Quando se escuta o nome Heaven’s Door logo vem à mente a música Knockin’ on Heaven’s Door de Bob Dylan, popularizada pela banda Guns N’ Roses, ou mesmo o stand de Roran Kishibe da série Jojo Bizarre Adventure. Não vai ser sobre nenhuma destas “Portas do Céu” que eu vou escrever aqui, mas sim do mangá de Keiichi Koike chamado Heaven’s Door, que é, sem sombra de dúvidas, uma das coisas mais surreais e delirantes que eu já li, misturando conceitos sobre vida post mortem, consumo de drogas e psicodelia.
Heaven’s Door é um mangá oneshot, composto por 10 capítulos, de autoria de Keiichi Koike, publicado em 2003 na revista voltada ao público seinen Comic Bean, casa de mangás como Thermae Romae e King of Thorn. Keiichi Koibe é mais conhecido por outro mangá seu que ainda está em publicação desde 2001, Ultra Heaven, que narra uma estória em um universo onde todas as drogas são liberadas, levando a temática do uso de drogas ao limite da imaginação, ainda mais quando um novo entorpecente poderosíssimo entra no mercado. Heaven’s Door que vou escrever agora não difere muito do seu clássico Ultra Heaven, por abordar um pouco o tema das drogas além de outros assuntos.
A obra de Keiichi Koike lembra mundo a temática trabalhada por um dos maiores expoentes da ficção científica do século XX, Philip K. Dick, diante da abordagem interessante que faz das possibilidades alucinógenas de diversas substâncias. Ambos os autores levam a discussão do que é realidade até os seus extremos, sendo as drogas um elemento bastante presente quando a intenção é justamente nublar e perturbar a mente. A temática da robótica e da questão do que é ser humano também é uma característica familiar entre os dois autores. O uso de quadros nada usuais também ajuda numa composição de uma atmosfera insana, a fronteira entre o real e o surreal na obra de Keiichi Koike é bastante tênue.
Heaven’s Door é um mangá one-shot divididos em capítulos que não possuem ligação um com o outro, cada uma é uma estória única, algumas das estórias deste mangá possuem continuações ou resoluções em outras obras, mas tratarei apenas do conteúdo de Heaven’s Door. Sendo assim, vou falar um pouquinho sobre cada capítulo deste curioso mangá, que asseguro, será uma viagem delirante pelo mundo dos sonhos! Haverão alguns spoilers, já que uns capítulos são bem pequeninos e tudo que for falar sobre eles já será significante ao enredo. Estando avisados, vamos prosseguir.
Antes do primeiro capítulo que faz referência ao título da obra é Knockin’ on Heaven’s Door, há um brinde que eu não poderia chamar de uma estória propriamente dita, pois é uma compilação de belíssimas e detalhadas ilustrações com temática egípcia, mais especificamente a grande fachada de um templo majestoso, no qual é possível ver em seu interior uma estátua provavelmente o deus Hórus com o disco solar em sua cabeça. Destaco o detalhamento das ilustrações, desde os hieroglifos aos menores detalhes do templo.
O interessante é que as imagens tentam passar uma história, por exemplo, a já na segunda ilustração aparece um grupo de egípcios, pareciam policiais, perseguindo alguém, depois na terceira ilustração a imagem se torna preto e branca e mostra a cena de um violento acidente de caro. Destaco que isso tudo sempre com o templo no fundo. Depois aparece até o mesmo templo, mas ao invés da imagem de Hórus dentro dele, o que aparece é o autor! Seria muito cansativo descrever todas as bizarrices destas imagens sobrepostas, melhor conferirem vocês mesmos.
Agora entramos no primeiro capítulo propriamente dito, Knockin’ on Heaven’s Door. Essa história é bem curta, possui menos de 10 páginas. e de compreensão um pouco complexa. Nesse capítulo é retratada uma cena de ação, o cara mata alguns caras e depois é atacado por um cachorro, acabando por cair dentro de uma lata de lixo. O curioso é que ele acaba saindo pelo outro lado e se depara com um mundo paradisíaco, cheio de verde e animais correndo soltos. Aparentemente ele se lembra que tem uma família para proteger e volta pela lixeira até o mundo “real”.
