Pouco mais de um mês atrás eu escrevi um texto para o Dissidência Pop sobre o manga Omoide Emanon “Memórias de Emanon”, obra-prima de Kenji tsuruta baseada no conto do autor de ficção científica japonês Shinji Kajio. Muito bem, Omoide Emanon recebeu uma continuação, Sasurai Emanon, a qual oferece um novo prisma para essa tocante história sobre a garota com a memória desde o início da vida no planeta Terra. E é sobre essa continuação que escrevi aqui.
Antes de mais nada, gostaria de recomendar a leitura do meu texto sobre Omoide Emanon, uma vez que neste texto eu abordei mais a fundo os pormenores da adaptação do conto em mangá e outros detalhes bacanas sobre os autores, além de ser interessante para contextualização deste novo texto sobre Sasurai Emanon.
Sasurai Emanon foi um caso muito estranho, pois me gerou certa confusão ao ler, não quanto ao conteúdo, mas quanto ao modelo de publicação. Confesso que quando comecei a lê-lo, pensei se tratar de um mangá já completo. Grande engano! Sasurai Emanon ainda está sendo publicado na revista Comic Ryu desde 2008. Ocorre que Kenji Tsuruta é um autor que aparentemente não liga muito para a periodicidade, neste aspecto ele é muito semelhante à sua obra, que na maioria das vezes são belas histórias descompromissadas.
Sasurai Emanon segue um estilo de publicação em grandes arcos, por isso pode ser lido sem problemas até o ponto que se encontra traduzido, e mesmo assim será uma experiência incrível. Ainda tenho algumas ressalvas a fazer. Os bancos de dados sobre mangás na internet não ajudam a entender melhor a maneira caótica que se dá a publicação de Sasurai Emanon. Por exemplo, no caso do My Anime List, há uma obra individual chamada Sasurai Emanon Episode: 1, um volume curto, de pouco mais de sessenta páginas e totalmente colorido, publicado de 18 de outubro de 2008 até 19 de novembro de 2019, e há também outro mangá catalogado chamado apenas de Sasurai Emanon, que começou a ser publicado em 17 de julho de 2010 até os dias atuais.
Contudo, em outras fontes, esse “primeiro” Sasurai Emanon todo colorido seria apenas o primeiro volume do mangá que está sendo publicado até os dias atuais. Facilitaria que tudo fosse unido em uma obra só nos bancos de dados ou que todos os arcos fossem divididos em obras únicas individualizadas, já que vários dos arcos de Sasurai Emanon possuem nomes específicos, tais como: Sasurai Emanon (2012), Zoku Sasurai Emanon (2013), Zokuzoku Sasurai Emanon (2018). E antes destes, houve ainda o volume todo colorido de 2008 e o Sasurai Emanon 67, de 2010.
Dentro da leitura do mangá, o enredo é dividido em épocas, assim como em Omoide Emanon era dividido em horas de um mesmo dia. Temos os períodos de 67, 73 e dos anos 80. Cada um destes períodos é um arco fechado. Só para contextualizar um pouco. Quem já leu Omoide Emanon sabe que neste mangá havia um protagonista que também era o narrador, contando o seu encontro marcante com Emanon durante um dia e depois a reencontrando muitos anos depois, sem saber o seu paradeiro neste meio termo. Em suma, Sasurai Emanon conta o que Emanon andou fazendo durante estes anos todos, permitindo que tivéssemos uma visão do outro lado da história. Eventualmente Sasurai Emanon passa esse momento depois do reencontro e continua com outras histórias.
Acho que deu para perceber o motivo pelo qual achei a leitura de Sasurai Emanon confusa, justamente por causa destas informações desencontradas e inconsistências dos bancos de dados. Nada que desabone a leitura no material em si, claro, mas acho importante preveni-los da questão e jogar uma luz ao assunto.
