Tokage. A imortalidade como maldição.

Tokage é um mangá compilado em três volumes que totalizam 21 capítulos originalmente publicados na revista Comic ZERO-SUM de janeiro de 2006 à agosto de 2007, quanto a revista em questão, não vi nenhuma obra de grande importância, somente 07-Ghost que eu sei que é publicado no Brasil, contudo nunca o li para averiguar sua qualidade.

Tokage é obra de Yaku Haibara, um autor aparentemente sem muita expressão, suas outras obras pelo o que pesquisei se resumem a algumas one-shots publicadas em antologias e outras obras desconhecidas para mim, mas vamos ao que interessa.

Resumidamente, Tokage, ou Lagarto nos conta a história de uma pessoa imortal, a qual sua alma assumiu a forma de um lagarto, e que para manter um “status” de humano precisa habitar em um corpo morto, e quando esse corpo fica impróprio para uso, por exemplo, quando é destruído ou muito ferido precisa fugir e entrar em outro corpo e esse ciclo já dura 800 anos. No entanto isto não é algo natural, é uma aberração da natureza e da correta ordem das coisas, um distúrbio, um paradoxo espiritual, o qual causa problemas no mundo real. Onde Tokage se encontra uma série de distúrbios ocorrem, como o aparecimento de espíritos e desastres, entre outras coisas. Nesse contexto, Tokage é caçado continuamente por uma organização governamental que cuida de assuntos sobrenaturais e busca por um fim em Tokage e consequentemente na sua maldição. Sim Tokage foi amaldiçoado com a imortalidade, embora em um primeiro momento possa se pensar nisso como uma dádiva, mas tratarei sobre isto mais a frente.

Desta forma, temos o pano de fundo do mangá. Visando buscar um novo corpo, Tokage encontra uma jovem colegial chamada Yuuka, recém morta em um acidente automobilístico, antes de Tokage assumir o seu corpo ela foi ser velada. Ocorre que ela era uma sacerdotisa de um templo zen-budista na horas vagas, onde morava com um garoto chamado Shinobu e seu avô, o sacerdote chefe do templo. Shinobu morava com ele devido ao divórcio de seus pai, e mantinha uma relação muito próxima com Yuuko, considerando ela uma verdadeira irmã para ele além de ser seu primeiro amor, e com a morte de Yuuko, ele ficou terrivelmente abalado. Quando Yuuko estava coberta de flores, o lagarto entrou nela e assumiu a forma de uma tatuagem, e ai a mágica se fez, Yuuko, ou melhor, Tokage levantou e acabou por assustar Shinobu, que demorou para compreender a situação. 


 

Shinobu ficou furioso e obviamente exigiu que o corpo de Yuuko de volta, mas nada era tão simples assim, Tokage não iria simplesmente devolver o corpo no qual estava, além do mais, por alguma razão misteriosa, mas que futuramente é desvendada, o avô de Shinobu dá abrigo à Tokage. Um detalhe fundamental é que o corpo no qual Tokage habita necessita de constante recarga, recarga esta obtida através de alguma pessoa próxima do dono original do corpo, de preferência que tenha uma ligação espiritual forte entre ambos, e no caso em tela, essa pessoa é Shinobu. O curioso é que Shinobu recarrega Tokage muito eficientemente, uma vez que ele possui certos poderes espirituais, sendo capaz de ver e sentir a presença de espíritos.

Ocorre que Shinobu trata Tokage como sendo Yuuka, mesmo este dizendo que ela já morreu e não há como reverter a morte. No entanto, com o decorrer do mangá Shinobu passa a aceitar a presença de Tokage, além de ver o corpo de Yuuka em movimento, como se estivesse viva, sendo um deleite para si. Mas nem tudo é calmaria, Tokage é uma figura muito visada, sendo facilmente encontrada devido as distorções espirituais que causa onde ele se estacione. Então é constantemente assediado pela organização já mencionada acima, o qual possui como líder das operações uma personagem interessante, uma mulher realmente obcecada pelo seu trabalho, a qual não mede consequências de seus atos a fim de cumprir sua missão, contudo ela possui uma característica intrigante, uma cômica aversão por homens. Além de Tokage ser visitado no templo por pessoas sensitivas em busca de sua imortalidade, como no arco do médico em busca da imortalidade para salvar sua filha sensitiva que possui uma doença terminal, sendo que ela descobriu sobre a existência de Tokage.

No entanto, Tokage possui um objetivo, livrar-se de sua imortalidade, ele deseja descansar, finalmente poder morrer e por fim a sua existência terrena, livrando-se do interminável ciclo de reencarnações fruto de uma maldição, não vou entrar em detalhes, mas ele busca a pessoa que causou essa maldição, sendo que ela seria capaz de matá-lo e por fim a esse ciclo vicioso, uma vez que ele mesmo disse que “comeu um deus”, sendo este o grande pecado de sua existência. No decorrer do mangá é exposto os motivos que o fizeram ter que agir desta forma.