O curioso ocorre quando nos quadros seguintes é mostrado que tudo não passa de um teste, o homem era o número 18, se for realmente um homem, pode ser apenas um androide, já que nada é esclarecido. Talvez esse capítulo possa se tratar de demonstrar algum teste com alguma droga ou uma nova tecnologia de manipulação da mente. Em Knockin’ on Heaven’s Door já é possível ter uma boa ideia do tipo de bizarrice que esse mangá pode proporcionar. Então vamos seguir ao próximo capítulo.
O capítulo seguinte se chama 3000 Leagues Searching for Mother, que pode ser traduzido livremente como 3000 milhas procurando pela mãe. Essa estória é mais concisa e longa, possuindo um enredo muito mais palatável e entendível, embora apresente seu alto grau de surrealismo. Neste caso a temática são robôs e sonhos. Impossível não lembrar do mais famoso livro de Philip K. Dick, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, o qual faz muito sentido na presente estória.
3000 Leagues Searching for Mother parece na primeira olhada um tipo de história semelhante a clássicos como Alice no País das Maravilhas, pois mostra um menino procurando pela sua mãe em um mundo totalmente maluco, cheio de criaturas estranhas e paisagens surreais, como televisores espalhados em todo lugar, além de um grande cogumelo formado provavelmente por uma explosão nuclear. Nesse capítulo o menininho interroga várias pessoas ou criaturas esquisitas sobre o paradeiro de sua mãe.
Cada um destes seres estranhos que o menino encontrou pelo caminho possui um número, 2998 para cima. Assim, a criança sabe que o número da sua mãe está próximo, bastando continuar procurando. Ao longo da viagem ele encontra outro menino que o salva a vida que o acompanha até o seu destino, visto ele estar procurando seu pai. Os dois desenvolvem uma grande amizade e prometem nunca esquecerem um ao outro.
Dentro deste contexto se desenrola 3000 Leagues Searching for Mother, e após o menino encontrar o lugar com o número 3000 e se despedir de seu amigo, ocorre um baita “plot twist”, mostrando que aquilo tudo não passava de apenas uma alegoria, com o intuito de encontrar um certo defeito em um certo circuito de número 3000. Esse capítulo trabalhou muito bem com a temática da robótica, mostrando que até robôs podem ser capazes de sonhar. Cada capítulo de Heaven’s Door é uma surpresa.
O próximo capítulo se chama Lazaro Franco’s Fourth Hour. Esse é um dos capítulos mais alucinados desta coleção, e o responsável por eu ter dito lá em cima que Keiiche Koike é um mestre em descrever de maneiras totalmente insanas as possibilidade de expansão da mente produzidas pelo uso de alucinógenos. Neste capítulo é impossível saber o que é imaginação, alucinação ou realidade, tudo é misturado, cabendo ao leitor criar sua própria “verdade” após ler esta obra.
Em Lazaro Franco’s Fourth Hour é narrada a história de um turista japonês chamado Koji, que numa viajem pelos EUA (a estória se passa em Nova York, e é até possível ver as Torres Gêmeas ainda de pé!) vai acompanhado de um amigo até uma festinha particular, repleta de todos os tipos de drogas, como maconha, cocaína e bebidas alcoólicas. Depois de ficar muito doidão, Koji é levado pelo seu amigo para descansar no apartamento de um traficante brasileiro chamado Lazaro. Quando Lazaro vê Koji pela primeira vez, tem a impressão de já tê-lo visto anteriormente, mas mesmo assim recebe em seu apartamento.
Koji acaba se envolvendo profundamente na vida de Lazaro, que vê a si mesmo como um “vendedor de sonhos”, sendo assim, ele apresenta a Koji uma erva chamada “Hierba de la Muerte”, utilizada pela tribo dos maunai nas profundezas da Amazônia para julgar alguém de seus crimes. Se a “fumada” for boa a pessoa vai para o céu, se não, ela morre ou sua alma é aprisionada no “círculo do tempo”, um local onde a alma fica presa para sempre. Ignorem o fato do nome da erva ser em espanhol e a aldeia ser do Brasil, geralmente estrangeiros fazem essa confusão com a língua, mas pode ser realmente que seja em espanhol devido ao fato da amazônia abarcar outros países da América do Sul.
