Kemozume: a estória centra-se num romance dito impossível, mas vai muito além disso |
É muito comum nos animes, e na ficção em geral, que os protagonistas carreguem traços de seus antagonistas. Em Bleach, o mesmo Ichigo que combate Hollows é parcialmente um, assim como Blade é um vampiro matador de vampiros. Mas e se, em vez de matar seus oponentes, o protagonista se apaixonasse por eles?
Essa é mais ou menos a premissa do anime que será discutido: um guerreiro ensinado desde cedo a matar demônios comedores de gente se apaixona por uma dessas criaturas. Antes de acreditaram que é um mero Romeu e Julieta com outra roupagem ou uma série romântica, já adianto que Kemonozume é muito mais que isso. A estória trata, antes de tudo, sobre os dilemas do próprio grupo de guerreiros conforme este se institucionaliza, se descola de suas tradições e vai se envolvendo com o dinheiro e o poder.
Essa é uma obra do diretor Masaaki Yuasa, produzida muito antes dele atingir o grande público com Devilman crybaby nesse ano de 2018. Kemonozume, um trabalho de 2006 com apenas 13 episódios, tem algumas especificidades que valem a pena ser mencionadas antes de se começar a discutir sua trama em si. A primeira se refere a sua animação. Eu sou alguém que não liga muito para esses aspectos mais técnicos, mas, sabendo que isso pode incomodar alguns, já adianto que a obra tem um estilo visual bem diferente. Na verdade, nada tão diferente do que o próprio Yuasa já não tenho feito em Ping Pong the Animation ou do estilo meio surreal de um Waking Life. A mim, não afeta em nada, por isso não vou me deter nisso, mas fica o aviso aos puristas da animação japonesa. Outro detalhe menor é que a obra contém cenas de nudez e sexo, então talvez não seja recomendado para todas as idades. Por outro lado, nada explícito e exagerado, então não vá procurando por outras coisas também.
O estilo de animação de Kemonozume pode deixar alguns com o pé atrás, mas dê uma chance a essa obra |
O dilema “tradicional” vs. “moderno”: uma falsa oposição?
Enfim, vamos ao que interessa. A estória se centra nos embates entre os shokujinki (os tais demônios já citados) e o Kifuken (o clã de guerreiros que os combate), mas os conflitos maiores são os internos. A chefatura do Kifuken é transmitida hereditariamente e, na linha sucessória, estão dois irmãos: Toshihiko e Kazuma. Cada um deles simboliza um lado da dualidade “tradicional” e “moderno”. Logo no primeiro episódio, somos informados de que os shokujinki estão mudando e está mais difícil combatê-los. Kazuma propõe a criação de robôs para facilitar a luta, enquanto Toshihiko permanece fiel a tradição das artes marciais de seu pai, Juzo, e, por isso, é o preferido na sucessão.
No entanto, Toshihiko se apaixona pela shokujinki Rie e, quando Juzo é assassinado e as suspeitas recaem sobre ela, ele passa a ser considerado um traidor. Kazuma assume a liderança, mas isso não irá durar muito tempo, pois a modernização que ele propõe ao Kifuken, logo irá voltar-se contra ele mesmo. O grupo, que até então erá secreto, vira uma empresa capitalista típica, recebe alguns subsídios governamentais e se revela a população em geral. Na verdade, Kazuma acaba sendo apenas uma peça de uma quebra-cabeça maior, mas vou evitar spoilers e falar de forma genérica para não citar detalhes ou personagens envolvidos nas tramas específicas.
Um dos integrantes do Kifuken se dirige ironicamente ao Kazuma, quando a “modernização” que ele propunha vira um tiro no próprio pé |
O que posso dizer e o que é interessante é que Kazuma inicialmente tem um medo: “Não deveríamos ser apenas uma ferramenta para o governo” [1]. O que acontece, na sequência, porém é o contrário: o governo se torna uma ferramente para a ascensão da empresa. Conforme eu já discuti no meu primeiro texto aqui no blog sobre Speed Grapher, a relação entre Estado e mercado no capitalismo é de duas vias e eu não acredito numa dicotomia Estado mal e mercado bom ou vice-versa. A questão é que um de seus sócios introduz membros das Forças Armadas e da polícia como executivos da empresa. Kazuma questiona a competência destes por não terem experiência em combate e ouve o seguinte: “É assim que funciona o mundo dos negócios. Usando sua influência, aumentaremos nosso poder” [2].
