Dois garotos vestidos de coelho que embarcam em um trem de forma fálica com destino para um bordel subaquático. Essa provavelmente é uma das premissas mais bizarras que você já viu. Ryuuguuden é uma viagem surreal com uma sucessão de elementos fantásticos, criando certa similaridade com o clássico Alice no País das maravilhas. Contudo, a obra surpreende por ser mais do que aparenta em seus primeiros capítulos, mostrando que do caos surge a ordem.
Ryuuguuden, que pode ser traduzido como Castelo do Dragão, é um mangá composto por três volumes e vinte e nove capítulos, serializado de 2002 a 2005 na revista Ikki, lar de títulos famosos como Bokurano. O mangá é de autoria de Toyokazu Matsunaga, que não possuiu outros títulos muito relevantes.
Ryuuguuden é sua obra mais famosa, possuindo certo destaque dentro da revista na qual foi serializada. Toyokazu também é lembrado pelo seu estilo de desenho, que recorda a arte de Jean Giraud, conhecido como Moebius, importantíssimo quadrinista francês, reconhecido pelo surrealismo de suas obras. Uma boa curiosidade sobre Moebius, é que ele foi uma dos desenhistas dos cenários e alguns personagens do filme “O Quinto Elemento”, dirigido por Luc Besson.
Difícil dar uma sinopse para Ryuuguuden, seu começo é bastante aleatório, mas consegue minimamente convergir numa sequência lógica de eventos que culmina na aventura vivida pelos protagonistas. Difícil até mencionar os temas gerais da obra, visto haver uma mudança significativa da percepção do leitor ao longo dos três volumes.
Poderia dizer até que Ryuuguuden começa como uma típica obra de fantasia, repleta de elementos surreais, cheio de criaturas mágicas, lembrando bastante Alice no País das Maravilhas, até convergir em uma obra de ficção científica repleta dos elementos do gênero, como biotecnologia, viagens no tempo, ambientes pós-apocalípticos, desastre naturais, invenções malucas e sabres de luz.
Logo de cara acontece uma bizarríssima apresentação de rua realizada por uma família de artistas que se fantasiam de coelhos e simulam truques. Até agora duvido do sucesso do empreendimento, ainda mais por se apresentarem à beira de um rio, afastados do grande público. A primeira vista, o leitor pode imaginar que é uma obra infantil, porém é totalmente adulto. E, se mesmo depois de ler a descrição que menciona um trem de forma fálica e um bordel subaquático o leitor ainda não estiver convencido, o mangá logo mostra para o que veio.
Ani e Bo, os irmãos das fantasias de coelhos, não têm uma vida fácil, precisando sobreviver nesta atividade informal, já que o seu pai se matou por ter pedido o emprego. Um belo dia, uma menina acompanhada de uma idosa e um homem, começa a prestar atenção na apresentação dos irmãos, entretanto vai embora e não dá um tostão, causando frustração nos esmerados artista. Porém, essa menina é mais importante que parece.
Uma série de eventos culminam no reencontro dos irmãos com a menina, que se chama Tama. Em resumo, ela gostou da apresentação e quer retribuir, então convida o Bo para lhe levar para um lugar magnífico. O outro irmão, Ani, entra de penetra no trem. O destino é Ryuuguuden, o Castelo do Dragão, um bordel único para os homens mais poderosos da Terra. O meio de chegar lá é apenas pelo trem de forma fálica.
O conceito de Ryuuguuden é retirado da própria mitologia japonesa, do mito da Otohime, a princesa-deusa dos mares, que se relacionou com um pescador e o levou para morar em seu palácio subaquático. Entretanto, quando resolveu voltar para a superfície, séculos haviam se passado, visto a diferença da passagem do tempo entre os dois reinos. Bom, no mangá, Otohime e suas descendentes governam um bordel, exclusivo para a elite mundial. A menina chamada Tama é neta de Otohime, e, portanto, uma das governantes do tal bordel.
A ambientação de Ryuuguuden é bastante fantástica, como o castelo submarino de arquitetura clássica japonesa, o Deus Dragão, o bordel em si mesmo, a calorosa recepção dos clientes. Há também elementos ainda mais fantásticos, pois dentro do bordel não há água, sendo o meio mais comum de transporte, o uso de animais voadores, como tartarugas marinhas. Isto dá, sem dúvidas, uma ambientação bastante onírica para o enredo.
Ani e Bo possuem personalidades bastante distintas, enquanto Ani, o irmão mais velho, é impetuoso e muitas vezes age sem pensar, Bo é doce e prudente. Entretanto, ambos os irmãos não medem esforços para ajudar os que precisam, são corajosos mesmo enfrentando perigos muito além da força humana, principalmente se for para ajudar as garotas que gostam. Há ainda no mangá, algumas sub-tramas românticas protagonizadas pelos nossos heróis.
Além da bizarrice dos elementos de Ryuuguuden, a obra levanta uma série de questionamentos bastante relevantes. Assim, mostra que não se trata apenas de mais um mangá non-sense que joga um caminhão de elementos bizarros na cara do leitor, mas sim de uma obra séria, um conto de fadas adulto que consegue passar sua mensagem. Neste ponto, portanto, a obra se difere bastante de “Alice no País das Maravilhas”.
