Palme no Ki. Um conto de fadas psicodélico.

Hoje o Dissidência Pop vai apresentar uma pérola da animação japonesa praticamente desconhecida no Brasil, Palme no Ki, ou Tree of Palme, dirigida e escrita por Takashi Nakamura, o qual trabalhou como diretor de animação em clássicos como Akira.

Palme no Ki é uma peça de arte simbólica a qual reconta o clássico infantil Pinóquio, onde o boneco de madeira enfrenta diversas aventuras para se tornar humano, só que neste caso, a ambientação se passa em um universo que mescla fantasia e ficção científica, que chega a lembrar os clássicos do estúdio Ghibli, como Nausicaa do Vale do Vento.

Palme no Ki veio ao mundo em 16 de março de 2002, produzido pelo estúdio Palm (o filme e o estúdio possuem quase o mesmo nome, curioso né?). O filme possui duas horas e dezesseis minutos de duração, sendo uma criação original de Takashi Nakamura, renomado diretor e animador, com uma carreira profícua na indústria da animação japonesa, tendo trabalhado em obras como Fantastic Children, Robot Carnival, Akira e mais recentemente como diretor em Harmony. Palme no Ki chegou a ser nominado no Festival de Cinema de Berlim em 2002.

A sinopse de Palme no Ki é basicamente a seguinte: A história se passa no planeta Arcana. Palme é uma marionete mecânica feita da madeira de uma espécie de árvore chamado kooloop, a qual possui propriedades místicas de reter em suas “raízes” memórias dos seres vivos, especialmente pessoas, que viveram em suas proximidades. Palme foi construído por um homem para fazer companhia à sua esposa doente. Depois da esposa do homem morrer, Palme fica paralisado, ligando uma ou outra vez quando algo que lembra a esposa de seu construtor aparece em sua frente, já que ele nutria um amor muito forte por ela.

Certa vez, uma mulher com a tez azul, uma guerreira da tribo Sol, depois de ser perseguida por certas pessoas misteriosas da mesma raça que ela, acaba parando na casa do homem (já velho) e de Palme. Ela entrega ao menino marionete um objeto sagrado e muito precioso, uma espécie de bola mecânica, o “ovo de Touto”, ela ainda pede para ele levar o objeto até um lugar muito distante,  cidade de Tamas, a pátria natal da misteriosa mulher. Palme, inicialmente, a confunde com a esposa falecida de seu mestre, acabando aceitando a missão sem pensar duas vezes.

A mulher também entrega ao velho um óleo, o óleo de crosskahla, um material valioso e poderoso, o qual poderá dar uma nova vida ao boneco. O velho resolver colocar o óleo no menino e o ovo é instalado nele, em seu ventre. Logo depois, os mesmos perseguidores que perseguiram a mulher acabam chegando até sua casa, matando-o. Palme fica sozinho. Quando ele acorda resolve iniciar sua jornada, sem saber para onde ir. Ao longo de seu caminho Palme se mete em muita encrenca, primeiro ele é sequestrado por traficante de escravos e depois resgatado por uma gangue de crianças delinquentes, onde encontra os seus primeiros amigos.

Palme também acaba descobrindo que a civilização de Tamas, a mesma da mulher que lhe entregou o objeto, luta pela sobrevivência. Nas profundezas onde habitam, existe uma árvore kooloop gigantesca capaz de criar vida, mas também de a destruir. É para lá que Palme deve ir em busca de uma oportunidade de se tornar humano, já que descobriu que uma lenda do lugar afirma que há essa possibilidade. Palme forma um grupo com vários companheiros para ir em sua busca, notadamente a menina Popo, a qual ele nutre sentimentos muito forte e Shatta um menino do povo de Tamas. Além de Palme, todos eles possuem seus problemas e o caminha para Tamas contém a resposta para eles.

Palme no Ki é sem sombra de dúvidas uma releitura de Pinóquio. Mas não esperem algo simples e fácil de entender, a característica mais marcante deste filme é ser simbólico. É o típico filme que ou a pessoa gostou ou odeia, especialmente aqueles que não entenderam muita coisa dele, o que não é muito difícil de acontecer, já que as mensagens da obra são transmitidas por símbolos. Mesmo assim, o filme encanta pelo visual, rico de cores e paisagens mirabolantes.

É interessante perceber a evolução de Palme ao longo deste filme. Ele começa como um robô destituído de emoções, apático. Boa parte da película tudo gira em torno dele, ele sendo apenas um elemento do cenário. As transformações de Palme são crescentes. Quanto mais ele se aproxima de Popo, mais humano ele se torna. Entretanto, o que mais chama a atenção são os seus defeitos que logo logo aparecem de forma acentuada. 

