Desta vez o Dissidência Pop dará um mergulho direto no universo da ficção científica cyberpunk dos dos anos 90, com o clássico Armitage III, inspirado por clássicos do gênero, como o filme Blade Runner de Ridley Scott. Robôs, ciborgues, cidades caóticas, conflitos existenciais e uma trilha sonora eletrônica da década de 90, são algumas coisas que você encontrará em Armitage III.
Armitage III é uma obra original, composta por quatro OVAs exibidos de fevereiro a novembro de 1995. A animação foi produzida pelo estúdio AIC. Seu criador, diretor e roteirista é ninguém menos que Chiaki Konaka, famoso por ser o roteirista de clássicos como Serial Experiments Lain e Digimon Tamers, simplesmente um mestre da ficção científica.
Na época do seu lançamento, Amitage III teve uma boa repercussão, tanto de crítica como de público, mesmo não sendo uma obra muito conhecida atualmente. O principal motivo pelo obscurecimento de Armitage III se dá pelo fato de não ter conseguido superar em atenções o seu principal rival daquele fatídico ano de 1995, Ghost in the Shell, referência quando se fala em animes de ficção científica cyberpunk centrado em questões de robótica.
Em suma, Armitage III foi totalmente eclipsado por Ghost in the Shell, esse é o risco de obras com temáticas muito semelhantes serem lançadas quase conjuntamente. Mesmo não possuindo o sucesso de Ghost in the Shell, Armitage III conseguiu emplacar uma pequena franquia, nada comparada a de seu bem sucedido rival, composta por dois filmes, Armitage III: Poly-Matrix (1996), que não é nada mais que um resumo da obra, e Armitage III: Dual-Matrix (2002), finalmente apresentando algum conteúdo inédito, dando sequência a obra.
Como se pode perceber, Armitage III é uma obra de ficção científica, por englobar elementos até então inexistentes em nossa realidade, como a presença de androides em nosso dia-a-dia, além da colonização de outros planetas, como Marte, onde se passa a trama. Mais especificamente, Armitage III ainda se pode encaixar em um subgênero da ficção científica, o cyberpunk.
Cyberpunk, para quem não conhece a terminologia, é um tipo de ficção científica com o enfoque em mundos distópicos, nos quais há uma grande quantidade de tecnologias, mas muitas misérias sociais e morais. Geralmente obras cyberpunk se passam em mundos degradados, ou meramente em regiões degradadas, como guetos, favelas e periferias de grandes centros urbanos.
A miséria, a criminalidade, a violência e o uso de drogas são elementos constantes do cyberpunk, como também toda sorte de elementos sombrios, música punk, hackers de computador, e um ambiente noturno repleto de luzes neon. É uma espécie de “reverso” de mundos utópicos criados na ficção científica, onde se predomina a ordem e a civilidade, como em Star Trek e nas obras de Isaac Asimov.
O cyberpunk surgiu em meados do século XX, e o seu principal expoente foi William Gibson, com o seu livro Neuromancer, que introduziu conceitos como inteligências artificiais, hackers de computadores entre outras coisas. A obra de William Gibson foi usada como inspiração para diversos clássicos da ficção científica cyberpunk, como Ghost in the Shell, a série de filmes Matrix e claro, Armitage III. Inclusive, “Armitage”, é o nome de um personagem do livro Neuromancer de William Gibson, mas a semelhança fica apenas no nome.
É dito também que Armitage III sofreu influência do clássico filme de ficção científica Blade Runner: O Caçador de Androides, diante da temática de robôs inseridos na sociedade numa trama repleta de ação. Mais do que inspirado neste filme, devo dizer, Armitage III foi influenciado pelo livro que baseou o filme, Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? De autoria do mestre da ficção científica Philip K. Dick.
Todos os profundos questionamentos sobre robótica no que tange a noção da própria realidade e existência do ser humano e da vida, que podem ser vistos em obras como Armitage III e Ghost in the Shell, são derivados da obra de Philip K. Dick. Ele trabalhava em sua obra sobre a tênue linha que por vezes pode separar uma inteligência artificial de uma inteligência orgânica de um ser humano.
Também há a influência da obra do mestre do terror cósmico H. P. Lovecraft em Armitage III. Segundo o próprio criador da animação, Chiaki Konaka, Armitage III foi influenciado pela novela O Terror de Dunwich, uma das principais obras do mythos lovecraftiano, inclusive, há nesta novela um personagem chamado Dr. Armitage. Isso não é de se espantar, visto que Chiaki Konaka escreve obras de ficção baseadas no universo lovecraftiano, não sendo raro encontrar referências em seus trabalho de animação, como em Digimon Tamers.
Voltando para a obra analisada neste post, dando uma sinopse básica da obra, pode-se dizer que Armitage III se passa em um futuro em que o uso de robôs na sociedade é algo comum, sendo utilizados para todas as tarefas, seja trabalho ou a satisfação de prazeres. Como é comum em obras do gênero, sempre há uma parcela da população que abomina e prega a destruição dos robôs, por estarem roubando o lugar do seres-humanos, sendo uma afronta à natureza.
