Hoje vocês lerão no Dissidência Pop um artigo sobre o mangá Undercurrent, de Tetsuya Toyoda. A obra começa quando Kanae Sekiguchi, proprietária da casa de banho Tsuki no Yu, luta para reabrir seu negócio depois do desaparecimento inexplicável de seu marido. Neste mangá vocês não encontraram lutas emocionantes, linhas de velocidade, erotismo e violência explícita, mas sim um drama maduro e sério, com uma boa exploração da questão do abandono e da solidão.
Como é de praxe, primeiramente os dados técnicos do mangá. A obra se chama Undercurrent, que em português significa subcorrente, que significa uma corrente marítima que corre por baixo de outra, muitas vezes em direção oposta a ela. Este título faz bastante sentido, mas sobre isso falarei mais para o final. Undercurrent foi serializado de agosto de 2014 a agosto de 2005 na revista de demografia seinen Afternoon, casa de mangás famosos como Vinland Saga, Blame!, Mushishi e Blade of the Immortal. O mangá possui 11 capítulos lançados em um único volume.
Tetsuya Toyoda é o autor de Undercurrent, responsável tanto pela arte quanto pela história. Esse mangaká não é muito famoso, possui outras obras publicadas na Afternoon, ambas antologias de pequenas one-shots, quais sejam, Coffee Jikan e Goggles. Publicou também, uma one-shot em uma antologia homenageando o mangá Mushishi na revista Goog!Afternoon, uma revista “irmã” da Afternoon mais famosa.
Undercurrent alcançou fama internacional, principalmente na França, onde ganhou uma indicação para concorrer no Angoulême International Comics Festival, o maior festival de quadrinhos da Europa, isto em 2009. No mesmo ano ganhou o Prix Asie-ACBD, um prêmio concedido pela Associação de Críticos e Jornalistas de Quadrinhos da França ao melhor mangá ou outro quadrinho asiático publicado na França no respectivo ano. Ganharam esse prêmio mangás famosos, como Pluto de Naoki Urasawa. Também foi considerado o melhor mangá de 2008 pelo jornal belga Le Soir.
Deixando os aspectos técnicos, vamos falar um pouco deste curioso slice-of-life que é Undercurrent. Dando uma sinopse mais detalha, Undercurrent se passa no Japão contemporâneo, e segue a gerente de uma casa de banhos, Kanae cujo marido desapareceu durante uma viagem de negócios há alguns meses. Ele simplesmente evaporou, ninguém viu nada, as autoridades não encontraram nenhuma pista do seu paradeiro, ele também não deu nenhum sinal ou informação para sua esposa. Kanae buscou encontrá-lo de todos os meio legais, ligou para hospitais, para a o polícia e nada.
Undercurrent começa com Kanae resolvendo reabrir sua casa de banho a qual tocava junto de seu marido. Infelizmente era impossível para Kanae manter o negócio sozinha, apenas com a ajuda de uma senhora amiga de sua família, assim ela contrata Hiro, um calado e enigmático funcionário, indicado pela associação das casas de banho, para ele trabalhar na fornalha. Dentro deste contexto, Kanae tem que aprender a se reerguer depois do sumiço misterioso do marido e ainda cuidar do seu estabelecimento.
Outros personagens cruzam a vida de Kanae, como um detetive particular indicado por uma amiga sua, o qual resolve ajudá-la a encontrar o paradeiro de seu cônjuge desaparecido. Um velho desbocado, antigo membro da Yakusa, entre outros. Kanae aparenta ser forte, decidida e calma, mas esconde suas emoções muito profundamente, e quando elas vem à tona, tem que lutar para não se deixar sucumbir. Undercurrent mostra muito bem o sofrimento de quando se perde algum ente querido desaparecido, mostrando que a dor nesses casos pode ser muito pior do que a simples morte, diante da eterna incerteza do que realmente poderia ter acontecido.
Undercurrent desenvolve este enredo seguindo um ritmo calmo, com uma grande riqueza de emoções, sendo a perfeita caracterização de um drama adulto. A ação e a arte não são seus maiores méritos, pois o autor visou uma boa exploração da história e dos personagens, abordando concisamente temas como o abandono da perda de um membro da família e a difícil arte de compreender aqueles mais próximos a você. O principal dilema de Kanae era entender o motivo de seu marido ter sumido caso ele tenha feito isso por conta própria, será que ela foi a responsável por isso, por não tê-lo compreendido adequadamente?
Será que ele morreu? Um suicídio talvez? Será que ele simplesmente foi embora ou fugiu de algo ou alguém? Será que possui outra mulher? Será que ele se cansou dela? Poderia haver um milhão de razões pelas quais ele desapareceu, esse é o verdadeiro pesadelo da vida de Kanae. Muitos questionamentos para muito poucas respostas assolavam a sua mente, principalmente quando ela ouvia na televisão notícias sobre um corpo encontrado ou vestígios de alguém desaparecido.
O medo de não saber por que alguém desapareceu é um dos piores cenários para alguém passar, é um pesadelo. Repito, tal situação foi muito bem explorada em Undercurrent. O mangá privilegiou uma abordagem intimista e serena destes dilemas, por vezes lenta, mas não em excesso, na medida ideal. Para aqueles que prezam apenas movimentação e acontecimentos frenéticos, Undercurrent não é uma boa pedida.
