Dementia 21 – Eis que o ero-guro desembarca mais uma vez no Brasil em grande estilo.

Quem acompanha o Dissidência Pop há alguns anos sabe que sou um grande fã da obra de Shintaro Kago, um dos maiores nomes do ero-guro da atualidade. Sempre achei que qualquer publicação sua no Brasil seria muito difícil de ocorrer, por ser um artista com um estilo bastante peculiar. Contudo, como estamos em uma era de lançamentos bastante diversificados, consegui, com muito prazer, por minhas mãos na edição nacional de Dementia 21, e é sobre ela que escrevi o presente texto.

A obra escolhida para estrear Shintaro Kago no Brasil, Dementia 21, foi originalmente publicada de 2011 a 2013, contabilizando 7 volumes e 37 capítulos no total. A belíssima edição nacional, lançada em março de 2020 pela editora Todavia, compila em volume único apenas 17 capítulos, muito embora não contenha no material nenhuma indicação de que não se trata da obra completa (sobre este ponto em específico, explorarei mais detalhadamente ao longo do texto).

Capa japonesa do volume 4 de Dementia 21.

No presente caso, estamos diante de uma estreia dupla, o primeiro mangá de Shintaro Kago no Brasil e o primeiro mangá lançado pela editora Todavia (que venham muitos outros). Pensando sobre a escolha do título, Dementia 21 é uma obra “segura”, pois está muito longe do que o autor pode chegar em termos de conteúdo explícito. Ou seja, a obra é um mangá bem comportado para os padrões de Shintaro Kago, mas que mesmo assim, não deixa de possuir a surrealidade típica de seu estilo.

Mas Kago possui diversos outros títulos não tão explícitos que poderiam ser uma boa escolha para princípio de conversa, mas qual o motivo de terem escolhido Dementia 21? Desconheço como funciona os detalhes do mercado editorial, mas é muito comum uma edição nacional seguir alguma lançada anteriormente em outro país, e penso que foi este o caso. Em 2018 a editora Fantagraphics publicou Dementia 21 nos EUA, em 2 volumes, nos mesmos moldes da edição nacional, com uma média de 300 páginas por tomo.

Capa nacional.

Até mesmo a lombada de ambas as edições são bastante semelhantes, muito embora a capa da edição nacional seja muito mais bonita, diga-se de passagem. Provavelmente a editora dos EUA também chegou a conclusão de que uma obra não tão pesada de Kago seria uma boa escolha para testar o mercado. Seja como for, desejo que chegue ao Brasil outros mangás de sua autoria, e de preferência que não tenham medo de publicar algo mais pesado, para contrastar com Dementia 21. Espero que a Todavia, ou outra editora, tenham a coragem de ousar. Pode ser um tiro no escuro, mas penso que o público brasileiro esteja suficientemente maduro para isso.

Vou deixar aqui a sugestão de outros mangás de Shintaro Kago que analisei no Dissidência Pop ao longo dos anos:

O ero-guro, por si só, é um gênero de mangás polêmico por natureza, a abundância de temas grotescos e escatológicos restringe o público, mas gera uma legião de fãs. No Brasil, tivemos pouquíssimas publicações do gênero, somente a Conrad, em 2009, aventurou-se em publicar Suehiro Maruo, outro grandioso autor de mangás ero-guro. Não é difícil de entender os motivos do ero-guro gerar repulsa na maioria das pessoas pouco familiarizadas. Precisa-se de um estômago forte para encarar narrativas com estupros, mutilações e uma grande dose das mais bizarras parafilias, por sorte este não é bem o caso de Kago.

O autor de Dementia 21 possui o mérito de tornar o ero-guro mais acessível, estando no rol dos autores que levam suas obras além da mera violência gráfica, transcendendo o lugar comum. Tanto é que seu estilo é único. Atualmente é até temerário simplesmente afirmar que Shintaro Kago pertence a um ou outro estilo, não tem como comparar com nenhum outro mangaká. Além da extrema criatividade em montar contextos completamente insanos e surrealistas, ele consegue construir uma perfeita harmonia entre humor negro, crítica social, surrealismo e horror. E é justamente o humor refinado que faz Shintaro Kago ser apreciado por um público mais amplo, fora do nicho dos apreciadores do ero-guro. 