Neste contexto, Ross Sylibus, um policial terráqueo é transferido para trabalhar no Departamento de Polícia de Marte. Nota-se que Ross nutre uma aversão aos robôs, pois sua parceira morreu assassinada por um robô descontrolado. Esse tipo de motivação também é bastante presente em obras que envolvam robótica, quando o protagonista odeia robôs por estes terem lhe causado um mal a nível pessoal, como no filme Eu, Robô. Outra semelhança com este filme é que tanto Ross como o personagem de Will Smith em Eu, Robô, não aceitam que seus carros sejam dirigidos automaticamente, preferindo a direção manual.
Ross, mal chegando no aeroporto de Marte se depara com uma confusão, uma famosa cantora country é assassinada (a última cantora country do universo por sinal) e descobre-se que na verdade ela era um androide, fato até então desconhecido. Na confusão ele conhece por acaso sua nova parceira, a explosiva e desbocada Naomi Armitage, que parece mais uma dominatrix pronta para iniciar uma sessão de sadomasoquismo do que uma policial, devido as roupas que usa. Mas essa sexualização das protagonistas não é algo recente mesmo.
Armitage se empenha na captura do assassino, mas este foge do local. Esse fato acaba sendo o estopim de uma revolução anti robôs iniciada em Marte. O mesmo assassino da cantora, René D’anclaude, inicia uma perseguição a todos os androides humanoides que vivem inseridos na sociedade marciana de forma clandestina, eliminando todos das formas mais cruéis possíveis, além de incentivar o ódio das massas contra os robôs.
Ross e Armitage são encarregados de investigar o caso, no início eles não se dão nada bem, mas enquanto avançam em suas investigações descobrem elementos que envolvem fatos dos passado de ambos, o que acaba estreitando sua relação. Por de trás dos assassinatos dos androides, se esconde uma investigação muito mais importante, já que tais robôs são chamados de “Terceiros”. ou seja, são de terceira geração, sendo que sua fabricação era desconhecida até o presente momento.
Qual seria o motivo destes androides avançados estarem se infiltrando na sociedade? Quem os criou e de onde eles vieram? Porque eles estão sendo perseguidos? Estas e outras perguntas são o alvo da investigação de Ross e Armitage. A obra ainda adentra profundamente como: “O que caracteriza um ser vivo?” “É possível um robô possuir sentimentos e ser considerado vivo?” Sendo estes alguns dos principais questionamentos em obras nas quais a robótica está presente.
Incrível como a ficção científica propicia um grau quase inimaginável de questões existencialistas que podem ser trabalhadas dentro de suas tramas. O robô em si é um elemento muito único, principalmente se for um androide que imite um ser humano. Naturalmente, os robôs não pediram para serem criados, não seria injusto que eles fossem perseguidos pelo simples fato de existirem, sendo que não foram nem os responsáveis pela sua existência? E para agravar tudo, alguns desses androides são capazes de simular emoções humanas.
Interessante como os seres humanos em Amitage III, não conseguem aceitar que os androides possam realizar ações que seriam exclusivamente humanas, como as artes, e não apenas serviços braçais. Onde já se viu um androide que canta e consegue emocionar multidões? Ou uma famosa pintora, ou ainda uma renomada dançarina? As androides de terceira geração eram capazes de se dedicar a arte como qualquer humano. Os seres humanos preferem pensar que o artista original foi substituído por um robô do que qualquer outra coisa.
O curioso é que o ser humano, no ponto de vista criacionista é semelhante a um robô, foi criado por um ser que detinha o poder da criação da matéria. Assim, nós somos os deuses dos robôs, e por vezes, na ficção, deuses maus, que não sabemos lidar com as nossas criações, eliminando o que não nos agrada. Os robôs seriam humanos imperfeitos, no máximo os podendo imitar. Um ponto de vista nada positivo da criação, típico de correntes gnósticas, onde a criação é vista como algo intrinsecamente ruim. Ressalta-se que o gnosticismo é bastante presente na ficção científica, como pode ser visto nesta situação dos robôs (Gnósticos Sonham Com Robôs Gigantes? O crescimento do gnosticismo nos animes japoneses.)
Outro questionamento é levantado, se caso os robôs servem apenas como um meio para os seres humanos obterem prazer como meros escravos de suas vontades. Em Armitage III, é possível vislumbrar que quase todos os robôs são mulheres, possuindo funções desde prostitutas até secretárias. Essa situação é levada ao extremo quando uma robô é utilizada como um banquinho ou um apoio para copos!
O interessante é que mesmo as pessoas utilizando os robôs para simplesmente tudo, o ódio é voltado para eles, que estariam roubando seus empregos e tomando o lugar das pessoas. Armitage III mostra bem o aspecto de manipulação das massas contra os androides pela ação do vilão D’ancloude, que é hábil em guiar a turba em uma torrente de ódio e destruição.