O autor conseguiu inserir uma atmosfera triste e melancólica sobre Kanae e sobre sua situação, mas nunca desembocando em um melodrama barato. Tudo é perfeitamente sutil em Undercurrent, por isso digo que o mangá dever ser lido com atenção para não se perder nenhuma nuance. Muito do que é dito no mangá não se faz por balões, mas por olhares e expressões, a linguagem do corpo cumpre um papel importante nesta obra. Digo isso sem menosprezar o texto de Undercurrent, já que possui diálogos profundamente fenomenais.
Lidar com a casa de banhos sozinha também foi um grande desafio, já que antes o fazia com a ajuda do esposo. A maior questão, como lidar e o que fazer quando seu companheiro sai de casa e nunca mais volta? O famoso “vou ali comprar um cigarro e já volto”. Kanae aceitou parcialmente a situação depois de muito tentar encontrar o paradeiro de seu marido com a ajuda das autoridades. Curiosamente, a possibilidade da solução de seu problema surgiu quando ela não mais a procurava intensamente, com o aparecimento do curioso detetive particular Yamazaki.
Talvez a principal questão levantada em Undercurrent seja sobre o que significa verdadeiramente compreender alguém. Ela sentia em seu interior que o marido foi embora por não ter sido entendido por ela, algo obscuro que ele não conseguiu confidenciar. Embora Kanae não tivesse provas disso, era o que sentia no fundo de sua alma. A falta de compreensão teria sido o estopim do fim trágico de seu casamento, o qual superficialmente parecia feliz. Tanto é é que nenhum dos personagens apontou qualquer defeito do casal.
Essa questão de entender o outro se mostrou de uma maneira muito eficaz em Undercurrent, com vários momentos comoventes. Embora possua um ritmo sereno, Undercurrent possuiu grandes reviravoltas, as quais são executadas de modo satisfatório, embora sem alarde. Explico melhor dizendo que não há páginas desperdiçadas, muito menos páginas duplas destacando as revelações do enredo de forma chocante e melodramática como uma novela mexicana. Tudo se dá no ritmo da obra, calmamente, o que para mim foi muito bom.
Quanto mais Kanae tenta descobrir sobre o que realmente aconteceu com seu marido, mais as verdades escondidas em seu subconsciente afloram para a superfície consciente. Inclusive outros acontecimentos dramáticos vêm à tona, como um desparecimento de uma amiguinha sua de infância. Ela passa a se culpar por tudo de ruim que aconteceu em sua vida, inclusive entrando em um estado de torpor, com direito a contrair até mesmo uma febre nervosa.
Esta pesquisa pelo paradeiro do marido levou-a a conhecer a verdade do que aconteceu realmente com o seu marido. Por outro lado, o contato com a seu novo assistente, Hori, lhe deu o apoio necessário para continuar e ver que a vida vale a pena ser vivido. Kanae tem que nadar contra a corrente de infortúnios que se abateu em sua vida, a fim de chegar em águas mais plácidas, talvez este seja o significado da escolha do nome Undercurrent.
Creio que o personagem mais importante depois de Kanae é Hori. Por isso tenho que falar sobre ele. O enigmático e soturno funcionário de Kanae parece apenas um cara estranho, mas se mostrou muito além disso. Do seu jeito sério e pragmático conseguiu ajudar Kanae em diversos momentos. Eles formariam o “par romântico” do mangá, caso ele se enveredasse por esse rumo, mas a relação deles embora não tivesse uma resolução foi algo memorável, principalmente quando o leitor começa a descobrir elementos de seu passado.
O final da obra foi surpreendente de certa forma, embora um pouco previsível. Minha colocação paradoxal mostra como Undercurrent pode ser complexo mesmo possuindo uma premissa e execução simples. O desfecho foi curioso, dando um gosto agridoce na boca. Nem tudo é revelado, mas muita coisa é sugerida, dando um final bem redondo para o mangá com uma pitada de mistério ainda por ser resolvida. O final também faz a gente chegar a conclusão de que as vezes as explicações mais simples são as melhores.
Outro aspecto muito interessante de Undercurrent foi dar um panorama detalhado da forma que os banhos públicos japoneses funcionam, dando um pano de fundo para a história interessante e informativo. Inclusive pude entender mais sobre os benefícios e desvantagens de substituir a lenha pelo óleo na produção de calor para uma casa de banhos pública. Percebe-se a importância que essas casas de banho têm no Japão, inúmeros mangás e animes já retrataram este ambiente japonês tão tradicional.
A arte de Undercurrent talvez seja o ponto mais questionável da obra. O seu traço é bem okay, nada surpreendente, bem banal na verdade. Alguns quadros ficaram relativamente mau desenhados na minha opinião. O seu estilo se aproxima mais em buscar uma correta representação dos traços humanos do que o típico estilo de mangá. Não reclamo da falta de cenas elaboradas pois esse não foi o foco do mangá, que quis contar uma história calma em um ritmo sereno.
O que mais gostei da arte de Undercurrent foi da caracterização da Kanae, ela não é exuberantemente atraente, mas possui uma beleza sutil que fica ainda mais interessante com pegada andrógena que o autor conferiu a ela. Nos primeiros quadros confesso que tive dificuldade em vê-la como mulher, mas isso logo se resolveu. Os momentos em que ela afunda em devaneios na banheira ficaram muito bem desenhados, merecendo elogios.
Concluo dizendo que recomendo fortemente Undercurrent, mesmo que possa decepcionar muitos leitores mainstrean, porque não é preocupado com convenções típicas, como a existência de fan service e a existência de pelo menos alguma cena de ação. Percebe-se que a maior preocupação de Tetsuya Toyoda foi contar a história com um ritmo lento e reservado, garantindo um impacto emocional eficiente. Undercurrent é um ótimo drama melancólico com uma pitada de mistério.