Essa frase é bastante precisa quando se olha a ficção sobretudo, uma vez que as tramas mais emocionantes se originam de algum problema familiar em maior ou menor medida. E Arigatou leva essa premissa ao extremo, uma vez que a trama desse mangá de apenas 4 volumes gira exclusivamente em torno dos problemas enfrentados pela família Susuki, típica família japonesa de classe média dos anos 90. Pode-se então conceituar Arigatou como um drama familiar do mais alto grau. E extremas são também as emoções causadas ao acompanhar essa obra de Naoki Yamamamoto, que não é para qualquer um.Quando eu disse que esse mangá era um retrato, mas nem tanto, da desconstrução de uma família japonesa eu quis me referir diretamente ao aspecto extremo da obra, tão extremo que chega a soar incrível que tudo de ruim que acontece ali poderia realmente ocorrer junto na vida real e em uma mesma época. E é ainda mais assustador por ser realmente um cenário plausível! A própria sinopse dá uma amostra disso afirmando que se trata de uma história familiar onde uma das filhas foi estuprada e drogada por uma gangue de delinquentes, o pai perdeu o emprego, a mãe, uma alcoólatra, entrou em um culto maluco e a outra filha é uma “imoral”. A sinopse usa o termo imoral para a filha mais nova, mas é uma definição horrível, já que ela é apenas uma adolescente rebelde, e não sem motivos. E além destes infortúnio, há toda uma outra série de problemas que a família Susuki teve de encarar de frente.
Mas antes de esmiuçar mais a fundo as “desventuras em série” da família Susuki, vamos passar a limpo os seus dados técnicos. Arigatou, obrigado em português, é uma mangá composto de quatro volumes e 47 capítulos, publicados de 01 de outubro de 1994 até 01 de junho de 1995 na revista seinen Big Comic Spirits, a mesma revista onde foi publicado mangás de peso, como Oyasumi Punpun, Uzumaki e 20th Century Boys. Como já mencionei acima, o autor desta obra é Naoki Yamamoto, mangaká experiente, com vários títulos voltados à demografia seinen publicados ao longo dos anos, como Believers e Assate Dance, sendo que este último ganhou dois OVAs na década de 90. Arigatou inclusive ganhou uma adaptação live action em 1996, dirigida por Masaaki Odagiri.
Arigatou se mostra um mangá bastante icônico em sua abordagem dos maiores problemas sociais do Japão dos anos 90. E essa foi uma época realmente notável, entre os anos 80 e 90 o Japão observou o seu auge econômico, todos estavam otimistas e a economia só ia crescendo. Mas como todo milagre econômico não dura para sempre. Em 1988 a economia japonesa atravessava um longo período de oferta e demanda de ações e bens imobiliários, onde os preços estavam super inflacionados e o Japão tinha o m² mais caro do mundo, mas isso foi quebrado com a implementação de um imposto de consumo para segurar a inflação. (http://www.sjsu.edu/faculty/watkins/bubble.htm)
Este evento causou uma quebra em todo setor imobiliário e o Japão sofre os efeitos da recessão até hoje. Os impactos iniciais foram a quebra de diversas empresas, bancos e imobiliárias. Mas os impactos sociais foram ainda piores, o desemprego atingiu níveis recordes. Em suma, acabou-se o “milagre” da economia japonesa. Todo esse impacto social com o estouro da bolha propiciou o surgimento de toda uma geração pessimista que perdeu o entusiasmo com o crescimento do Japão, o que ajudou a culminar no crescimento da delinquência juvenil. Surgia-se uma geração “perdida”. E além da delinquência, propiciou o surgimento de outros “desajustes” sociais, como a popularização dos hikikomoris, aquelas pessoas que se recusam a sair dos seus quartos e interagir socialmente.