Então vamos ao que interessa? Desde já aviso que terão bastante spoilers neste texto. Vou começar por partes, primeiramente temos Sasurai Emanon Episode: 1, de 2008. Antes de mais nada, Sasurai significa Errante, ou vagante, ou seja, representa o aspecto sem rumo de Emanon. E como já foi dito acima, trata-se de um único volume com pouco mais de sessenta páginas totalmente coloridas. Pois bem, por si só é um espetáculo à parte, um deleite aos olhos e propicia ver a arte de Kenji Tsuruta no seu máximo. E é interessante mencionar que prefiro os mangás em preto e branco, mas o colorido do Kenji Tsuruta é muito bem feito. Até começar a “história” propriamente dita, temos uma sequência de belíssimas imagens da Emanon, uma mais legal que a outra.
Em termos de história, temos um caso fechado, que nos informa muitas coisas legais sobre o universo do mangá, especialmente sobre a estranha condição genética da Emanon. Contudo, também apresenta algumas dúvidas bastante pertinentes que acabaram por ficar sem respostas. O enredo desse volume começa bem humorado, enquanto a Emanon toma um banho relaxante em um lago no meio de uma floresta, um menino se aproxima sorrateiramente para tirar umas fotos, detalhe que ele carrega um pepino japonês junto dele. Mas podemos ficar tranquilo, o menino não era nenhum tarado, apenas queria fotografar um kappa, figura mitológica do folclore japonês que vive em lagos e parece uma mistura esquisita de um humanoide anfíbio com uma tartaruga. O pepino serve para aplacar a ira de um Kappa, pois é sua comida favorita.
O menino foi vítima de uma peça, uma amiga da Emanon afirmou que viu um kappa no lago e devido à grande curiosidade infantil, o garoto foi conferir. Diante deste mal-entendido, surgiu uma relação interessante de amizade entre os dois. O curioso é pela primeira vez vemos Emanon com um propósito. Ela havia escondido naquele local uma caixa. Não exatamente “esta” Emanon, mas um outra ancestral sua. Na caixa havia uma semente que seria muito importante para prevenir uma catástrofe ambiental no futuro. Ou seja, um procedimento onde a Emanon esconde coisas importantes, sendo que, naturalmente, nunca vai esquecer delas, o que é bem útil.
Essa história curta levanta um mistério interessante, a sua amiga chamada Hikari menciona que elas se encontrariam no futuro, até afirma uma data em específico nos anos 90. Isso foi realmente estranho, essa Hikari poderia ser uma viajante temporal? Há outras pessoas com poderes estranhos na humanidade? Como o mangá ainda está em publicação e avançando os anos da história, pode ser que eventualmente esse encontro marcado seja concretizado, só resta esperar para ver.
Ao longo da leitura de Sasurai Emanon percebe-se diversos mistérios que até o momento estão em aberto. Voltando à este volume, temos ainda um evento bastante tocante, mostrando que as amizades que Emanon faz nas suas andanças são realmente verdadeiras e temos ainda um detalhe de um futuro incerto. Bem, quem leu sabe do que estou falando. Outro ponto curioso deste “episódio 1” é a grande quantidade de nudez apresentada. Mas por incrível que possa parecer para alguns, não vemos nada “ecchi” nem sexualmente apelativo. Kenji Tsuruta conseguiu com a sua arte apresentar uma nudez livre de malícia, o que não é pouca coisa. Esse primeiro volume inicia com chave de ouro Sasurai Emanon.
A partir deste ponto, temos Sasurai Emanon nos anos 60. Esse arco é bem interessante e revela várias coisas importantes. Por cima, vemos como Emanon se relaciona com as pessoas que conhece pelo caminho, encontros passageiros mas cheios de significado, como arranjar um emprego numa livraria e noutro dia simplesmente sumir do mundo. Essa transitoriedade de Emanon já havia sido explorada em Omoide Emanon, só que do ponto de vista do narrador, que na época não conseguiu entender nem superar a partida da moça. Mas neste caso, vemos tudo de uma perspectiva dela, o que torna essa experiência complementar ao primeiro mangá.
Depois temos um “mini” arco onde ela vai ao encontro do seu irmão. O fato dela possui um irmão é bastante singular, pois nenhuma das “Emanons” anteriores teve mais de uma filha para seguir a linhagem. O mangá deixa em aberto se há realmente alguma razão por trás disso, como algo do destino, ou é mera coincidência. Vemos também como se dá quando uma mãe Emanon engravida e dá a luz, sendo que a próxima menina da geração simplesmente suga todas as memórias e essência, o que sobra é uma casca vazia. Lembro de ter questionado sobre isso na minha análise sobre Omoide Emanon. Felizmente esta questão foi prontamente solucionada aqui, mas acabou levantando vários outros questionamentos.
