos que separam o fim da guerra e a publicação do mangá é um curto período e certamente as marcas desse fato ainda estavam presentes no cotidiano de Nagai e de vários japonês que nasceram nessa época. O autor não expressa sua crítica apenas através das cenas épicas e violentas, mas também nas menções diretas a bomba de hidrogênio, a Guerra Fria e ao desenvolvimento científico aplicado à guerra (ou ao que Charles Wright Mills chamaria de “complexo industrial-militar“).

Obviamente que Devilman Crybaby não é o Devilman de Nagai, mas é uma adaptação extremamente fiel a linha geral do enredo e ao seu tema principal. Por isso, é válido analisarmos Devilman Crybaby não só com as lentes do mangá Devilman, mas também com o entendimento de como Devilman chegou a ser o que é através da crítica do polêmico ecchi de Nagai e a resposta com Mao Dante. Com isso em mente, podemos ver melhor coisas que ficaram possivelmente dúbias para alguns em Devilman Crybaby.

Tanto no mangá original quanto no anime, os demônios são também caracterizados como pessoas insatisfeitas com a sociedade e que mostram mudanças de comportamento. Ou seja, se transformam em “demônios” aqueles que desviam da ordem posta. No episódio 9 do anime, depois de fazer um pronunciamento sobre isso junto de autoridades, Ryo diz: “Quando se trata de autoridades, os humanos são vulneráveis”. Aqui vemos como Ryo, ou Satã, utiliza o governo ou o Estado para ajudar os humanos a brigarem entre si, caçando seus semelhantes vistos como “demônios”. No mangá, vemos também os demônios se infiltrando no governo dos Estados Unidos e da União Soviética; e no anime vemos uma figura muito semelhante a Donald Trump. Assim, o mangá e o anime expressam, de certa forma, a perspectiva de alguns anarquistas cristãos que identificaram a “Besta” do Livro do Apocalipse com o Estado.

Embora a perseguição seja generalizada, há um lado mais fraco na história

No mangá, também vemos grupos “minoritários” serem demonizados. Quando o conflito passa a ser aberto na sociedade, a desconfiança inicial recai majoritariamente sobre pessoas racializadas. Surge o medo de que pessoas negras, nativo-americanos, “fundamentalistas islâmicos”, judeus e imigrantes possam se tornar “demônios”. De maneira geral, “todos aqueles que tiverem participação em protestos” também são suspeitos. Apenas uma fala solitária indica uma outra possibilidade, a de que “o governo quer nos matar, nos passando por demônios”. No anime, essa fala solitária é a de Miki Makimura quando ela defende Akira em blogs na Internet no momento em que vários discursos de ódio se propagam sobre os “demônios” e suas supostas más intenções.

As cenas de Devilman Crybaby muitas vezes reencenam as do mangá, “atualizando-as”

Nesse mesmo sentido, é interessante notar que o primeiro cenário de aparição dos demônios na obra de Yuasa deve ter sua origem na festa em que Ryo, no mangá, organizou com a presença de  hippies. Tal como a sexualidade jovem, especialmente a LGBT e a feminina, é mal vista pelos conservadores de hoje, os hippies foram as pessoas taxadas de “promíscuas”, “drogadas” e “vagabundas” nos anos 60 e 70. As drogas sintéticas que aparecem no anime apareceram no mangá na forma de bebidas alcoólicas (talvez porque a classificação indicativa não permitisse mostrar as drogas consumidas mais associadas aos hippies a época como a maconha ou o LSD).

 

Considerações finais

 

A caça aos demônios no anime/mangá pode ser equiparada a caça às bruxas que ocorreu na história. Segundo Silvia Federici, em O Calibã e a bruxa, essa caça tem diversas facetas: foi uma tentativa de contrapor-se as revoltas camponesas, em boa parte lideradas pelas mulheres, uma vez que foram elas que sofreram mais com a destruição capitalista dos laços comunais; foi um meio de repressão para impor a disciplina de trabalho capitalista, uma vez que a magia preconiza que era possível um ganho sem esforço; foi parte do processo de subjugação das mulheres, expropriação dos seus saberes sobre a reprodução e a criação do papel da “mulher domesticada”; e também foi uma tática de colonização no “Novo Mundo”. Em resumo, a “demonização” do “outro” permitiu a dominação e o extermínio de camponeses, mulheres que tinham controle sobre seus “direitos sexuais” e povos indígenas.

Há referências a caça às bruxas tanto em Devilman quanto no remake de Mao Dante, o que torna ainda mais plausível o meu paralelo. Em Devilman Crybaby, não há nenhuma referência totalmente explícita. O que mais próximo chega disso, mas que, ao meu ver, é algo bastante significativo é o fato de Miki Makimura ser chamada de “bruxa do atletismo”. Afinal, ela é uma mulher que, por ficar ao lado do “demônio”, é mal-vista e sofre as consequências disso. No anime, vemos a demonização e a caça do “outro”: dos indígenas da floresta Amazônica, da sexualidade exacerbada (especialmente a feminina), das pessoas LGBT, dos mestiços e dos jovens rappers “maloqueiros”. Isso não diverge muito do Devilman original, em que o foco era naqueles que se opunham a guerra, como os hippies, por exemplo, e em todos aqueles que eram considerados dissidentes pelas autoridades.

Cenas do Devilman clássico (esquerda) e do remake de Mao Dante (direita) com menções a caça às bruxas

Como Maria Homem explica, a ideia de “demônio” é uma ferramenta ideológica que justifica a não-responsabilização do humano pelos seus atos. Se eu digo que eu fiz algo por que fui possuído pelo demônio, eu me desresponsabilizo pela minha atitude, atribuindo-a a algo sobrenatural, a algo não-humano. Visto ao contrário, quando eu acuso o “outro” de ser um demônio, eu tiro o caráter humano da ação do outro, deslegitimando seus motivos e, por conseguinte, eu o “desumanizo”. A ideia de “demônio”, portanto, encobre que as tensões sociais existentes não se resumem a um “bem” e a um “mal”. Queiramos ou não, os problemas humanos não são obra demoníaca (ou divina) e, portanto, somente nós podemos resolvê-los – ou piorá-los. 

Devilman Crybaby e o Devilman original parecem oferecer um final bastante trágico, pois terminam em lágrimas. A tragédia, porém, ao meu ver, não é que os seres humanos são naturalmente falhos e agressivos (como postulava inicialmente Ryo) e, portanto, estão condenados a um “eterno retorno” niilista (anunciado na ideia de que a destruição da Terra por Deus já aconteceu e pode acontecer novamente). A tragédia que a obra anuncia é que temos dificuldade em “dessacralizar” nossos problemas, transformando-os em problemas “terrenos”. Só quando percebermos que o humano não foi condenado a nenhum destino prévio guiado por demônios (ou deuses), é que poderemos alterar isso. Yuasa disse que Devilman Crybaby é como “uma corrida de revezamento em que as lágrimas são passadas como bastão. Akira/Devilman é um chorão e, no final, ele é capaz de fazer Satã chorar”. O choro aqui pode ser visto como tragédia; mas, também, pode ser visto como algo radicalmente humano, como a capacidade do ser humano em produzir sentimentos, algo que Ryo (enquanto encarnação do demônio, não-humano) não conseguia manifestar. O choro de Satã é, nesse sentido, o momento em que o demônio/divino (metafísico) volta a ser humano e histórico. O choro, portanto, não é triste e paralisante; ao contrário, ele é (co)movente e coloca novas possibilidades de se entender o humano. 

 

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