Getenrou. Uma viagem completamente insana.

Vocês provavelmente conhecem aquele tipo de obra que no início parece algo descontraído e sem grandes pretensões, até mesmo episódico, mas que ao longo do percurso se revela algo mais substancial enquanto as tramas dos enredo se cruzam? Pois bem, Getenrou, do mesmo autor de Soredemo Machi wa Mawatteiru, é um pouco disso e ainda mais. O que será que garotos procurando por revistas pornô, justiceiros espaciais, inteligência artificial e uma série de assassinatos tem em comum?

Getenrou é um mangá one-shot, composto de nove capítulos, publicados de 7 de agosto de 2008 até 3 de agosto de 2011, de autoria de Masakazu Ishiguro, mais conhecido pelo seu mangá Soredemo Machi wa Mawatteiru, que ganhou uma adaptação em anime pelo estúdio Shaft em 2010. Getenrou foi publicado na revista Mephisto, uma publicação bem obscura, onde também foi publicado o mangá de Monogatari Series. Getenrou chegou a concorrer em um dos mais importante prêmios conferidos a mangás no Japão, o Manga Taisho Award, em sua quinta edição, isto em 2012.

Este é um mangá curioso, pois ele possui uma estrutura bastante interessante. Como eu havia dito na introdução, ele se revela muito mais do que parece ser logo no início. Até o quarto capítulo parece que se trata de uma antologia de contos, onde cada capítulo se trata de uma história única que não está interligada com as demais. Entretanto, a partir do quinto capítulo as coisas começam a mudar, o que aparentava ser algo descontraído e livre de grandes pretensões, se torna um thriller de ficção científica, envolvendo inteligências artificiais e crimes a serem resolvidos, no melhor estilo Isaac Asimov nos seus clássicos de investigação policial envolvendo robôs, como em As Cavernas de Aço.

É difícil dar uma sinopse para esse mangá, até mesmo as sinopses oficiais não são muito eficientes para dar uma noção do que a obra verdadeiramente é. Na sua maioria, as sinopses se limitam e descrever Getenrou como: estranhas pessoas que vivem num condomínio chamado Getenrou, como meninos buscando por pornô, um oficial espacial, robôs, e uma série de assassinatos. A curiosidade da jovem oficial Saeko é atraída por dois irmãos que aparentam possuir a chave para resolver o mistério. Será que sua lógica maluca vai ser capaz de revelar a verdade surpreendente escondida em Getenrou?

Getenrou é marcado por uma narrativa não-linear, então o leitor deve se atentar a todos os detalhes, caso contrário, não vai encontrar o fio da meada para decifrar os mistérios desta obra singular. Além da narrativa não-linear, o mangá conta com um elenco variado de personagens, cada qual com sua trama própria que acaba convergindo com as demais tramas, formando um todo no final do mangá. Nesse tipo de obra é essencial prestar atenção nos detalhes. Por exemplo, alguns personagens que parecerem irrelevantes e só apareceram esporadicamente podem se tornar muito importantes.

Esse tipo de narrativa não-linear com vários personagens e tramas contíguas, não é algo recente no mundo da arte, pelo contrário, é até bastante usado, embora os resultados costumem serem polêmicos, uma vez que dificulta a apreciação para aqueles que prefiram apreciar uma obra “redonda”, com começo, meio e fim habituais. Chamam este tipo de narração de Narrativas de Rede, ou Ensemble Cast. Um bom exemplo desse tipo de obra é o mangá Nijigahara Holograph, de Inio Asano.

Ocorre que Getenrou apresenta um tom de humor que vai se esvaindo ao longo do volume, até mudar totalmente de tom nos capítulos finais. Outra característica importantíssima de Getenrou é o absurdo. Sim, é uma obra absurda! Pelo menos na aparência. Situações totalmente inusitadas e completamente insanas são presença garantida no mangá, como explicar um assassinato em um quarto fechado levantando a teoria que o morto veio deslizando pelo telhado adjacente e foi arremessado diretamente por entre uma janelinha e caiu na cama! E isto é uma uma minúscula amostra dos absurdos de Getenrou.

Só para ter uma ideia do que seja Getenrou, o primeiro capítulo mostra a saga de três amigos em busca de revistas pornográficos. Primeiramente tentam comprar numa loja, elaborando um plano mirabolante, que dá completamente errado. Depois resolvem fuçar o lixo do condomínio em busca de revistas pornôs, e olhe só, eles encontram! Uma das revistas estava cortada pela metade. Os rapazes levantam muitas teorias mirabolantes acerca do motivo das revistas estarem no lixo naquela ocasião. É impossível antecipar o que será Getenrou apenas lendo o primeiro capítulo.

O segundo capítulo mostrou uma das histórias mais malucas que eu já vi na vida! Uma investigação policial acerca de um crime supostamente cometido enquanto um justiceiro espacial combatia vilões intergaláticos. Até aí tudo bem, o problema é a maneira como tudo é tratado, com o mocinho e a vilã se justificando para a polícia, dando depoimentos e etc,, como se tratasse de uma ocorrência normal em qualquer lugar do planeta Terra.

