Omoide Emanon – Quanto pesam as memórias?

Há vários tipos de imortalidade, tanto na ficção como na mitologia, mas ela necessariamente tem que envolver a preservação do corpo? Se somente nossas memórias fossem passadas adiante, intactas, para as próximas gerações, cada vez somando mais e mais vivências e conhecimentos, acumulando lembranças de milhões de anos, a pessoa que herdasse essas memórias seria ela de alguma forma imortal? Omoide Emanon é um pequeno mangá de apenas um volume que destrincha essa possibilidade surreal, e como seria se caso algum de nós, simples e limitados mortais, pudessem encontra tão singular figura.

Omoide Emanon é um mangá de apenas um volume e nove capítulos. Ganhou duas continuações, também em volumes únicos, Emanon – Sasurai Emanon Episode: 1 e Sasurai Emanon. Minha análise se restringirá exclusivamente ao mangá Omoide Emanon, por ser considerado uma obra única e fechada, possivelmente haverão análises de suas sequências em artigos separados.

O mangá foi serializado de 19 de setembro de 2006 até 19 de janeiro de 2008 na revista Comic Ryu, publicação voltada aos jovens adultos do sexo masculino (seinen), mas obviamente sua leitura é recomendada a todos. Essa é uma publicação bastante heterodoxa, serializando mangás bem diversos como Monster Musume no Iru Nichijou e Centaur no Nayami. O nome do mangá, Omoide Emanon, significa literalmente “memórias de Emanon”. Trata-se de um conto de ficção científica adaptado para mangá. Logo abaixo vou falar um pouco sobre os autores.

Omoide Emanon foi baseado em conto de mesmo nome do autor de ficção científica Shinji Kajio, publicado em 1983. Kajio é um autor bastante premiado no Japão, inclusivo ganhou o prêmio Nihon SF Taisho Award em 1991, que é o maior prêmio para obras de ficção científica do Japão. Omoide Emanon fez relativo sucesso e seu autor resolveu transformar a obra em série, sendo a última parte publicada em 2017.

Kenji Tsuruta, o mangaká responsável pela adaptação da obra possui um estilo bem único, a maioria das suas obras lembram mais um artbook com falas do que propriamente um mangá, explorando bastante a identidade visual. Interessante mencionar que Kenki Tsuruta originalmente estudou para se tornar um fotógrafo, mas na universidade acabou se aproximando dos trabalhos de Yoshinobu Hoshino (2001 Nights), grande mestre da ficção científica, o que acabou aproximando-o dos mangás e despertando o seu desejo de ser um mangaká. Publicou doujins (mangás independentes) até estrear como autor profissional em 1986.

A premissa de Omoide Emanon é simples, embora incrivelmente criativa. Uma garota com a extraordinária habilidade de reter todas as memórias de seus antepassados desde que o mundo foi criado e a primeira forma de vida unicelular surgiu, ou seja, de bilhões de anos atrás. Só com esta pequena informação já é possível conjecturar todo tipo de possibilidade maluca e situações incríveis que alguém com esse poder enfrentaria. É difícil até mesmo imaginar ter tanta coisa na memória, e memórias de outras espécies primitivas, é totalmente surreal.

Omoide Emanon não é uma obra de ficção científica repleta de ação, reviravoltas de enredo e temas pesados, é algo surpreendentemente mais reflexivo e casual. O autor ainda inseriu casualmente alguns livros de ficção científica que parecem ser muito interessantes, como Hauser’s Memory, de Curt Siodmak, que trata justamente de uma trama sobre memórias implantadas.

No inverno de 1967, um rapaz de 20 anos está voltando para casa de navio depois de rodar o Japão em uma viagem de autoconhecimento. O rapaz é fascinado por ficção científica e sempre está lendo um livro com essa temática. Em certo momento, uma garota bonita e enigmática se aproxima dele e se apresenta como Emanon, que é um jogo de letras, pois ao contrário fica “Noname”, que representaria no name, sem nome. Os dois acabam jantando juntos e bebendo, onde surgiu uma relação única.