Palme personificou por um tempo o que há de mais odiável no ser humano, matou um animal indefeso, mentiu descaradamente, acusou os outros de coisas que não fizeram, fazendo clara referência ao Pinóquio original, o qual era um mentiroso inveterado. Palme era um humano completo e não sabia, disso, possuía todos os sentimentos que caracterizavam um ser humano, embora não possuísse carne nem ossos.

Foi importante para Palme passar por essa transição de sentimentos. Aquela velha máxima, enquanto Palme busca se tornar humano magicamente, abandonando seus circuitos e a madeira que compunha o seu corpo, mais humano ele se tornava dentro dele, mesclando amor e ódio. O seu corpo era apenas uma casca, dentro dele seus sentimentos já eram humanos. Ele pensava que podia agir da maneira que quisesse enquanto não fosse humano, mas estava enganado, já que a plena capacidade de sentir já cobrava o seu preço.

É complicado explicar uma história tão singular quanto Palme no Ki apenas em breves palavras, acho que você deve assisti-lo para tentar entender esta obra. Ela toca muitos aspectos da psicologia humana, como o desespero, medo, e a necessidade de ser reconhecido pelas pessoas que você ama. Este filme é um trabalho brilhante que a maioria das pessoas não viram nem sequer ouviram falar. O final é tão tocante que você dificilmente vai esquecê-lo.

No começo se pode pensar que este filme é uma das muitas versões do clássico Pinóquio, mas esta não é uma suposição correta. Esperar uma história banal de Palme no Ki é ser completamente equivocado. Palme no Ki é definitivamente uma versão muito mais obscura e e profunda. Este filme definitivamente não é para todos. No começo é um tanto lento, mas o visual e o simbolismo estranho do filme prendem a atenção e compensam o esforço inicial.

O ponto que as pessoas mais reclamam deste filme é o fato de Palme no Ki não ser uma obra com um enredo claro. Eu particularmente acho que consegui entender satisfatoriamente do filme, mas compreendo estra pretensa “repulsa” por parte de alguns. Palme no Ki é repleto de simbolismos. Poderia começar a falar deles, mas se fosse abordar tudo, eu deveria escrever um artigo muito mais longo. Assim, só vou falar um pouco de alguns elementos que achei interessante. Primeiramente, Palme é um Pinóquio que não possui sua Fada Azul e o nariz não cresce quando mente.

Há peixes gigantes voadores, um deles ao cruzar com Palme o ativa por alguns minutos no início do filme. Outro elemento curioso são os “bolas”, parecem uns pepinos do mar gigantes, mais ou menos do tamanho de uma pessoa. Aparentemente eles atacam as pessoas que aparentam hostilidade. Todos temem estas criaturas, apenas Popo conseguiu interagir com elas sem medo, até mesmo foi ajudada pelos bolas. Aparentemente estas criaturas reagem aos sentimentos das pessoas, sendo eles hostis ou pacíficos. Pessoas com intenções ruins devem temer muito mais estas criaturas.

As árvores kooloop também são muito interessantes e importantes. O filme começa e termina em uma árvore. Palme é feito de uma e deve decidir o seu destino chegando até uma árvore. Soma, a kooloop ancestral de Tamas, a qual de tão velha e sábia pode destruir a qualquer instante aquele povo, reescrevendo o círculo e ascensão e queda dos povos humanos, já que estas árvores absorvem as memórias dos povos que vivem ao seu redor. As árvores são símbolos interessantes, na natureza ela é um elemento que mais serve como analogia da ligação do ser humano com a natureza.

Certamente eu não vou dizer o que realmente acontece no final de Palme no Ki, mas é belíssimo o modo que o filme demonstra que Palme possa não ter um lugar neste mundo como um ser humano, mas que isso não significaria que ele não pode vigiar ou mesmo tentar proteger aqueles que ele ama. A sua memória continua com todo mundo. Enquanto as pessoas se lembrarem dele, ele existirá. Na natureza nada se perde, tudo é consumido e renovado por outras formas de vida. Enfim, é um final belíssimo, embora não seja um final feliz, não é um final triste, seria mais como “agridoce”.

Outro ponto de crítica, que acho equivocado, é que o filme é muito “ruminante” por assim dizer, possui muitas partes introspectivas e as cenas demoram em avançar, o que tornaria o filme um pouco maçante. Como gosto destas abordagens mais intimistas, isto não me preocupa muito, mas como a maioria das pessoas gostam de cenas frenéticas, Palme no Ki pode não ser uma experiência muito agradável.

Os personagens de Tree of Palme compõe um time bem diversificado de personalidades interessantes e variadas, cada um possuindo o seu próprio significado e colocação no enredo. Palme no Ki é uma obra variadíssima e rica, diversas tramas paralelas se unem na saga de Palme. Destaca-se Popo, a menina na qual Palme é atraído pela semelhança com a falecida esposa de seu criador, principalmente pelo motivo dela cantar a mesma música que ela cantava. 