Neste contexto se desenvolve a curiosa relação entre Tokage e Shinobu, uma vez que Tokage no corpo de Yuuko se insinua sexualmente para Shinobu, o que o deixa em situações embaraçosas, não que seja de forma séria, chegam até a serem cômicas tais cenas, e o fato de Tokage ser um homem de certa forma torna a situação ainda mais bizarra. No decurso da obra, Shinobu começa a entender o lado de Tokage e o seu desejo de buscar seu objetivo de deixar de ser imortal, mesmo que para isso, ocasionalmente o corpo de Yuuko seja ferido no processo, o que, para Shinobu, é difícil de suportar, mesmo sabendo que Tokage juntamente com o poder de recarga de Shinobu providenciem uma recuperação acelerada no corpo de Yuuko.



Um ponto relevante que acho que seja interessante tecer alguns comentários é a questão de como se é tida a imortalidade. Não raras vezes somos deparados com histórias e contos sobre a busca da vida eterna, por meio de magia, ou a busca por um elixir que confira a vida eterna, que foi um dos objetivos dos alquimistas na Idade-Média. Até mesmo o homem moderno busca incessantemente meios de prolongar sua vida até chegar em um patamar de praticamente imortalidade. Afinal a imortalidade é algo bom ou ruim? Ou depende do ponto de vista analisado? Vejamos, para Tokage fica claro desde o início do mangá que é algo sofrível fruto de uma maldição lançada sobre ele. Na questão material a imortalidade pode ser tida como ruim pelo fato de que as pessoas próximas eventualmente irão morrer querendo ou não, ou ainda como Tokage, que deve estar sempre em fuga, imagine 800 anos sem sossego! Deve ser muito fatigante mentalmente.



Mas creio que o ápice da questão reside no aspecto religioso, não tratando de uma religião específica, mas generalizando, o que nos espera no pós-morte? Por exemplo, no Cristianismo e Islamismo as almas boas serão recepcionadas com dádivas imensuráveis aos homens ainda vivos, ou ainda no Hinduísmo ou Budismo, além de outras religiões ou filosofias que defendem a existência da reencarnação, se faz necessário morrer para evoluir. Neste contexto fica claro que caso você seja imortal, não digo a imortalidade da alma, mas do corpo. Ficar preso eternamente em um mundo decadente, limitado pelas fronteiras materiais é algo sofrível e pavoroso, uma vez que você fica impossibilitado de evoluir ou ganhar uma recompensa ou repouso após a morte. Bem, para quem for ateu, a imortalidade deve ser bastante tentadora se o indivíduo não for desapegado com a vida, uma vez que a existência seria limitada enquanto as propriedade físicas do corpo funcionassem, sendo que após a morte nada restaria. 




No caso do mangá, Tokage em sua infância, nos eventos que originaram sua imortalidade, não entrarei em detalhes, foram derivados de interferências divinas xintoístas, que é a religião tradicional do Japão, de culto a deuses que representam forças da natureza e aos ancestrais. Mas entrando no foco da questão, segundo o Xintoísmo o que ocorre a alma após a morte? É um conceito bem fácil para o homem mediano ocidental entender, pois há a presença do inferno e um julgamento individual, a alma poderá ter vários destinos, sofrer punições no inferno até poder reencarnar, ou se for uma boa alma poderá tornar-se um espírito protetor de seus parentes, ou de um templo, ou cidade etc, ou ainda servir aos deuses em suas moradas. Enfim, fica claro que Tokage quer o seu destino como qualquer pessoa, ele quer viver e morrer e ter sua recompensa no pós morte, não ficar perpetuamente atrelado neste mundo limitado. 




Salienta-se que esta temática não é inédita nos mangás, temos o exemplo de Blade – A Lâmina do Imortal, onde o protagonista busca livrar-se de sua imortalidade matando mil criminosos depois de um acordo feito por uma monja que lhe deu um chá que conferiu essa propriedade da imortalidade. O próprio autor cita alguns exemplos de indivíduos amaldiçoados com a imortalidade, e há ainda outras lendas. Por exemplo, no folclore japonês há uma espécie de sereia, chamada Ningyo, que traz má sorte ou tempestade se for pega, e há uma lenda em que uma garota conhecida como a “freira de 800 anos” comeu a Ningyo pescada por seu pai que disse que não a deveria comer, tendo sido amaldiçoada, então,  com a imortalidade. Depois de anos de tristeza devido a seus muitos maridos e filhos que morreram, ela decidiu dedicar sua vida a Buda e se tornou freira e foi autorizada a morrer quando atingiu a idade de 800 anos.