Em Dementia 21, Kago explora uma temática única, das mais diversas maneiras possíveis, qual seja: a velhice e a maneira como a sociedade enxerga e lida com os idosos, e como estes interagem entre si e com os mais novos, tudo, claro, recheado de humor negro e críticas sociais tenazes. É um perigo ao ler Shintaro Kago se deixar levar pelo surrealismo e nonsense e esquecer ou não perceber a mensagem que ele quer passar por debaixo da sucessão constante de bizarrices. Dementia 21 não se trata apenas de um amontoado de maluquices sem coesão ou propósito, e sim de uma bem construída análise da sociedade japonesa contemporânea.

Box da edição lançada nos EUA em 2 volumes.

Em Dementia 21 seguimos as dificuldades enfrentadas por uma dedicada cuidadora de idosos, Yukie Sakai. A garota é a mais bem avaliada cuidadora de idosos da agência Green Net. Seus clientes são sempre atendidos com a maior paciência e atenção, servindo comida, dando remédios, banhos e outros afazeres típicos da função. Contudo, a boa reputação de Yukie causa inveja em outra moça da agência, a qual conspira para que ela perca a pontuação alta e seja enviada para trabalhar com os idosos mais problemáticos. Porém, o que parece ser um trabalho simples, mesmo com estas dificuldades, se transforma rapidamente num pesadelo completamente surrealista.

Yukie acaba se envolvendo com alienígenas, todo tipo de monstros, idosos paranormais e dentaduras tecnológicas com vontade própria. Não vou adentrar em uma análise de cada capítulo, pois perderia a graça de se ler, além de ser muito trabalhoso, afinal de contas, são 17 capítulos! Cada um com uma história única e fechada, mas Yukie se depara com algumas situações bem bizarras, e para dar um exemplo, temos algo como:

Yukie participa de um Battle Royale onde idosos devem lutar até a morte para conseguirem uma vaga no melhor asilo da região. Deve cuidar de um herói de tokusatsu aposentado, que por sinal é um robô gigante que usa fraldas. Yukie também já foi mandada para uma residência onde os idosos se multiplicavam a cada dia até Yukie ter sido soterrada por uma avalanche de velhinhos. Rugas malignas que se espalham como uma doença. Uma idosa paranormal que devido a demência o que ela esquece simplesmente some da vida real. Yukie foi para até mesmo dentro de um mangá, que por sinal estava dentro de outro mangá e assim sucessivamente. Estes são apenas alguns exemplos das bizarrices enfrentadas por Yukie.

Como eu já disse acima, Shintaro Kago se utiliza de uma situação real do Japão para construir suas bizarrices e nos fornecer uma crítica social da forma mais bizarra possível. A questão dos idosos é atualmente um problema de saúde pública no Japão. No arquipélago nipônico temos a mais alta concentração de idosos do mundo. Em 2019, uma pesquisa do governo japonês constatou que a proporção de idosos na população local é de 28,4%, ou seja, quase um terço da população é idosa. Além disso, nunca no Japão houve tantos idosos juntos. Além da grande expectativa de vida, a baixa taxa de natalidade auxilia estes resultados.

Uma grande população de idosos demanda uma igual grandeza de cuidados, desde os praticados pela própria família, como também os praticados por agências de cuidadores. Esse é um ramo em pleno crescimento no Japão, que chega a falta profissionais, há casos de idosos tendo que trabalhar cuidando de idosos incapazes. Muitas pessoas que não conseguem se qualificar na faculdade acabam se tornando cuidadores.

Dentre as empresas que fornecem o serviço de cuidar de idosos, há os que fornecem os cuidados na casa dos clientes, como no caso da Yukie em Dementia 21, como também há as “creches” para idosos, onde eles ficam durante o dia enquanto os familiares mais novos saem para trabalhar. Isso sem falar nos asilos e nos idosos que vivem sozinhos, não sendo raro encontrá-los mortos há muito tempo, abandonados em seus apartamentos.