Popo possui uma história interessantíssima. Ela é constantemente maltratada pela sua mãe, a qual a obriga a trabalhar como uma escrava, além de humilhá-lha constantemente. De alguma forma não muito bem explicada, o pai de Popo morreu e sua mãe passou a odiá-la por esse motivo. Não se sabe se foi Popo a causadora da morte do pai, mesmo sem querer, ou se sua mãe apenas imputa-lhe a culpa do ocorrido. De uma forma ou de outra, Popo era uma menina triste e quieta até conhecer Palme e se deixar levar pelo seu desejo de ser humano.

Creio que o ponto principal do drama de Palme é solucionar o seguinte dilema: É preciso ser humano para possuir humanidade? Há um ponto no filme onde Palme se sente superior e aprecia o poder que possui sobre os outros, mesmo que esse outro ser não seja cruel ou ameaçador. Popo fica triste com o desejo de Palme de ser humano que o força a perder aquela gentileza e amor que possuía no início. Ele equivocadamente acredita que fará com que outros o tratam com mais respeito quando for humano, mas Popo o apóia e mostra que ser humano não define quem somos, mas como nos comportamos é que realmente conta.

Outra questão importante levantada por Palme no Ki diz respeito a importância dos sentimentos que guardamos no nosso íntimo, em especial nossos traumas não resolvidos. Koram, a guerreira que entrega o ovo para Palme é a causa de sua jornada, e a motivação dela entregar esse ovo é um tanto semelhante com a relação de Popo com sua Mãe. Koram desejava reconhecimento de seu pai, e este desejo a levou até um caminho de destruição.

Contudo, Popo teve Palme, e a relação de ambos mudou o destino da menina, Já Koram não teve tanta sorte, sendo que além de sofrer por um evento que não deu causa, acabou cometendo os mesmos erros, como abandonar seu filho no mundo. A questão não é você ser humano, mas o que você faz com a capacidade de raciocinar ou sentir. O fato de Palme ser um boneco é irrelevante.

Quanto a questão artística, de visual, Palme no Ki é totalmente impecável. É fantástico tanto a animação como a ambientação. As paisagens são na maioria surreais, parecem pinturas de Salvador Dali! A ambientação está repleta de elementos alienígenas, criaturas de outro mundo completamente bizarras. As cidades, os montes e as flores são belíssimas, é algo realmente de tirar o fôlego. O filme perde, ou “ganha” bastante tempo em focar em paisagens e no movimento dos elementos naturais, isso pode tornar o filme mais lento, entretanto torna-a uma obra muito mais encantadora.

O design dos personagens é bastante interessante. Não é algo habitual, o traço é curioso, mescla o habitual dos animes e mangás com uma pegada leve de estilo ocidental, como alguns narizes proeminentes. O visual de Palme também ficou bem caracterizado, mesclando elementos naturais com elemento mecânicos. As meninas principalmente ficaram bem bonitas também, com expressões bem alinhadas e gentis. A animação é muito boa, ela é fluída e contínua na medida certa. As cenas de ação além de serem muito bem dirigidas foram muito bem animadas. 

O uso de elementos tridimensionais também está presente no filme. Levando-se em conta que o filme é de 2002, o tridimensional até que foi bem encaixado, sendo utilizado em momentos específicos da animação, notadamente no peixe voador e em alguns elementos da paisagem, como flores abrindo e similares.

A trilha sonora também é belíssima, é quase que completamente composta por temas clássicos bem intensos. Ela fica mais evidente nos momentos em que não há nada acontecendo, apenas mostrando paisagens e elementos dela, com criaturas e plantas. A trilha sonora se mostrou bastante evidente e concisa, contribuindo positivamente ao resultado geral do filme. Certas partes a trilha sonora se torna cacofônica, com efeitos absurdos, casando bem com a surrealidade das paisagens do filme.

Difícil chegar numa conclusão sobre Palme no Ki. Como eu disse bem lá em cima, ele é muito interpretativo, possui uma série de simbolismos. O significado do filme não é entregado de bandeja, cabe a cada um analisar a obra como um todo e tirar suas conclusões. Esse é um dos motivos da recepção dividida da crítica. Eu particularmente adorei o filme, ele me lembra muito Nausicaa do Vale do Vento, diante da ambientação fantasia/sci-fi, bem como das temáticas abordadas.

Se eu recomendo esse filme? Recomendo sim, mas com ressalvas. Se você gosta de materiais interpretativos, repletos de simbolismos, mas mesmo assim muito bonitos com uma arte e animação de tirar o fôlego, Palme no Ki é uma boa pedida, se não gosta, paciência, não é possível agradar todos. Entretanto, quem for assistir esse filme espero que goste dele tanto quanto gostei. Então, fica essa recomendação do blog Dissidência Pop.

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