Quem fuma essa erva precisa ser acompanhado pelo “pastor”, alguém que a fuma também para se certificar do destino do réu. Lazaro acredita que Koiji é o seu pastor, já que ele fugiu da aldeia antes de ser julgado, assim seu destino passaria a persegui-lo. Ambos acabam fumando a erva. Assim inicia-se uma viagem muito louca que não dá nem para descrever, uma mistura de alucinações com elementos que podem ou não ser paranormais, quem for ler julgará da maneira que achar mais conveniente. Essa foi uma das estórias que mais gostei dessa coletânea, já que aprecio enredos os quais brincam com a realidade e as percepções do leitor.
O próximo capítulo se chama The Fallen Samurai and the Sea. Esta estória é um pouco diferente das outras, além de ser bem curtinha, nela não há falas. Em resumo mostra um encontro de um samurai que navegava um barquinho com um grande navio Ocidental. A intenção do autor foi justamente mostrar o impacto entre o modo de vida tradicional dos samurais com os avanços da tecnologia.
O samurai literalmente fica doido com o que lhe é mostrado, desde relógios cucos, filmes de cinema, até bailes e danças de salão. Tanto é que o samurai foge correndo do navio. Na última página a historieta ainda nos brinda com um mind blown memorável. Bem, é uma história de comédia, rápida e sucinta como uma esquete de programas de humor, contribuindo para o enriquecimento do mangá, tornando-o ainda mais variado.
O capítulo cinco se chama Loopa, e nos trás a história de um menino que sofria bullying de seus colegas de turma, por ser passivo e parecer o Quasímodo do Corcunda de Notre-Dame. Enredo sobre Bullying, até aí nada de novo. Acontece que certa vez, o menino encontra uma tartaruga e lhe dá o nome de Loopa. Ele acaba levando o animalzinho para escola. O pessoal que provocava ele acaba achando o réptil e começam a brincar com ele. Ocorre que o bicho voou pela janela e caiu de uma grande altura, muito provavelmente morrendo com o impacto.
O surreal deste capítulo acontece nesse momento. O tempo fica doido, primeiramente ele parou, depois começou a acelerar. Depois de um tempo pareceu que a cidade foi totalmente abandonada e só sobraram tartarugas. Depois de muita psicodelia o menino acaba voltando para casa, sendo que parecia que havia passado muito tempo no mundo real. Esse evento trás consequências na vida do menino para melhor. Loopa é um conto fantástico, lembra muito a obra de Daisuke Igarashi, por brincar com a sobrenaturalidade do cotidiano de uma forma natural.
Kenbo’s Diary é o próximo capítulo. É o mais difícil de descrever e o que eu menos gostei desta compilação. É uma estória caracterizada por alunos de uma sala de aula. Nada é normal, desde um professor que apenas um sistema nervoso ambulante até um aluno que de tão tímido, sua cabeça se retrai até entrar para o lado de dentro do corpo. O traço é caricaturado para dar uma melhor sensação de non-sense. É tão bizarro e variado que parece que minha cabeça vai explodir por absorver tanta informação junta.
O próximo capítulo é Sponge Generation. Um pequeno capítulo de oito páginas que briga facilmente pelo título de mais bizarro. É igualmente difícil de descrever como a maioria dessa coleção. Vou ser o mais sucinto possível só para sentirem do que se trata. Um cara solta uma lasca de pele do dedo e vai até um médico (aparentemente todos na cidade fazem a mesma coisa). O médico dá um instrumento parecido com uma chave com a aparência de uma cabeça de boi. O rapaz usa o aparelho e o seu dedo é arrancado. O objeto pode ser usado para abrir uma fenda em qualquer lugar. A cidade vira um caos e surge um deus minotauro que domina todo mundo. É isso, tirem suas próprias conclusões…
O capítulo oito se chama By Plane. Esse é o maior capítulo e o que eu acabei mais gostando. Em resumo se trata de uma bizarra experiência de EQM (Experiências de Quase-Morte). A ciência ainda estuda a veracidade destas ocorrências, mas ainda ninguém chegou num verdadeiro consenso que não seja uma paranormalidade. A estrutura desta história é bizarra por si mesma, já que não é linear e o autor não mede esforços para deixar tudo o mais maluco possível. O uso maluco dos quadros nas páginas também ajuda a dar uma aura de surrealidade no contexto geral.