O dilema se acentua quando inicia-se a fabricação dos robôs. Um dos guerreiros diz: “Se isso for fabricado em massa, estaremos fora dos negócios” [3]. É fácil entender que isso se refere a demissão criada pela implantação de novas tecnologias no mundo do trabalho. Aliado a isso, cria-se uma droga para potencializar os poderes dos guerreiros que continuarem em serviço. Talvez seja apenas uma coincidência, mas no mundo real, o modelo de produção que nasce no Japão, o toyotismo ou sistema just-in-time, alia justamente essas duas características: redução de trabalhadores e intensificação do trabalho. Ou seja, se, de um lado, diminui-se uma pessoa, a outra que permanece tem que trabalhar mais ou ser mais “eficiente” [4].
Longe de mim querer exaltar o “tradicional” em detrimento do “moderno”. Não há nada de intrinsecamente bom ou ruim em qualquer um dos lados. Ambos são termos com significados historicamente datados e usados convenientemente para defender a mudança ou a permanência de algo. Para os tradicionalistas, o que existe deve permanecer e o novo é sinônimo de decadência de valores. Ao contrário, para os defensores da mudança, a tradição é ultrapassada. O interessante é que, apenas com o surgimento do capitalismo, o “moderno” vira algo positivo [5]. A questão, para mim, é superar essa falsa oposição, uma vez que a mudança faz parte da história, mas ela só ocorre a partir do que existe.
A convivência entre os valores tradicionais do Kifuken e os robôs como um modo mais eficiente de combate aos shokujinki era perfeitamente plausível. Do mesmo modo, é plausível que a tecnologia não fosse algo ruim para os guerreiros no anime ou, na vida real, para os trabalhadores japoneses. O problema não é a tecnologia ou o “moderno”, mas o direcionamento dado a este. E o direcionamento é o lucro. Só posso concordar com o que disse Stephen Hawking três anos de de sua morte: “Se as máquinas produzirem tudo que nós precisamos, o resultado vai depender de como as coisas são distribuídas” [6]. Ou seja, a questão não são os robôs em si, mas para que e para quem esses são usados.
O tradicional e o moderno parecem entrar em choque, mas por trás dessa oposição meramente valorativa há um elemento central e material |
“A realidade é dura” ou a ambição cega?
Eu mencionei que o romance não era tão importante e gastei um tempo com o Kifuken. Mas agora está na hora de mostrar seu papel na trama. Resumidamente, o amor entre um demônio e um matador de demônios é visto como algo impossível. Por isso, dizem muitas vezes para Toshihiko que ele deveria encarar a realidade e sair da ilusão que é o amor. “Você gosta de fugir da realidade, não é?” [7], diz o vilão central já em uma das últimas cenas do anime. O mesmo é válido para o dilema anterior: manter a tradição num mundo moderno seria ilusório já que a realidade dura é que esse é o mundo do dinheiro e onde quem mande é o “mais forte”.
Como o mundo funciona? Para certa perspectiva, a do vilão principal, os mais fortes encaram a “dura realidade” os outros são fracos e pobres |
O interessante é notar que aqueles que associam a “realidade” com o cruel, são os mesmos que tiveram ambições que podem ter sido exageradas e atos cruéis para com os outros. Para evitar spoilers diretos, vou dizer que o episódio 4 revela o passado de Juzo, mas não vou dizer o que exatamente revela. Mas, para quem sabe, fica claro a ambição por poder de ambos os amigos de Juzo. Enquanto Juzo só buscou o amor e via na realidade algo bom, os outros que seguiram pelo caminho oposto, também desenvolveram visões de mundo opostas.
O vilão central diz “Esse é definitivamente o mundo da sobrevivência do mais forte” [8] e resgata a velha fórmula hobbesiana da guerra de todos contra todos. “O homem é o lobo do próprio homem”, dizia Hobbes, numa das formulações sobre a natureza humana que mais voltam a ser repetidas a todo momento. Parece quase inevitável acreditar que o ser humano é mau por natureza nesse mundo contemporâneo. Mas não seria essa “maldade” produzida pelos diferentes contextos sociais, experiências de vida e as nossas próprias ações? Penso que sim e não é à toa que cada um deles vê a realidade de uma forma. Já comentei sobre isso em outro texto [9], então não vou argumentar teoricamente dessa vez. Mas, aproveitando a questão dos binarismos, é possível pensar num suposto ditado que diz que há dois lobos dentro de nós – o bom e o mau – e predomina aquele que mais alimentamos. Com certa similaridade, há a ideia de yin e yang na cultura oriental dessa convivência entre os opostos. Nesse sentido, não se dá para falar em uma “natureza” nem boa nem má, mas uma em que há a convivência dessas duas faces.