Em Dementia 21 temos um relato surreal mas verídico de algumas destas situações. No capítulo onde há a multiplicação de idosos, ela se dá justamente pelo fato das pessoas estarem descartando os idosos como se fosse um lixo comum, se livrando de uma tralha que não serve mais para nada. É uma triste constatação, mas em muitos casos as pessoas de mais idade apenas são cuidadas enquanto dão um retorno financeiro. Em outro capítulo, uma idosa ativa e com hábitos considerados de gente nova é obrigada a se tornar uma idosa estereotipada, a fim de ganhar um prêmio como idosa exemplar, o que geraria uma recompensa financeira à filha mesquinha.

Imprevisibilidade. Essa palavra define muito bem Dementia 21 e a obra de Shintaro Kago como um todo. Todos os 17 capítulos são criativos e muito bem humorados. Nem dá para chamar de ero-guro. Fiquem tranquilos, não tem ao menos uma tripa ou um órgão espatifado, muito menos membros decepados!

Dizem que este é um bom mangá para se começar a ler Shintaro Kago, será mesmo? Penso que não. Só se você for daqueles que querem ficar na parte superficial e não ir mais além na obra do autor. Muito embora alcance um público maior, é apenas molhar os pés na beirada da piscina, quem for mergulhar de cabeça na parte funda tem que se preparar e ter gosto pela coisa, o que não é para os fracos! De qualquer forma, não há pelo que reclamar, só o fato de ter Shintaro Kago no Brasil é uma vitória, mesmo que eu tenha preferido algum de seus títulos mais clássicos, mais próximos aos extremos pelos quais Kago se popularizou.

Não tenho nada a reclamar da edição nacional, bastante caprichada pela editora Todavia. O papel utilizado no corpo do mangá é o offset, mas de uma gramatura muito boa e resistente. A capa chama a atenção por ser um cartonado áspero e fosco, coisa que eu não havia visto em mangás, que na sua maioria são lisos e brilhantes.

Só uma coisa me incomodou, em nenhum lugar da edição, seja na capa ou no interior há a informação de que não se trata do mangá completo. São apenas 17 volumes, não os 37 existentes de Dementia 21. Se eu não fosse pesquisar para fazer esse texto, continuaria pensando que o volume lançado era a obra completa! Muito fácil induzir este erro nos leitores. O fato de ser histórias individuais em cada capítulo apenas ajuda nessa confusão. Será que teria sido muito difícil colocar um aviso de “volume 1” da capa ou na lombada?

Esse problema eu constatei também na versão lançada nos EUA. Como a Todavia se baseou nesta edição, a falta de indicação apenas seguiu a inspiração. Não consigo pensar num motivo lógico para isso. Estética? Medo de não ter vendas boas e contar com a falta de informação sobre um segundo volume para colocar a obra na geladeira? Penso que não seja nada tão leviano, apenas uma escolha estética, mas fica o questionamento.

De qualquer forma, a Todavia está de parabéns pelo lançamento muito bem caprichado. É uma oportunidade de outro para popularizar um autor como Shintaro Kago no Brasil. O único entrave nesta questão é o preço salgado da obra, R$ 69,00, o que limita o alcance da mesma apenas ao público de colecionadores e não aos leitores mais casuais de mangás. Não dá para chamar o preço de absurdo, a qualidade da edição está condizente com o valor, mas que é limitante isso é! Mas se você tiver interesse e não quiser gastar muito, é só ficar de olho nas ofertas, dá para pegar Dementia 21 na casa dos 30 reais se tiver paciência.

Dementia 21 se divulga por si mesmo, a própria capa já induz ao possível leitor que se trata de uma obra extremamente surrealista e bizarra e chama a atenção logo de cara. Mas espero que o meu texto tenha ajudar a divulgar a obra um pouquinho mais. E como eu já disse, sou fã de carteirinha de Shintaro Kago. Já faz uns 5 anos desde que analisei um mangá dele pela primeira vez no Dissidência Pop. Naquela época, não havia nenhum indício de que um autor como o Shintaro Kago seria publicado no Brail, era algo considerado impossível. É feliz ver como essa situação evoluiu no Brasil. Para finalizar, Dementia 21 é uma obra que merecer ser lida e apreciada, fica aqui a minha dica.

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