Kemono Friends: O melhor episódio de Zoboomafoo

Kemono Friends é um anime de 12 episódios lançado na temporada de Inverno de 2017, inverno para o Hemisfério Norte cujo o Japão faz parte, Verão nas terras brasileiras.

Antes de partir para uma analise da obra propriamente dita, é bom salientar o impacto que Kemono Friends obteve na temporada em que foi lançado, chamando a atenção de um grande público (quase exclusivamente) japonês, sendo apreciada no lado Ocidental do globo pelos críticos, consumidores frenéticos e “otakus cults”. Kemono Friends chegou a ser nominado por muitos como uma das obras mais bem escritas de 2017.

Geralmente, as críticas de anime tendem a começar pelos elementos constituintes mais universais, depois partindo para os mais específicos. Entenda-se por esses elementos “universais” como a narrativa, enredo e desenvolvimento de personagem, sendo os mais específicos os tocantes a trilha sonora, dublagem e animação. Tal ordem de análise tem permissão para ser quebrada (por parte do crítico) caso uma obra venha a apresentar elementos secundários marcantes e únicos.

Kemono Friends é um desses casos descritos acima, então o crítico que vos escreve pede permissão para virar de ponta-cabeça a ordem de análise.

A animação de Kemono Friends, proveniente do pequeno estúdio “Yaoyorozu”, é exótica, diferente, personalizada. Usar-se-á esses termos para substituir adjetivos que podem ferir os sentimentos dos mais subjetivistas, mas talvez a palavra que mais pudesse salientar a real natureza da animação seria: pobre.

“Eu lhes apresento KEMONO FRIENDS”. Isso é o máximo de cenário que você verá.

Sim, Kemono Friends apresentar uma animação “pobre”, quando se fala “pobre”, é “pobre” mesmo, baixo orçamento é a chave para que o trabalho gráfico de Kemono Friends ser o que é. Se existe algum “argumento” para que não se utilize CG (Computer Graphics) 3D nas produções, esse “argumento” seria Kemono Friends. A animação é um mar de baixo orçamento, todos os movimentos dos personagens são mais duros que um pedaço de madeira, não existe a mínima fluidez no mexer dos braços e pernas, passando pela incapacidade dos rostos de expressarem sentimentos de maneira eficiente (devido à inexistência de qualquer linha expressiva facial) e, talvez a pior parte, a dessincronização entre a dublagem e o mexer do rabisco, chamado “boca”, dos personagens.

Esse é o ápice de nossa animação. Um trabalho meticuloso para quem teve um orçamento de duas coxinhas e um refrigerante quente.

Kemono Friends é sem sombra de dúvidas um processo de animação sofrível, um dos piores exemplos do uso do CG na indústria de animes, talvez perdendo apenas para o desgostoso anime Berserk 2016-2017. Não serão relatados nesse momento os outros elementos secundários (já citados), pode-se agora partir para o método “convencional” de redigir uma crítica, mas antes de chegar à conclusão geral sobre Kemono Friends, é sensato adiantar que uma das grandes lições é a de que uma capacidade narrativa elevada consegue transformar essa parca animação, barata e triste, ao patamar das grandes obras de 2017.

Kemono Friends é uma narrativa centrada na misteriosa Kaban-chan, nossa personagem inicia sua jornada em meio a uma savana africana sem saber quem é, nem de onde veio, nem para onde vai, tão perdida quanto  o espectador frente mundo em que se encontra, Kaban é abordada pela nossa segunda personagem: Serval-chan. A clareza e simplicidade dos primeiros minutos iniciais é tão clara (e bem feita) que a criação de um motto (inseirir aqui “não me coma, por favor” em japonês) é instantânea, isso é importante em toda a construção da obra que será explanada mais a frente.

Repita mentalmente:”Tabenaide kudasai”. “食べないでください”.

Serval-chan é um Friend (ou Furenzu ou フレンズ, para aqueles que gostam de um katakana básico) que apresenta não só o local de nossa estória o Japari Park, mas também é a que dá nome a nossa principal (já que a mesma não tinha nome) por meio de um processo criativo único. Só é preciso dizer que Kaban (カバン) é traduzido como “mochila” do japonês para o português.

A mesma personagem aparenta ser só mais uma garota fantasiada com uma roupa de “Serval” (santa obviedade), mas é necessário perceber que os elementos da reação de Kaban, o cenário escolhido (mesmo em sua baixa capacidade) e a maneira que Serval é introduzida (realmente, como um felino), fazem com que os telespectadores saibam e vejam Serval como um mar de mistério, junto à principal Kaban: “Ela é um felino realmente?”; “Se “sim”, como isso aconteceu?”; “E Kaban o que ela é?”; “O que é o Japari Park?”; “Por que tudo é tão feio, mas ao mesmo tempo tão fofo?”