Avançando, Emanon vai atrás do irmão que ela havia deixado em um orfanato. Foi um encontro interessante, vemos que o menino realmente não herdou a habilidade da mãe, mas possui outros poderes misteriosos. Vemos toda a dor de alguém que foi abandonado por motivos que ultrapassam a mera compreensão humana. É difícil de imaginar você descobrir que foi abandonado em um orfanato pela irmã e que sua mãe se tornou uma casca vazia só para dar prosseguimento à uma linhagem com poderes especiais. Enquanto isso, Emanon lidando com tudo isso de forma blasé, expressando uma total indiferença. Mas convenhamos, o que pode impressionar alguém com memórias de vivências de bilhões de anos, a vida deve realmente se tornar muito enfadonha.
No final deste arco são incluídos outros mistérios em poucos quadros. tais mistérios não foram ainda solucionados pelo autor, quem sabe um dia. Vemos uma perseguição na floresta, um homem mais velho e misterioso, e depois vemos a Hikari com uma menina, que aparecem no episódio 1. Sobre estes assuntos, por enquanto só resta especular. Contudo, eu não duvidaria que Emanon realmente pudesse ser perseguida por pessoas de más intenções, pode ser que a informação sobre o seu poder tenha vazado e despertado o interesse de pessoas maliciosas, quem sabe?
Temos um time skip e o tempo acaba voando para alguns anos mais tarde, sendo esta uma característica de Sasurai Emanon. Estamos em 73, uma década onde muita coisa aconteceu no mundo e para Emanon não foi diferente. Esse arco apresentou uma situação aparentemente absurda ao tratar dos poderes da moça. A narrativa começa com ela passando mal numa floresta em Kyushu, a terceira maior ilha do arquipélago japonês, e sendo encontrada por um rapaz, Ryouzan, que trabalha escrevendo documentários para televisão, estudando o folclore local. O surpreendente é que Emanon perdeu completamente a memória, e isso inclui suas vivências de bilhões de anos.
Se inicia uma relação bastante singular, Emanon passa a morar com Ryouzan, pelo menos até que recupere as memórias. O rapaz até tenta pesquisar de todos os jeitos sobre o passado de Emanon, mas suas pesquisas são infrutíferas, não consegue descobrir nada, o que não é surpreendente, diante do caráter gregário de Emanon, sempre indo de um lugar para outro e não possuindo família. Esse arco fascina por ser um slice-of-life completo. Temos um vislumbre de como seria Emanon caso levasse uma vida normal como dona de casa. E mais cedo do que parece, um romance surge no ar.
Esse arco de 73 é muito bonito na minha opinião, embora tenha um tom de tragédia bastante forte. Já estou presumindo que se você está lendo até aqui, é por que já leu Omoide Emanon e Sasurai Emanon, pois temos bastante spoilers pela frente. Então vamos lá. Emanon não recupera suas memórias, e isso não parece ser um problema, a garota é visivelmente feliz com Ryouzan, embora tenha sonhos estranhos, reminiscências de suas memórias ancestrais. Eles acabam casando e Emanon engravida, tinha tudo para dar certo. Infelizmente o destino da linhagem de Emanon é cruel. Ela perde as memórias ao dar à luz.
Depois de evento catastrófico na vida de Ryouzan, vemos mais alguns aspectos sublimes. Até mesmo como bebê o ser conhecido como Emanon, já possui as memórias e consciência de um adulto. Deve ser incrível desde ao nascer ter todo esse arcabouço de lembranças de eras passadas, isso tudo num corpo frágil de um recém nascido. Por isso que eu disse que esse arco era bonito e trágico. O aspecto trágico já ficou evidente, mas o bonito de desdobra com o fato da Emanon “casca vazia” não ser abandonada.
Ryouzan efetivamente amava Emanon e não a abandonou. Passou a cuidar dela até ser capaz de ensiná-la a falar e se movimentar, bem como conseguir que ela passasse a ter um traquejo social mínimo e até demonstrar emoções. Evidentemente ela não lembrou de mais nada, mas isso não foi empecilho, ela entendeu perfeitamente que era esposa dele e mãe da nova menina. Por isso, ao final de Omoide Emanon, vemos mãe e filha na estação interagindo aparentemente de forma normal.