A história de By Plane já começa com um grotesco banquete de cérebro e logo a imagem muda para uma mesa de operação na qual está sendo operado o cérebro do protagonista, depois as coisas se tornam ainda mais malucas. Parte da História se passa no suposto mundo real na sala de cirurgias e a outra no “mundo diverso”, onde o protagonista conversa em um avião com um homem (Deus, Diabo, um anjo?) que explica a delicada situação em que ele se encontra, forçando-o a fazer uma escolha. Para ele poder “sonhar” e “viajar” para sempre bastaria acompanhá-lo, caso contrário voltaria para a sua vida monótona de uma forma inesperada.
Tem que prestar muita atenção ao ler essa estória, é difícil diferenciar o que é experiência de quase-morte do protagonista ou é a realidade, visto ser tudo mesclado. É bastante confuso, eu sei, mas eu gosto disso! Claro que não é possível termos certeza de que aquilo tudo aconteceu mesmo com o protagonista ou foi apenas alucinações causadas pela sua própria mente depois de ter sofrido o acidente. Isso na verdade não importa, o que vale mesmo a pena em By Plane é a narrativa agressiva e flutuante de Keiiche Koike, onde nada é o que parece ser.
O penúltimo capítulo se chama Horizon. Se trata de mais uma obra curta com conteúdo alegórico. Em suma, mostra um astronauta que parece perdido no espaço mas que deseja voltar a ver sua família. No meio desta situação ocorrem eventos estranhos na Terra, como a quebra de tudo que é de vidro. O último capítulo se chama Landed, e é muito bacana mesmo, já que toda a estória é contada em uma única página! Cada quadro mostra a história de um casal, no qual o marido é astronauta e sofreu um acidente em uma missão.
Há ainda um capítulo final “10.5”, chamado Stereo Scope. Este bônus se trata de quadrinhos em estilo ocidental sobre um agente que possui três faces. Há um conjunto de várias aventuras psicodélicas deste personagem. Além disso, não há falas e o ritmo é bastante acelerado. Não é uma obra-prima mas é interessante. Assim, termino minha análise das one-shots presentes em Heaven’s Door.
Falando um pouco da obra como um todo, Heaven’s Door apresenta uma grande variedade de temas e espécies de narrativa, sendo uma experiencia bastante curiosa lê-lo. Esse tipo de abordagem variada é um pouco raro de se ver, geralmente em one-shots que compilas estórias curtas a temática é parecida ou o estilo de narrativa é semelhantes. Heaven’s Door ganha pontos por essa característica. Além disso, ele é muito bom em colocar no papel elementos surreais, desde alucinações por drogas até experiencias de Quase-Morte. A disposição de seus quadros que ocorrem de maneira nada ortodoxa auxiliam muito em conferir à obra um nível de insanidade tremendo.
A arte do mangá não deixa a desejar, mas não chega a ser uma obra prima, seu design dos personagens não é propriamente o que se chama de bonito. Keiiche Koike possui um estilo mais realista, fugindo um pouco dos elementos mais característicos dos desenhos dos mangás. Entretanto, sua obra é bastante detalhada e divertida. Não canso de repetir, a maneira como ele dispõe os elementos nos quadros é única, conferindo uma surrealidade ímpar. Em muitos capítulos ele conseguiu variar grandemente o seu estilo tornando-o mais caricaturado como as comics americanas.
Heaven’s Door é uma obra interessante para todos aqueles que gostam de um mangá diferente, fora da casinha, com uma narrativa diferente e temáticas bem distintas. Também é um bom pedido para aqueles que gostam de obras que abordam temas psicológicos, já que esse mangá explora muito bem vários aspectos da mente, como o uso de entorpecentes e Experiencias de Quase-Morte. Também é uma boa indicação para aqueles que gostam de ler uma obra muito louca. Assim, fica por aqui esta postagem, espero que alucinem com heaven’s Door.