A família Susuki é uma família dessa época, em plenos anos 90 o pai e mantenedor da família, Ichirou, acaba de voltar para casa depois de seis meses trabalhando em outra região do Japão como funcionário de uma grande empresa. Mas o que ele encontra em casa quando chega? A esposa estava completamente catatônica e viciada em saquê, a filha mais velha, Akiko, estava sendo molestada por um grupo de delinquentes juvenis que forçaram ela a se drogar, e a filha mais nova, Takako, além de passar por uma fase rebelde, também havia sido molestada em menor grau, sendo que os bandidos tiraram fotos das duas em situações sexuais. O pai simplesmente enfia um coçador de ouvidos na orelha de um dos meliantes e arranja briga com os outros, ele é facilmente espancado e fica com uma cicatriz em forma de coração na testa. E mesmo sendo expulsos da casa, os delinquentes armam uma barricada e trancam a família Susuki na própria casa. Este é o início de Arigatou!
Ichirou, o pai de família, tem uma postura única de tentar resolver as coisas. Naturalmente ele se culpa pela dissolução familiar, afinal de contas ficou um tempo fora para poder sustentar a casa, então, tenta sozinho, carregar todo o peso dos problemas e reerguer a família a um estado aceitável. Ocorre que ele tenta fazer isso da maneira mais própria possível, recusa-se a chamar a polícia, pois tem desconfiança das autoridades, e ao longo do mangá protagoniza as mais prodigiosas cenas, como entrar na sala de aula com a filha depois de descobrir que ela sofria bullying ou ainda invadir a casa de um figurão em busca da filha. Mesmo com boas intenções ele se torna mais problemático do que útil, o que ocasiona a sua ruptura com a filha mais nova.
E essa desconfiança em relação à polícia e as autoridades confirma a ação de Ichirou em tentar proteger a família com as próprias mãos, já que não pode confiar no estado e demais instituições públicas arruinadas. E esse temor possui fundamento, já que o autor não deixa de demonstrar que um dos aspectos do crescimento da delinquência e da queda da qualidade de vida é justamente a corrupção dentro do próprio sistema social. O líder dos delinquentes, por exemplo, é filho do chefe de polícia, então ele faz o que bem entender e sai impune depois, quem fica com o status de bandido e encrenqueiro é Ichirou.
Outro exemplo da falência das instituições mostrada em Arigatou diz respeito ao Bullying. Não é de hoje que há diversos mangás e animes que mostram como os professores e diretores tendem a passar panos quentes e minimizar a existência de perseguições à alunos, citando alguns exemplos que vem rápido à mente seria 3-gatsu no Lion e Onani Master Kurozawa. Assim sendo, Arigatou, muito antes, já mostrava com uma crueza típica do autor, a situação complexa das escolas tentarem minimizar ou ignorar a existência de bullying. Parece que o importante é simplesmente manter as aparências e consertar tudo com meros curativos paliativos, enquanto os problemas sociais se intensificam.
A própria filha mais velha, que foi abusada sexualmente, acaba adquirindo um transtorno pós-traumático que a afastou em determinados momentos da sociedade e da escola, não conseguindo nem ao menos sair de casa, como se fosse uma hikikomori. E isso não se deu simplesmente pela violência sofrida, mas pela perseguição e importunação dos seus próprios colegas de classe. Takako, a filha mais nova, também passou por isso, mas por ser menos sensível e mais beligerante, simplesmente ligou o foda-se, inclusive se envolvendo sexualmente com os próprios agressores da família. Ela é um protesto ambulante, sempre criticando os métodos do pai, especialmente sua falta de sensibilidade, mas ela mesmo não entende o que quer da vida, como tantos adolescentes por aí.
Ocorre que o tom de Arigatou não é sempre sério, ele é permeado por um contínuo e potente humor negro, não sei quanto a vocês, mas isso de certa forma ameniza o conteúdo extremamente pesado desse mangá. Mas esse humor sempre é bem colocado para enfatizar a hipocrisia social da sociedade japonesa dos anos 90, seja a hipocrisia dos professores, das autoridades policiais e até mesmo dos ditos “cidadãos de bem”, que dentro de suas casas se enganam dizendo que a violência crescente é apenas um exagero que não se justifica em uma sociedade com a cultura tão elevada quanto a japonesa.