Japari Park, meus queridos. Esse é o nosso local, e essa é nossa Serval. Detalhe aos detalhes biológicos, sem quebra de narrativa.

A narrativa segue com a criação de um objetivo para o enredo: levar Kaban para conhecer os “professores” do Japari Park, para que eles possam dizer a que espécie pertence Kaban (a intuição clara é que ela é humana, mas todos os Friends parecem humanos, então o mistério é justo). Esse é o ponto de partida da estória.

O que tem de especial em um anime que se baseia em garotas fofas e mal animadas andando do ponto “A” ao ponto “B”, encontrando garotas aparentemente vestidas de animais ? A reposta está em “tudo”. Ao apreciar os primeiros episódios de Kemono Friends é muito difícil que o espectador não perceba duas características fundamentais de toda boa obra: linhas de diálogos fenomenais e ações de conteúdo humano.

Ao falar de “linhas de diálogos fenomenais” poderia ser utilizado um método de transcrição quase que mecânico/robótico de cada fala de cada personagem no decorrer da série, mas é possível confirmar tal afirmativa a partir do que foi prometido ser explicado: a existência de tantos mottos no decorrer da estória.

Mottos são lemas ou meras frases de efeito, feitas para que os espectadores sempre tenham em suas mentes um pedaço reprodutível, fácil, simples e até mesmo profundo da obra. Criar um motto é difícil, pois o mesmo não pode ser uma mera reprodução mimética de uma frase. O lema é uma parte essencial da construção de um personagem em uma série, cada vez que o motto é emitido o espectador é capaz de repeti-lo em sincronia com o personagem e posteriormente sempre existirá associação desse motto a esse personagem, o motto não precisa ser algo cheio de originalidade ou mirabolante, mas apenas um reflexo límpido do que é o personagem, é uma maneira de conectar as mentes que assistem ao personagem sem parecer um movimento desesperado e idiotizante. Criar essa frase de efeito é difícil, pois necessita que ela não seja um mero elemento aleatório nas conversações, mas sim uma parte constituinte da atmosfera e do momento, inserir um motto em um diálogo é uma tarefa que não deve levar as conversas a um ponto sem sentido (algo como um personagem falar “banana”,“grunt” ou “wubba lubba dub dub” a cada 5 minutos não importa o contexto).

Kemono Friends não sofre do pecado descrito acima, pode-se colocar à mesa a evidência de tal organização, clareza e capacidade das linhas de diálogo, a partir do momento que se observa dois mottos criados e utilizados apenas no PRIMEIRO EPISÓDIO. O primeiro foi descrito algumas linhas acima, o segundo se encontra inserido abaixo:

O moto é a primeira parte, ou seja: “SUGOI!”, “すごい”.

Seria possível sair apresentando imagens/vídeos dos mottos presentes em Kemono Friends, mas para os leitores que apenas investirem nos três primeiros episódios já terão uma boa ideia do que o conceito exposto acima.  Sem sobra de dúvidas que Tatsuki (Diretor) soube organizar magistralmente o script de Shigenori Tanabe, de maneira que toda a sequência de falas e diálogos leva a um uso natural, continuo e marcante do motto, sem que em nenhum momento o espectador se sinta saturado da repetição do mesmo.

Só por esse elemento, a direção de Tatsuki já merecia certa admiração da comunidade, no entanto é necessário relembrar outra capacidade fantástica de Kemono Friends: “ações de conteúdo humano”. É muito comum que na construção poética de uma obra, os criadores estejam interessados em inserir um aspecto humano em suas obras, ou seja, em certos momentos (ou em todos os momentos) é necessário toques de uma realidade humana para que os espectadores se sintam projetados nos personagem. As projeções podem nascer do mais específico drama familiar/amoroso, até concepções gerais políticas/sociais ou de problemas psicológicos/espirituais (leves ou não). A magia de Kemono Friends está em fazer nascer uma projeção de um aspecto evolutivo, de maneira que em Kemono Friends o mecanismo poético é um relato da nossa condição biológica e evolutiva nesse mundo.

Pode parecer loucura que um anime com esse toque infantil, de animação duvidosa e cheio de fofura desperte algo relacionado à saga biológica humana. De fato, não existe uma quebra da narrativa para inserir fatos de Wikipedia, há na realidade um uso dos momentos de “intervalos” (a troca do bloco 1 para o bloco 2), nos quais são inseridos alguns especialistas de várias partes do mundo falando sobre os Friends (animais) que apareceram no episódio (é tão lúdico e infantil, algo que lembra programas como “zoboomafoo”, ou seja, maravilhoso). Quebras narrativas para fazer tais explanações são algo mais próximo do famigerado anime de 2016 Musaigen no Phantom World.

