Imagine a situação, sua vida é totalmente modificada da noite para o dia em uma situação típica de um anime harém? Várias garotas entram de forma abrupta na sua vida, uma irmanzinha, uma tsundere, uma amiga de infância que prometeu casamento, etc. Mas nada é como parece no mangá de Shintaro Kago. O que é totalmente previsível, Kago é um dos maiores expoentes do Ero Guro, suas obras são totalmente insanas e bizarras, com bastante violência visual, mas muito psicodélicas e repletas de humor negro.
Harem End é um manga de um único volume lançado em 2012 e possuindo 12 capítulos, de autoria de Shintaro Kago. Kago é um autor muito curioso, embora possa se classificar suas obras como Ero-guro, ou erótico grotesco, elas não se enquadram nos estereótipos deste tipo de gênero. A título de exemplo, a imagem do blog lá em cima é um desenho de Kago, bem como há outras gravuras dele que eu uso no Facebook e no Twitter.
O ero-guro de seus trabalhos se dá, claro, pelo uso indiscriminado de violência, tripas e toda forma de parafilias, como necrofilia, modificação corporal e outras bizarrices mais. Mas, ao contrário do que ocorre com outros artistas do gênero, dificilmente seus trabalhos possuem como objetivo meramente a violência visual de cunho erótico. O que chama mais a atenção é o uso elementos bizarros e cheio de humor negro, como uma câmera caseira feita utilizando uma vagina, ou mulheres gigantes utilizadas como tanques na Segunda Guerra Mundial que expeliam os projéteis pelo ânus, e outras coisas do gênero.
Mas, nem só de Ero-guro vive Shintaro Kago, também já publicou obras Sci-Fi sem conteúdo erótico e extramente violento. Seu estilo único, sem paralelos, também é chamado de “Fashion Paranoia”. Particularmente, nunca encontrei nenhum outro mangaká que fosse semelhante, tirando aspectos gerais, ao Shintaro Kago. Ele também utiliza bastante a quebra da quarta parede, quando o próprio mangá se comunica com o leitor, além de às vezes utilizar maneiras totalmente inovadoras de desenhar os quadros do mangá, como em uma pequena história sua na qual ele passou para o papel quadros em três dimensões, ou seja, o leitor podia ler o quadro de frente e pelas laterais, como se fosse um prédio transparente.
Mas, voltando ao mangá em análise, Harem End, este leva a conotação de “desconstrução de gênero”, pois utiliza elementos de um determinado gênero pré-estabelecido e acrescenta elementos novos diverso do lugar comum de determinado estilo, embora eu não goste muito desta definição, eu não tomaria como uma desconstrução, mas sim como uma “inovação”, que foge do lugar comum com o acréscimo de elementos diversos.
Além da temática de “harém”, este mangá faz uma cínica e bem humorada paródia dos clichês da indústria dos animes, fazendo referência a muitas obras famosas da época em que foi escrito, como Puella Magi Madoka Magica, Steins Gate, entre muitas outras, além de obras um tanto mais antigas, como Sakura Card Captors, e clássicos como o Filme Laputa Castle in the Sky, um dos primeiros filmes do famoso e saudoso Estúdio Ghibli.
O mangá é dividido em duas subtramas que se iniciam aparentemente destituídas de conexão mas que se fundem ao longo da obra. A primeira parte se origina no aparente harém que é formado de forma súbita na vida Itou Seita, o qual em pouco tempo, menos um dia, se vê no seu apartamento com cinco garotas, uma tsundere, uma irmanzinha, uma alien, a noiva e a amiga de infância.
A segunda parte gira em torno de uma seyuu (dubladora) que foi muito popular no passado, mas que passa por uma maré de desgraça, não conseguindo bons papéis, nem apoio dos fãs. Ela recebe uma proposta de emprego de uma produtora de animes desconhecida, para fazer um anime mahou shoujo, Magical Girl Killemal, ela fico eufórica por ser um papel de protagonista e o salário ser muito bom. No entanto, como ocorre no aparente harém de Itou Seita, nada é o que parece. Novamente Shintaro Kago retrata de uma maneira nada ortodoxa vários clichês e problemas da indústria dos animes.