Bem, esse parágrafo específico terá spoilers, só esse, se quiser pular para o próximo sinta-se a vontade, é que eu preciso fazer um desabafo em relação ao deus da montanha japonês! Não sou um conhecedor de xintoísmo nem nada, mas uma coisa que já vi em alguns mangás é que este deus específico, nem sei se é da mesma montanha nem nada, exige sacrifícios de jovens garotas para saciar sua lascívia e não castigar o vilarejo no pé da montanha. Gostaria até de mais informações concretas quanto a isso já que não consegui achar nada pesquisando pela internet, se alguém conseguir me ajudar eu agradeço. Bem, é que eu realmente achei curioso esse mito recorrente em alguns mangás, em Tokage este é o estopim da imortalidade de Tokage, ele comeu a oferenda deificada, no caso sua irmã, já que Tokage vivia sozinho em uma gruta pois sofria de uma doença de pele que lhe conferia escamas e portanto não era aceito na aldeia e acabou se envenenando, somente sua irmã se preocupava com ele e o vendo morrer o obrigou a comê-la sabendo que lhe conferiria a imortalidade e ele fez isso, comeu a irmã e se tornou imortal. O deus da montanha ficou bem descontente com isso e destruiu a vila e nestes 800 anos trabalhou arduamente para evitar que Tokage encontrasse a reencarnação de sua irmã e providenciasse a escapatória de sua maldição. Divindade vingativa não? E em outro mangá de autoria de Daisuke Igarashi, que trata sobre one-shots variadas que ainda pretendo escrever sobre em breve, há um conto de um menino super forte, chamado de matador de ursos,  que vagava pela floresta e encontra uma garota que seria o sacrifício para o deus da montanha e tenta ajudá-la a escapar do destino, novamente causando a ira do deus, só que esta one-shot é muito mais bizarra que Tokage, há até uma espécie de mumificação da oferenda para durar bastante tempo, mas não quero me alongar nisto antes do post específico. Enfim, outro aspecto deste ritual é que a garota sacrificada se torna uma deusa. Penso que por repetir em obras distintas este mito tenha algum respaldo no folclore japonês, mas não encontrei nada sobre.


Quanto aos aspectos técnicos, a estória é narrada linearmente sem nenhum contratempo, somente alguns flashbacks, os quais são importantes para o entendimento de determinados pontos da obra. Por ser um mangá relativamente curto, apenas três volumes, é de se pensar que o desenvolvimento dos personagens fica a desejar, no entanto, pelo menos no núcleo central eles foram bem trabalhados. Destaque claro para a dupla Tokage e Shinobu, o avô também mostrou-se um personagem atraente, apresentando aquele tipo de sabedoria despretensiosa, a qual mostra um certo tom de cinismo, o que garante certo humor e causa a impressão, correta, de que sabe muito mais do que suas palavras dizem.  Shinobu como protagonista foi facilmente tolerável, mesmo com alguns maneirismos de certa forma irritantes, como a constante preocupação com o corpo de Yuuko, embora essa preocupação fosse normal e aceitável para o caso em tela, o que torna tudo mais tolerável. Também de se destacar a progressão do personagem, que de um garoto tímido e reservado, no decorrer da trama torna-se ativo e perspicaz. Tokage é interessantíssimo, ousado e até de certa forma sedutor, afinal quem viveu 800 anos possui muita experiência de vida não é? No entanto essa personalidade ousada contrasta com um interior abalado profundamente pelo desprazer de uma vida de eterno sofrimento, sendo constante demonstrações de extrema emotividade e impulsão, sem ao menos pensar no que estar a fazer, sendo um dicotomia com sua personalidade calculista na qual aparentemente mantém.



A ação é bem ponderada, resumida a alguns momentos, a maior parte do mangá trata-se mesmo da interação entre os personagens, no entanto tais momentos não deixam a desejar, embora ache que seria um tanto melhor maiores e mais numerosas cenas de ação, a fim de explorar todas as habilidades de combate de Tokage, saliento que não é nada que atrapalhe a experiência de leitura do mangá.

A arte é um caso a parte, os traços do autor são bem eficientes para dar uma noção de dinamismo na obra, mas nada além do normal, o destaque fica mesmo para Tokage no corpo de Yuuka, a qual é uma moça incrivelmente voluptuosa. Em poucos mangás consegui ver uma personagem feminina transmitir tanta sensualidade de forma tão convincente! Não se trata da corriqueira fórmula de enfiar peitos gigantes numa personagem com um rosto genérico, é algo mais elaborado, percebe-se um cuidado extra com essa personagem, que as vezes fica até mesmo deslocada com o design dos demais personagens. Tal sensualidade é obtida com uma combinação de trejeitos femininos como olhares insinuantes, expressões corporais, etc, bem, neste quesito o mangaka foi muito feliz em sua obra. O fan-service é bem ponderado, se resume a sensualidade inata de Tokage/Yuuko e alguns momentos cômicos referentes às insinuações de Tokage para Shinobu.


O final da obra foi bastante justo, não foram respondidas todas as respostas nem dadas todas as explicações, mas os principais pontos do mangá foram esclarecidos, o que está de bom tamanho, ainda mais por ser um mangá curto. Outro ponto que se faz necessário mencionar é que perto do final ainda ocorre alguns plot-twists, embora eu já suspeitasse que algo assim ocorreria, contudo não tira o mérito da tentativa do autor em causar surpresa no leitor. Finalmente, Tokage fica recomendado por minha pessoa, foi uma leitura bastante agradável, ainda mais por ter sido uma escolha aleatória de leitura, depois da última experiência não tão feliz com essa técnica.

Link permanente para este artigo: https://dissidenciapop.com/2013/12/30/tokage-imortalidade-como-maldicao/