É essencial que quebras como essas nunca aconteçam em Kemono Friends. O aspecto humano está nas ações empreendidas por nossos personagens no decorrer da ida de Kaban até os nossos “Professores”, sendo que essas mesmas ações cabem como luvas nas situações, não como algo artificialmente inserido.  Kaban no meio dessa grande Odisseia revela a engenhosidade humana frente às forças naturais das maneiras mais básicas possíveis, desde atravessar um rio, usar os seus polegares de maneira inteligente, fazer fogo, cozinhar. Quando Kaban, na cena abaixo descobre um fato inconveniente chamado “roupas” e como tirá-las na hora de banhar-se é natural e útil, todos os outros Friends parecem surpresos da existência de algo tão óbvio quanto um pedaço de pano cobrindo a pele.

Partindo de uma mera pergunta
Chega-se a uma mera intuição, antes ignorada pelos Friends

Kaban projeta as descobertas mais básicas do viver biológico e social dos homens, tudo isso parecendo um pequeno passeio familiar a um parque ou um museu (sendo a própria narração um guia muito cativante), mas o summum bonum do processo evolutivo é preservado de uma maneira magistral, de maneira que a fofura quase infantil da obra se torna uma grande aula sobre a engenhosidade humana, atrelada a algumas aulas sobre diversos animais e ecossistemas sem quebras narrativas ou momentos que aparentam ser uma mera leitura de Wikipedia.

Kemono Friends é então uma grande epopeia onde se pode descobrir não só vários Friends, mas também maneiras divertidas de apresentar e aprender a humanidade.

Dado isso, é possível voltar-se para os outros elementos secundários da obra, fala-se da: trilha sonora e dublagem. Pode parecer que para os leitores o nível de tais elementos já está definido, pois foi apresentado que Kemono Friends tem uma animação fraca. Mas não se pode falar o mesmo sobre esses dois elementos supracitados (dublagem e trilha sonora).

A soundtrack de Kemono Friends de fato não é o ápice de refino, de grandes arranjos e composições, são soundtracks curtas (em média de 1:30 minutos) que tentam explorar mais o lado familiar, leve, fofo e cômico do anime. Nobuyuki Abe (Diretor de Som) é conhecido por trabalhar com obras undergrounds, como “Banaya” e “Nyanko Days”, nos quais o importante é ressaltar certa fofura quase caricata e um determinado ambiente familiar.

Com o suporte das composições de Tateyama Akiyuki, Kemono Friends constrói cada cena com uma soundtrack cativante, que seduz não por sua capacidade de criar fortes emoções ao espectador, mas por lembrar que a obra é uma viagem familiar pelo Japari Park, toda a experiência de passar o conhecimento sobre Friends (meninas-animais humanóides) e sobre os próprios seres-humanos é envelopada dentro do aspecto “family friendly” de “Toboketa Nakamatachi”, “Kaze wo Kanjite”, “Tanoshii Nakamatachi” e muitas outras.

O time de dublagem da obra é gigantesco, dado a quantidade de  Friends que Kaban e Serval encontram pela frente. As dubladoras são das mais diversas qualificações, toda a multicidade de características dos personagens no decorrer da estória, seria como “chutar um cavalo morto” citar todas as vozes e fazer uma análise minunciosa de todas. Na verdade, a maneira mais sensata de revelar a qualidade da dublagem é apenas observar a animação da obra, não existe possibilidade de os rostos do CG expressarem algo, o rosto está ali apenas pelo design de cada Friend (que de fato é único e bem pensado, mesmo o molde sendo totalmente padrão perceptível). Dado isso, a voz é a única parte dos personagens que está ali para expressar algum sentimento.

Se for possível sentir algo mais emocionante em Kemono Friends, tal efeito é tem como principais culpados a narrativa e a dublagem, pois a soundtrack é deveras inocente (sendo a trilha “Nagi” a única música que cria certa emotividade) e a animação não é capaz de criar expressões faciais e nem cenários fortes os suficientes para tal.

Kemono Friends, ao fim, é uma obra que mostra que baixos orçamentos, com um pouco de criatividade e esforço podem resultar em uma obra magistral, capaz de quebrar preconceitos visuais. A obra é perfeita como um alívio do stress, capaz de deixar seus espectadores leves dado a sua narração, ao mesmo tempo é capaz de prender pelas pequenas curiosidades do caminho e revelar a criatividade desse pequeno mundo proposto. É sensato enquadrar Kemono Friends no seleto grupo de animes de 2017 onde tivemos um capricho único por partes de seus criadores (principalmente, por parte do diretor Tatsuki), o que se mostrou algo pouco presente nas produções desse respectivo ano.

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