E quando se propõe a ser sério, Arigatou o faz com maestria, como na enfatização de que um dos problemas da delinquência e rebeldia juvenil é a maneira equivocada que os pais da classe média e alta do Japão trataram os seus filhos durante o período de boom da economia japonesa, enfatizando no proporcionamento de bens materiais, brinquedos, escolas caras e todo tipo de coisa, mas deixando de lado os laços familiares importantes para o desenvolvimento das crianças. Esses pais saíram de uma geração pós-guerra, viveram um período de crise e penúria, batalharam para conquistar suas coisas e por isso tentaram privar seus filhos de todos esses sofrimentos, e por isso se tornaram pais ausentes justamente para proporcionar conforto financeiro, como no caso da família Susuki, e isso foi um grande erro.
O próprio chefe da gangue e líder dos agressores da família Susuki, logo nos primeiros capítulos, dá voz a esse espírito de rebeldia da juventude japonesa perdida, com citações sem dúvida marcantes. “Quem está batendo em você não é o meu punho, mas o meu coração!” “O coração da sua própria família está usando meu punho para atacar você!” É por causa dos adultos como você que nós jovens nos tornamos rebeldes!” Ele não é apenas um personagem delinquente, é a personificação da rebeldia juvenil se voltando contra o erro de seus pais. Claro que não estou fazendo apologia à violência, mas deve ser mencionado que cada movimento social teve suas causas de vir à tona, e cada geração leva o fardo do que se tornará a próxima.
Outra coisa importante de mencionar sobre este mangá é que ele é extremamente sexual, há partes que estão na fronteira do hentai, como logo de cara no estupro de Akiko, como posteriormente no caso de sua irmã mais nova. Mas o sexo não é foco e nem eclipsa as questões principais do enredo. Desta forma, o humor negro, o conteúdo violento e a sexualização fazem Arigatou ser uma obra extremamente repelente para muitos. Pesquisando pelo internet, não foram poucos os que largaram o mangá no começo ou mesmo no meio. Nada é moderado, tudo é extremo e escrachado. Se você não está preparado para levar um soco no estômago, nem tente ler isto daqui.
E é engraçado como se inicia este mangá, como apenas um slice-of-life comum, um pouco mais adulto claro, mas ainda sim um slice-of-life. Adolescentes conversando sobre masturbação feminina, e isso é o começo do mangá, com a Takako mais experiente do que seus colegas de classe, por já ter experimentado o ato. Não há pistas que que vem a seguir, então o leitor já é jogado numa complexa trama de abuso sexual e invasão de domicílio, sem prévio aviso. E ao longo do mangá, tudo é jogado assim na cara do leitor, cada infortúnio enfrentado pela família é detalhadamente narrado e resolvido. Mas e quanto ao final, é bom ou ruim?
O final me deixou muito desconfortável, mas creio que isso seja bom no fim das contas. O pai e todo o resto fez o melhor possível para a família entrar nos eixos, mas nem tudo saiu como o planejado, mas também não saiu errado. Foi um final extremamente agridoce. É aquele tipo de vitória que sai muito caro e que fica até difícil comemorar.
Para finalizar, a arte de Arigatou também é assunto polêmico, mesmo para um mangá nos padrões dos anos 90 e é considerado um pouco feio, principalmente o design dos personagens. Mas na minha franca opinião, eu gostei da arte desse mangá, me lembro muito a arte dos mangás gekigas, aquelas obras dos anos 60 e 70 que abordavam este tipo de tema. A arte de Arigatou me lembrou muito o estilo. Claro que está longe de ser uma arte deslumbrante, mas serve muitíssimo bem para o que se propõe ser.
Assim sendo, Arigatou se mostrou um mangá bastante único na sua proposta, tratando de temas pesados de uma forma que uniu humor negro com os absurdos da sua narrativa. Mas o mais importante, os personagens foram concisos com suas propostas, todos tendo os seus altos e baixos, não deixando nada a desejar. Só o final que ficou deixou um gosto amargo na boca de incompletude, mas penso que isso foi proposital e não afeta muito o resultado final. Então é isso, leiam Arigatou e me digam o que acharam. Eu sei que não é uma obra de fácil digestão, mas valeu o esforço.