Estas duas partes, como dito acima são unidas por reviravoltas do enredo, e como deixa o autor claro em sua premissa, será que esse harém terá um “happy ending” ou um “bad ending”, que são denominações comuns nesse nicho, um final feliz seria idealizado com o protagonista se dando bem com a menina que gostasse, por exemplo, e o resto do elenco sendo feliz de sua maneira. Mas por se tratar de uma obra de Shintaro Kago sabemos que nada acabará como planeja, sendo apenas uma piada do autor.
O mangá também é composto, após a história final de algumas pequenas histórias do autor, uma mais bizarra que a outra, como característico de Shintaro Kago, os primeiros contos são detetivescos, com façanhas como criar uma câmera utilizando uma bateria improvisada, um olho e uma vagina. Mas, um dos que eu mais gostei foi o conto no qual o autor retrata a fixação que os japoneses têm pelas “idols”, onde dois restaurantes de lamen disputam a popularidade.
Um restaurante familiar havia perdido sua popularidade em virtude de um restaurante nas proximidades ter sido aberto pelas membras do grupo Akb48, só que o restaurante familiar tinha suas armas e começa uma progressiva e bizarra utilização de partes corporais das garotas para atrair clientes, primeiramente fios de cabelo, depois unhas, dedos e por aí vai… Pensem na euforia de comer um lamem com uma unha, cabelo ou até mesmo um dedo de uma das integrantes dessa famosa banda? Aposto que no Japão haja muito maluco pra isso.
Novamente retornando ao enredo principal, vejo o mangá como uma ácida e bem humorada crítica a muitos estereótipos da indústria de animes/mangás, seja da parte do fandom, dos produtores ou mesmo dos clichês dos gêneros, como no caso do harém, onde você subitamente passa a ser rodeado de garotas te disputando, ou garotos se for um harém reverso, o que só acontece em animes (admita, pode tirar seu cavalinho da chuva, isso nunca ocorrerá com você, nem com qualquer um de nós).
É possível que daqui pra frente haja pequenos spoilers, diante da necessidade de esclarecer alguns elementos que são apresentados logo no início da obra.
E como toda a história se conecta? Na verdade as garotas que formaram o harém são de um grupo de assassinas de aluguel que elimina apenas homens e que são contratadas pelo site “harem end”. O objetivo delas é punirem os homens que fazem mal às mulheres, por isso só atendem pedidos de garotas que sofreram algum tipo de violência, abandono ou humilhação. Então já dá pra perceber o que aconteceu com Itou Seita… O interessante que este problema também afetou as personagens, notadamente a que faz papel de tsundere, sendo a personagem melhor desenvolvida emocionalmente.
Só que as coisas não se dão como esperado, não é apenas um assassinato, mas uma cruel e longa execução precedida de tortura, elas fazem todo o processo de aproximamento com o intuito de deixar a vítima feliz como nunca e no ápice de sua felicidade por conseguir um harém, situação que só acontece nos animes, como apontado pelos personagens, elas revelam suas intenções e passam a torturar, matar, esquartejar e posteriormente se livrar do corpo, picando-o, cozinhando-o de mandando tudo pela descarga abaixo.
Nas segunda trama, da seyuu contratada pela empresa misteriosa de animes, acontece algo muito mais macabro, tal empresa composta por animadores frustrados com a indústria dos animes (percebe-se um cuidado do autor em demonstra os sofrimentos e stresses que os trabalhadores desta indústria sofrem no trabalho) fazem um tipo curioso de animação, utilizam pessoas mortas como atores! E fazem uma espécie de live action bizarro. Os corpos são sustentados e movimentados por uma estrutura de metal, interessante como o autor teve o cuidado de explicar cuidadosamente o funcionamento destes equipamentos, desde os mínimos detalhes, algo totalmente chocante. Então a nossa seyuu acaba se tornando apenas uma personagem em um destes filmes, uma garota mágica.