É realmente louvável o pano de fundo político de Armitage III. Nada é colocado por acaso, o próprio extermínio dos androides de terceira geração recebeu uma motivação política profunda, com fortes repercussões geopolíticas que somente são elucidadas ao final da obra. Agora vou citar alguns spoilers relevantes nos dois próximos parágrafos.
Nem chega a ser algo muito revelador, Naomi Armitage é uma androide, uma das mais avançadas já criadas, tendo muitas semelhantes com as androides de terceira geração. Amitage III foi muito criativo em dar uma motivação plausível para o fato de apenas haverem mulheres como androides de terceira geração (tirando um caso único de um terceiro masculino). Os robôs poderiam engravidar! Uau. Está bem que estes androides misturam partes orgânicas com mecânicas, mas engravidar é algo audacioso até mesmo para a ficção.
Androides que podem ter sentimentos e engravidar, o que os separa dos seres humanos? Tirando essa especulação existencialista a motivação política apresentada é bastante relevante. Marte buscava uma maior autonomia em relação à Terra. Entretanto, os marcianos possuíam uma baixa taxa de natalidade, sendo que estas androides, inseridas na sociedade, providenciariam um maior número de descendentes, fortalecendo Marte. Notadamente a Terra, que busca uma maior união com Marte não gostou nada com a ideia.
Armitage III consegue lidar bem com uma intrincada trama com bastante ação e violência sem perder a possibilidade de abordar com relativa maestria estes aspectos existencialistas que parecem ser tão necessários em uma obra de ficção científica. A busca da dupla de protagonistas é a busca pelo conhecimento, seja do verdadeiro objetivo dos androides de terceira geração quanto do conhecimento sobre eles mesmos.
Quanto aos personagens, eles são bem trabalhados, Naomi Armitage, a malcriada e esquentadinha policial é bastante divertida, contrastando com o jeito de “durão” de Ross. Ambos se completam na trama. Naomi a defensora da causa dos robôs e Ross que odeia estas máquinas. O interessante é que Ross evolui ao longo dos OVAs, compreendendo que a situação não pode ser analisada simplesmente de seu ponto de vista pessoal, por um sofrimento do passado.
O vilão dos OVAs, René D’ancloude é o típico maníaco destrutivo, se não fosse o seu serviço como estopim dos eventos narrados, não seria um vilão muito memorável, suas motivações ficaram bastante obscuras. Sim, seu passado e objetivos chegam a ser abordados, entretanto, fica um pouco vago a necessidade dele ter passado de um cientista brilhante para um psicopata demente.
Como também ocorre com o protagonista do filme Eu, Robô, Ross possui partes robóticas, cada vez que ele se machucava, substituía parte do corpo por uma prótese, um verdadeiro ciborgue. Quanto mais ele entendia a situação dos androides, mais próximo deles ele se tornava. Apenas achei a transição dele de um ferrenho crítico das máquinas para um defensor acalorado um pouco abrupta, quando ele descobre a condição da Naomi Armitage.
Nos aspectos gráficos, Armitage III possui uma animação eficiente e fluida, dentro das capacidades da metade da década de 90. As cenas de ação são eletrizantes, de perseguições policiais até praticamente uma batalha campal com todo tipo de aparato bélico. Destruição para todo lado. Armitage III não perde seu ritmo frenético e nenhum momento, consegue manter quem estiver assistindo grudado na tela.
O character design é condizente com o tipo de obra, uma animação mais madura focada na ficção científica. Entretanto, está longe de possuir uma animação e um character design refinado como de Ghost in the Shell. A ambientação de Marte, principalmente das cidades é um deleite aos olhos, um típico cenário cyberpunk sem tirar nem por.
A abertura é bastante animada, apresentando o tema principal da trilha sonora, utilizado nos momentos de maior tensão, uma batida eletrônica típica dos anos 90, bastante mecânica e impessoal. É a trilha sonora perfeita para uma animação cyberpunk, nada que não fosse eletrônico casaria tão bem. A colocação da trilha sonora nos momentos certos também foi bastante acertada.
Para aqueles mais sensíveis, Armitage III não é muito recomendado, o grau de violência é bastante elevado e bastante explícito. O interessante é que a animação consegue criar uma violência gráfica efetiva até mesmo contra robôs, não deixa de ser pesado ver os robôs queimando ou empalados no meio da rua.
Em suma, chegando ao final desta análise, posso garantir que Armitage III não deixa a desejar a nenhum dos clássicos animes e mangás cyberpunks das décadas de 80 e 90, podendo figurar tranquilamente ao lado de Ghost in the Shell, Battle Angel Alita, Bubblegum Crisis, Cyber City Oedo 808, entre outros, como um dos ilustres membros deste subgênero. Vale a pena conferir todos aqueles que gostam de uma boa ficção científica, a qual consegue convergir uma boa dose de ação com um conteúdo psicológico e existencialista relevante.
Assim, o texto chega ao fim, espero que tenham gostado, até a próxima.