Na janta Emanon confessa que percebeu que o rapaz era fascinado por ficção científica e então se oferece para contar a sua história de vida. Ela desde esse momento já menciona que não há a necessidade de acreditar no que ela irá falar, pois parecerá totalmente improvável. Então, ela menciona que possui uma memória de mais ou menos três bilhões de anos atrás, desde que a vida surgiu no planeta Terra. O rapaz não demonstra se acredita ou não, mas entra no jogo dela e começa a dar sua opinião sobre diversas teorias e fatos históricos. Os dois acabam se aproximando mais ainda dando origem a um curioso caso entre eles. Dizer muito mais que isso seria dar spoilers, visto se uma obra bem curta.

Há muitos elementos que tornam Omoide Emanon uma obra de arte notável. Um deles é a simplicidade. Como eu escrevi no parágrafo anterior, o roteiro do mangá é basicamente este, o encontro de uma noite. Ainda há um desenlace interessante, mas a grosso modo, a parte principal do mangá são umas poucas horas no navio. E por mais incrível que possa parecer, o leitor acompanha cada hora que Emanon e o narrador passam juntos. Explico. Cada capítulo é nomeado com a hora em que se passa o conteúdo, alguns vão além e fornecem mais detalhes, como o primeiro capítulo: “24 de fevereiro de 1967 – Tarde”. E os seguintes são nomeados da seguinte forma: “17:50”, “18:03”, alguns com certos complementos como “Antes das 19:00” ou “Por volta das 20:00”. Um recurso interessante para um mangá interessante.

E tem mais. Muito embora o mangá se chame Omoide Emanon, a Emanon não é a protagonista. O personagem principal é o narrador sem nome. A maior parte dos balões de fala são pensamentos seus. Acabamos conhecendo bastante ele e simpatizando com a sua vida. Um jovem em busca de se conhecer. O conceito de viajem de auto-conhecimento pode parecer clichê, mas é sim um meio muito válido para se ter novas perspectivas da própria vida, principalmente quando se encontram lugares e pessoas diversas, algumas com habilidades muito especiais como no caso deste mangá.

A Emanon é uma presença difusa, quase etérea, como se fosse mais espírito do que carne. Uma hora ela está presente e na outra não. Por si só deve ser difícil ter algum lugar ou pessoa que verdadeiramente chame a atenção de alguém que tem memórias tão longínquas, tal ser não se fixaria em lugar algum. Praticamente é uma vida sem surpresas, e Emanon é retratada exatamente com essas características, uma garota meio hippie, com cabelos longos e calças jeans surradas e um suéter, além do sempre contínuo cigarro. Lembremos que essa história se passa em 1967, sendo esse um visual da época, embora seja muito atual até para os dias de hoje.

Mas o mais surpreendente da figura de Emanon é mesmo o seu olhar de alguém que já viu tudo da vida e não se surpreende com mais nada, uma espécie de tédio congênito. O que é plenamente explicável. Contudo, penso que não devemos pensar que a vida de Emanon era uma droga, ela ainda poderia se surpreender com o ser humano mesmo depois de ter conhecido muito mais gente do que seríamos capazes de ter contato em uma vida normal, e foi isso que aconteceu. Se foi destino ou coincidência, Emanon ficou atraída sinceramente pelo narrador, seja por simplesmente ter simpatizado com ele ou ficado surpresa pelo seu gosto em ficção científica. O mangá ainda dá mais um detalhe interessante que explica o que fez Emanon se abrir para um total estranho.

Uma tecla que tem que ser continuamente batida quando se analisa Omoide Emanon, é a sua arte. Nesse aspecto é um mangá magnífico. Não vou me estender nos méritos do traço de Kenji tsuruta, mas vou escrever um pouco sobre a composição do mangá. Até praticamente o enredo começar temos umas 13 páginas contando com a capa, todas com belas ilustrações do autor, muitas delas coloridas. Ao final do último capítulo temos mais uma compilação de ilustrações coloridas. São páginas com quadros e tudo mais, mas sem balões de fala. E para finalizar temos ainda um último capítulo especial “Viagens de Emanon”, uma série de páginas com Emanon andando por aí, igualmente sem falas. Ou seja, de enredo mesmo, no significado mais restrito do termo, temos apenas mais ou menos 150 páginas, o resto é deleite visual. E mesmo assim contribui para entender um pouco mais essa curiosa história.