Seriamente, em toda a minha carreira de leitor de mangás e assistidor de animes, poucas vezes vi uma prova de amor tão bela e abnegada. Kenji Tsuruta sabe acerta o pico da emoção de uma forma sublime. O próximo arco e o último até o momento, é um desdobramento desta situação, a protagonista muda e temos Eiko, a filha da Emanon que conhecíamos.
Nesse ponto não há um enredo completamente definido, pois esbarra no limite do que se encontra passível de leitura, mas temos coisas bastante interessantes e uns conflitos novos trazendo uma boa dinâmica à Sasurai Emanon. Eiko em questão de personalidade é a Emanon, isso nunca muda, mas diferentemente de todas as “Emanons” até o momento, ela tem uma família, amor paterno e numa certa forma até amor materno, o que é incrível e coloca em cheque a natureza solitária de Emanon.
É uma regra pré-estabelecida que todas as Emanons devem abandonar sua família e vagar pelo mundo. Não sei quem impôs isso, muito provavelmente é um “costume” ou “hábito” delas, o que acabou virando uma espécie de lei. Muito embora seja mencionado que uma Emanon ao crescer um pouco sente um forte desejo de viajar, uma coisa até mesmo instintiva. Ocorre que essa Emanon chamada até então de Eiko começou a postergar essa viagem por estar gostando da vida em família.
Esse é um conflito interessantíssimo, mesmo que ainda o autor não tenha dado uma conclusão. Será que se Eiko resolver ficar com a família atrapalharia suas funções como herdeira das memórias? Se bem que até então é incerto qual são essas funções, nem ela ao menos sabe, mesmo que o mangá tenha dados algumas pistas e exemplos, ainda é tudo muito difuso e não tem nada definido sobre o assunto. Penso como ela lidaria com as questão de namorados e carreira profissional, e o pior, quando surgisse a necessidade de engravidar. Será que seu pai, mesmo que de forma leiga, diagnosticaria uma forma de doença genética? Eiko poderia até mesmo ser submetida a exames e investigações médicas. Isso abriria muitas possibilidades interessantes ao enredo.
Outro elemento interessante nestes anos 80 é a aproximação com os nossos dias atuais. Está bem que dos anos 80 já passaram 40 anos, mas ver Eiko com um uniforme escolar, desfrutando de uma até então crescente tecnologia e de uma vida familiar aparentemente normal, é muito mais próximo da gente do que as peregrinações de Emanon nos anos 60 e 70. Outra questão é ver um pouco do cotidiano escolar. É surpreendente por si só imaginar alguém com esses poderes numa escola, e temos um vislumbre de que isso não seria nada fácil, diante do arcabouço de informações que ela tem para usufruir. Problemas como tirar notas baixas propositalmente é algo que Eiko terá que lidar.
A jornada de Emanon é algo único, sem precedentes. No fim das contas é uma jornada da vida dela, e das mulheres que continuam nas gerações futuras carregando o legado desse misterioso poder. A medida que se avança nessa leitura, podemos ter um belo vislumbre das muitas experiências marcantes de sua vida. Bem como, o mais interessante é que mesmo com o destino selado, previamente definido, sempre haverão surpresas na jornada, nada nunca é como antes, pois quando tiver idade suficiente para sobreviver sozinha, ela deixará sua família e viajará pelo mundo, e, eventualmente, quando tiver sua própria filha, o ciclo recomeçará, sem fim, até pelo menos que algo quebre essa cadeia de eventos.
Como a obra ainda está em publicação, não sabemos o que se passa na mente de Kenji Tsuruta. Além disso, como Emanon é um adaptação de contos de Shinji Kajio, publicados de 1984 até 2017, realmente desconheço até que ponto foi adaptado e se Kenji Tsuruta resolveu incluir algo inédito retirado diretamente de sua cabeça. Pelo sim ou pelo não, mesmo estando incompleto, Sasurai Emanon é uma experiência literária sublime, capaz de agradar os mais exigentes fãs de mangá.