As histórias se fundem quando as garotas do Harem End são contratadas para torturar e executar um animador desta produtora macabra, elas fazem o serviço mas acabam sendo descobertas pela produtora, então a caçada se inverte e elas passam a ser perseguidas. Daí surge uma frenética disputa sangrenta e bizarro entre esse dois grupos, sendo tal processo marcado por um grande número de reviravoltas de enredo, sendo que na parte final a cada página praticamente muda o entendimento da obra.
Mais referências a animes famosos, como Steins Gate e Sazae-san |
Como dito no parágrafo inicial, Harem End seria um “harém” diferente, mas não se limita a isso e nem é o que esperamos, embora o título e a insinuação do tema, não pode ser considerado propriamente um representante do gênero, visto o uso da temática se dar em uma forma de espetáculo, ou armação, visto haver ao longo da trama uma mudança contínuo do foco da obra, podendo incluí-la em diversos sub-gêneros, como mahou-shoujo, horror, etc.
O final da trama se dá de forma interessante, um bom clímax e várias reviravoltas, com direito a traições e tudo mais, bem como, ao final você realmente muda o que havia imaginado ao longo da leitura e acaba rindo sozinho diante da situação. Por me fazer sentir desta forma, o desfecho da obra se mostrou bastante satisfatório, o que é complementado pelas one-shots como sobremesa no fim do mangá. Mesmo as cenas violentas devem ser enaltecidas por serem muito bem trabalhadas e desenhados, mérito de Shintaro Kago.
Divertida referência ao mangá Humunculus |
Um ponto que observo críticas ao mangá se dá pelo desenvolvimento dos personagens, que seria um pouco precário, no entanto, não creio que todo mangá tenha que ter um desenvolvimento dos personagens de forma muito detalhada e desenvolvida, o desenvolvimento deve se dar mediante a proposta da obra. Em Harem End, o desenvolvimento dos personagens se dá dentro do contexto em que eles estão inseridos, na medida suficiente para identificarmos quem seja quem na trama, com uma rápida pincela de sua personalidade, pensamentos e angústias, visto que o foco central seja o desenvolvimento do ambiente e da história ao redor deles, principalmente das mordazes críticas sociais elaboradas por Shintaro Kago, que é um tema frequente em suas obras, claro, tudo repleto de “gore” pra dar e vender.
A arte do mangá eu gosto bastante, seus traços são leves mas concisos e o destaque fica mesmo pela forma na qual ele representa a violência visual nos seus desenhos. Já alerto a violência visual na qual sua arte é composta, como os exemplos dados nesta postagem. Contudo, tal violência é um pouco suavizada pelo humor negro no qual Shintaro Kago utiliza na sua arte, o que torna um tanto mais “digerível”. Entretanto, para as pessoas sensíveis creio que mesmo assim seja uma obra muito forte visualmente.
O mangá não possui muita aceitação, o que é uma pena, mas perfeitamente explicável. É destinado para um público específico que não sente repulsa por esse tipo de obra, diante do conteúdo extremamente violento. Contudo, creio que seja uma forma válida e interessante de expressão de opiniões, sendo que o que é mais chocante que é o que fica mais gravado na memória. Harem End é uma daquelas obras que com certeza você irá sempre lembrar quando pensar em algum exemplo de algo bizarro, sendo que cumpre a sua missão de ser lembrado por aqueles que o leram.
Penso igualmente que este seja o objetivo de Kago, chocar com sua obra e fomentar discussões e reflexões, sendo que neste aspecto ele é bem sucedido, inclusive suas obras já foram expostas em galerias de diversos países. Então, recomendo a obra para aqueles que possuírem coragem suficiente para embarcarem no mundo bizarro e violento de Shintaro Kago. Até uma próxima pessoal.