Onde quero chegar? Que Kenji Tsuruta consegue se comunicar muito bem apenas com o desenho. Sem dúvida que balões de fala são importantes, mas as páginas sem nada escrito também se comunicam, mesmo que de uma forma muito mais sutil. As expressões das personagens, a paisagem, a maneira de se locomover. Tudo isso conta uma narrativa visual silenciosa. A paleta de cores suave também proporciona um sentimento de calmaria. Nada nesse mangá é apressado. Assim como a vida evoluiu no Planeta Terra ao longo de bilhões de anos, cada um de nós traça esse mesmo caminho na sua própria velocidade, mas o tempo é sempre o mesmo e todos conhecemos nosso destino final. Por isso não há no mangá traços que remetam velocidade e cores fortes e vibrantes.

No mais, Omoide Emanon é um mangá que faz pensar. Não gosto de chamar uma obra de “filosófica”, mas esse é o caso de um mangá que é impossível ler e logo em segui tirá-lo da cabeça. Você vai pelo menos dispensar alguns minutos pensando sobre ele e sobre a condição de Emanon. Imaginem só, alguém que é uma testemunha viva da história da vida. O mangá não dá uma resposta, mas discute se a habilidade de Emanon é um castigo ou uma benção, pois em muitos momentos é muito ruim saber de tanta coisa ao mesmo tempo, nosso cérebro tem a capacidade de esquecer por um motivo, como no caso de eventos traumáticos. Mas isso tudo é uma análise da pessoa da Emanon, do ponto de vista do planeta Terra é como se ela fosse um backup das informações sobre a evolução, que ela goste ou não.

O mangá é quase impecável. Digo quase pois tem algumas questões que não fazem muito sentido (vamos ter um pouco de spoiler só nesse parágrafo), principalmente sobre a transmissão das memórias entre as descendentes do sexo feminino. É sabido que se “perde” a memória acumulada quando alguém como Emanon tem uma filha. Mas qual o alcance dessa perda? Só se perde o acumulado das gerações passados ou se perde tudo? O mangá deixou essa dúvida no ar de maneira muito intrigante. Muitos anos depois, quando o narrador encontra finalmente a Emanon, ela esqueceu dele totalmente, só sua filha tem essas memórias. Penso o quão problemático é ter suas memórias totalmente apagadas quando se tem uma filha. Mas isso pode ser um alento para quem já está cansada de carregá-las, não é?

De qualquer forma, Omoide Emanon nunca se propôs a ser uma obra exorbitantemente séria e nem se deu ao trabalho de explicar profundamente qual a natureza de Emanon. Embora tenha muito diálogo discutindo estas questões, são apenas especulações. O foco são as pessoas mesmo, as emoções e sentimentos delas. O principal ponto da obra, ao meu ver, é mostrar como um encontro tão fantástico de apenas algumas horas pode ter uma importância tão grande para toda uma vida de alguém, uma memória encravada no fundo do coração (eu sei que as memórias ficam armazenadas no cérebro, mas mencionar o coração é mais poético).

O próprio autor do conto, Shinji Kajio, menciona no final do mangá que a ideia principal é justamente essa questão de “uma vez na vida“. E continua: “Não seria incrível se eu conhecesse uma garota incrivelmente bonita em uma viagem em uma balsa e eu passasse o dia inteiro conversando com ela sobre coisas aleatórias? E não iria doer nada se existisse um lado misterioso na garota, também. […] A ideia de ter alguém ocupando uma parte profunda, significante da sua memória, mas jamais poder ver essa pessoa novamente…

É isso, tive uma boa experiência lendo e escrevendo sobre Omoide Emanon. É mais difícil escrever sobre uma obra quando ela é muito boa, parece difícil encontrar as palavras certas para descrever o quão incrível ela é. Espero ter conseguido alcançar esse objetivo de forma satisfatória, e que as pessoas que já leram e as que ainda vão ler tirem algo de positivo do meu texto e que ele fique na memória de forma agradável. Esses são os meus mais profundos desejos.

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