Na verdade, a questão da “maldade” inata funciona como o argumento da “modernidade”: não é possível algo diferente porque somos maus e o mundo é cruel (assim como mudar era visto como sinal de decadência). É um argumento baseado numa premissa que não se sustenta. No anime, aqueles que não tentaram algo diferente ou tentaram e fracassaram, generalizaram essa experiência particular e tentam limitar Toshihiko e impedir seu romance com Rei. Não vou dizer se conseguem ou não porque teria que contar o final da trama. Mas o que fica é que não se trata de uma oposição entre realidade e ilusão, mas daquilo que alguns acham que a realidade é e do que alguns acham que a realidade pode ser e lutam para que seja.
Considerações finais
Todo humano possuí um demônio interior? A questão seria conviver com eles? |
O anime não é altamente filosófico nem nada, nem penso que se proponha a ser. Ele é mais uma trama de ação mesmo e que, nesse sentido, o faz bem porque já no segundo episódio há várias reviravoltas. Um romance acaba sendo o fio condutor, ao mesmo tempo que não é o principal aspecto da trama, ao meu ver. O dilema “tradicional” e “moderno” é muito presente nas obras japonesas de animação. Vemos muitas vezes a exaltação dos valores (principalmente morais) tradicionais associados aos samurais, como honra e justeza, etc. Não se trata aqui de venerá-los e demonizar a sociedade “moderna”, propondo algum resgate abstrato do passado e negando as virtudes do contemporâneo.
A questão é superar essa oposição, combinando o que há de melhor em cada e ir para além do que essa falsa dicotomia pode oferecer. Toshihiko fala em selar o nosso demônio interior, o que pressupõe não sua eliminação, mas sim sua permanência lá. E ele, humano, supera a oposição que existia entre eles e os demônios – seja internamente, nesse caso; ou externamente, no seu amor com Rie. Assim, não se trata de matar os demônios, mas talvez de aprender a conviver com o que de bom esses tem a oferecer. Com o melhor de cada, surge o novo. Afinal, como já nos alertou Marshall Berman [10], o pensamento mais profícuo surge da percepção da contradição, da ambivalência, das duas faces de algo e nunca da análise unidimensional.
Notas:
[Nota 1: Episódio 5, 3:49, sempre segundo o player do AnimePlus][Nota 2: Episódio 7, 12:49]
[Nota 3: Episódio 5, 10:50]
[Nota 4: Um jornalista japonês diz o seguinte sobre o modelo: “não é tanto para economizar trabalho mas, mais diretamente, para eliminar trabalhadores. Por exemplo, se 33% dos ‘movimentos desperdiçados’ são eliminados em três trabalhadores, um deles torna-se desnecessário” (ANTUNES, Ricardo. “O toyotismo e as novas formas de acumulação de capital”. In: ______. Os sentidos do trabalho. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 58). ]
[Nota 5: Até o século XVIII – momento de consolidação do capitalismo e do “mundo moderno” – o novo, a mudança era vista como ruim. O capitalismo reapropria essa concepção e inverte a questão, ao se colocar como sinônimo de progresso em detrimento dos povos não-capitalistas “atrasados”. Cf. KUMAR, Krishan. “Modernidade e pós-modernidade I: a ideia de moderno”. In: ______. Da sociedade pós-industrial à sociedade pós-moderna. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 110-111; 118; 121-122]
[Nota 6: E continua: “Todos poderão desfrutar uma vida de lazer e luxo se a riqueza produzida pelas máquinas for dividida, ou a maioria das pessoas poderão terminar miseravelmente pobres se os donos das máquinas realizarem com sucesso um lobby contra a distribuição de riqueza”. Traduzido por mim do inglês: “If machines produce everything we need, the outcome will depend on how things are distributed. Everyone can enjoy a life of luxurious leisure if the machine-produced wealth is shared, or most people can end up miserably poor if the machine-owners successfully lobby against wealth redistribution. So far, the trend seems to be toward the second option, with technology driving ever-increasing inequality.” (Disponível em https://www.cnet.com/news/stephen-hawking-says-we-should-be-more-frightened-of-capitalism-than-robots/ e https://www.reddit.com/r/science/comments/3nyn5i/science_ama_series_stephen_hawking_ama_answers/cvsdmkv/)
[Nota 7: Episódio 13, 18:18]
[Nota 8: Episódio 12, 18:38]
[Nota 9: Na seção “Pequena nota sobre a discussão ser biológico vs. ser social” do meu artigo sobre Inuyasha publicado aqui no blog.]
[Nota 10: Basicamente, Berman argumenta que houveram dois grandes pensadores no século XIX (Marx e Nietzsche) e eles o foram porque analisaram a modernidade a partir de seus aspectos positivos e negativos. Depois, a partir do século XX, houve um extremo direcionamento ou para um pensamento ultra-positivo ou altamente negativo e resignado. Cf. BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar. Trad. Carlos Felipe Moisés e Ana Maria L. Ioriatti. 1. reimp. São Paulo: Schwarcz, 1986.]