Curioso analisar o mundo de Getenrou. Embora ele pareça o nosso mundo no presente, ele se passa numa época em que o uso de inteligências artificiais (robôs) é comum e difundido entre a população. Sendo comum encontrar robôs exercendo as mais diversas funções dentro da sociedade, como médicos e policiais. O terceiro capítulo é notavelmente mais sério, embora ainda tenha um ar jocoso em determinados pontos.

Foi exatamente neste terceiro capítulo que eu percebi que Getenrou tinha algo mais para oferecer além de capítulos esparsos com enredos malucos, quando me deparei com uma trata envolvendo a velha discussão da robótica, com temas tais como a substituição da mão de obra humana pela robótica, e mais importante, sobre os aspectos morais que envolvem a existência de robôs. Se eles podem ser considerados “vivos” e coisas do gênero, além de uma variação do velho dilema de como saber se você é um robô se você foi programado para agir e parecer um humano, ignorando sua “fabricação”.

O curioso que estes três primeiros capítulos parecem desconexos um com os outros, mas vão se encaixando como peças em um jogo de Tetris ao longo da leitura deste mangá. A partir do quarto capítulo somos apresentado à personagem mais distinguível de Getenrou, a oficial Saeko Sakuraba. Essa mulher é insana! Ela é uma policial recém formada, a qual possui um grande ardor pela investigação policial, tentando resolver os crimes, ou supostos crimes, com as mais variadas soluções mirabolantes, levando tudo até um grau de complicação sem precedentes.

 

Provavelmente ela desconhece o conceito da Navalha de Occam, onde a solução mais simples é a melhor. A oficial Sakuraba é de uma comicidade ímpar, mesmo que ela tente parecer séria. É uma personagem interessantíssima com um desenvolvimento interessante, mesmo para uma obra tão curta. Ela se torna uma espécie de elo de ligação entre os crimes cometidos no mangá e a solução deles que se encontra no conjunto habitacional de Getenrou.

Não quero entrar nos detalhes do enredo, mas devo dizer alguma coisa sobre o desenlace de Getenrou a partir do quarto capítulo. Confesso que me surpreendi com Getenrou, não esperava algo tão profundo como o que me foi ofertado pelo autor. As discussões filosóficas e impasses morais, tendo como pano de fundo a ficção científica e mais especialmente a questão das inteligências artificiais, apresentados em Getenrou, não deixaram a dever em nada em relação a clássicos do gênero, como Ghost in the Shell.

Nem só pela profundidade da temática de ficção científica se destaca Getenrou. A questão do solucionamento dos crimes que ocorreram no mangá, e a consequente “vinda à tona” de segredos sobre experiências e pesquisas proibidas, foram muito bem trabalhadas. Além de um tema polêmica e que confesso, nunca vi tão bem explorado em uma obra de ficção, sobre o uso de robôs e inteligências artificiais para o uso sexual.

Sabemos que o Japão é um exemplo quando se fala em bizarrices de cunho sexual. Para quem conhece um pouco do tema, não é novidade saber que há japoneses que se se apaixonam e casam com personagens 2D e figures. Levando isto em consideração, não é difícil imaginar esse tipo de relação doentia expandida para robôs e congêneres. Getenrou levanta questionamentos sobre os impactos morais desta questão, sobre a necessidade, ou não, de legislar restringindo a venda de robôs para a satisfação sexual de seus donos, chegando ao extremo de apresentar um jovem transtornado (virgem) para ter acesso a um robô com aparência de uma jovem colegial.

Há também em Getenrou, seres chamados fadas. As fadas são pequenas humanoides criadas dentro de recipientes, servindo como “decoração” e outros objetivos mais impróprios. Há toda uma discussão sobre a moralidade de utilizar seres vivos como objetos de adorno, mesmo que os cientistas aleguem que as fadas não possuam um cérebro ativo. O principal argumento em favor das fadas decorre do fato que as pessoas fazem a mesma coisa com qualquer bichinho de estimação. Então, percebe-se que o maior problema é o fato das fadas parecerem humanas, caso parecessem um bicho, não haveria nenhum problema.

Esses são apenas alguns exemplos do tipo de discussão que foi apresentada em Getenrou, mas de onde saíram estes exemplos há muito mais, e muito mais pesados, envolvendo um sério segredo de família, uma espécie de incesto e seríssimas implicações éticas. Getenrou se mostrou algo totalmente diferenciado, que conseguiu transitar entre a comicidade e a extrema seriedade em questão de capítulos. Quando todas as pontas se reúnem, percebemos a geniosidade do autor em montar um quadro tão diverso de personagens e tramas.

No que tange os aspectos gráficos de Getenrou, posso dizer que a arte do mangá é simples, porém, bem acada. O design dos personagens é limpo e claro, o autor utilizou traços firmes e não deu muita margem para sombreamento e desenhos rebuscados. Mesmo senso simples e nem se destacando como algo excepcional, a arte de Getenrou é simpática e funciona bem para o tipo de obra apresentada, com uma “comicidade séria”.

Para finalizar, devo dizer que Getenrou é um mangá plenamente recomendável, e digo para aqueles que se sentirem tentados a ler, não se deixem levar pelas aparências iniciais e permitam que essa obra os surpreenda, assim como me surpreendeu. Getenrou é um bom exemplo de que algo aparentemente simples pode se tornar algo de uma complexidade singular. Se você gosta de ficção científica e um pouquinho de absurdo, Getenrou é uma ótima pedida.

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