A arte de Ryuuguuden é bastante único, fazendo com que seu estilo lembre um pouco alguns quadrinhos ocidentais, como os do já mencionado Moebius, seus traços são bem claros e há pouco uso de sombreamento nos desenhos, com predominância do branco. Além disso, seu traço é bastante cartunesco em algumas ocasiões, o que confere um estilo bastante singular para um mangá.
O autor trabalha o enredo com maestria, conseguindo produzir alguns plot-twist de muita relevância, sendo o mais impressionante, como já havia mencionado, conseguir transitar entre uma aparente história de fantasia para um complexo e cheio de reviravoltas enredo de ficção científica, que é capaz de fazer sentido no final da obra. Além disso, Ryuuguuden mexe com várias temáticas e elementos bastante polêmicos, como a questão de gênero, sacrifícios, e até mesmo estupro.
Confesso que os primeiros capítulos foram os mais difíceis de ler, pois aparentemente a história não “engrenava” e a leitura era um pouco maçante. Eu temia que a história se resumisse a um bocado de elementos non-sense em uma fantasia banal. Entretanto, da metade do primeiro volume para a frente, algumas revelações do enredo passaram a prender a atenção, propiciando um entretenimento de qualidade.
A conclusão da obra é bastante eficiente. Os últimos capítulos conseguem prender a atenção até um final surpreendente e emocionante. Ressalto que não sobrou pontas do enredo em aberto, fechando a obra de uma maneira adequada, não sendo provável que haja uma continuação. Contudo, isso vai da cabeça do autor.
Aviso que, da em diante, pode ser que haja alguns spoilers, pela necessidade de tratar de alguns pontos específicos do enredo.
Entre as discussões proporcionadas por Ryuuguuden, a mais importante é, sem sombra de dúvidas, a questão sobre fazer “o certo e o errado”, “o bom e o ruim”. Mas o que seria isso tudo? As vezes, para alcançar um bem maior, não somos obrigados a causar um mal a alguém? Ao prender um criminoso, protegemos a sociedade (bem maior), mas não deixamos de causar um dano ao preso, restringindo sua liberdade, por exemplo.
Numa esfera social mais ampla, este questionamento apresentado por Ryuuguuden, aborda a questão da guerra. Impossível não citar o famoso adágio latino: Si vis pacem, parabellum, o qual significa: “se queres a paz, prepara-te para a guerra”, mostrando que uma sociedade mais forte é menos apta a ser atacada e destruída pelos seus inimigos. Por mais contraditória que pareça, a guerra se torna um elemento para alcançar a paz, como um conflito no qual um dos lados tem que se defender de um agressor externo.
Por isso, por mais que uma sociedade seja pacifista, ela precisa de um exército. Ou melhor, precisa ter em mente que alguns conflitos não se resolvem com diálogos. É ilusão pensar em um mundo sem conflitos, pois a natureza humana é conflituosa por si mesma. O mangá mostra isto de maneira magistral ao retratar tão bem o fiasco de uma possível humanidade completamente pacificada, ela simplesmente é reduzida a destruição, pois se nega a “lutar” para sobreviver.
Outro elemento que colabora com essa indicação é que até mesmo os protagonistas cometem alguns atos vis para conseguirem alcançar seus objetivos, como sacrificar o filho de um inimigo, ou cometer um quase canibalismo. Não poderia deixar de citar a própria existência do Castelo do Dragão, o qual, para sobreviver, deve realizar sacrifícios de homens-peixe ao “deus-dragão”.
O próprio mangá, ao final, deixa claro que não é o seu objetivo lutar contra a ordem estabelecida do Castelo do Dragão, mas justamente ao contrário, protegê-la! Mesmo que os sacrifícios sejam repulsivos, são necessários para manter ativa a energia do castelo e evitar que seus inimigos se proliferem. Esta também é a maneira de pensar do cientista, que não se abalou ao ver quanta destruição e morte causou seu projeto, pois sabia que era a única forma de salvar a humanidade.
Não é como se os personagens claramente fizessem apologia a qualquer forma de violência, pois viam seus atos como uma necessidade da qual não se pode fugir. Isso quando não perdiam a cabeça, porque dai qualquer forma de raciocínio fica prejudicada. Contudo, fica claro também, que o gérmen das tribulações sofridas pelo Castelo do Dragão, nasceu justamente da sua ordem estabelecida.
Não fosse o ressentimento de Hiroshi por viver afastado da sociedade, já que deveria ter morrido no nascimento, como todo homem-peixe, nada teria ocorrido. Pode-se culpar até mesmo as dirigentes do Castelo do Dragão, que sabiam da existência incômoda de Hiroshi, e permitiam que ele vivesse. Essa atitude, que alguns podem chamar de “caridosa”, causou muito estrago. Digo caridosa entre aspas, pois no caso de Hiroshi creio que seria muito mais caridoso que tivesse morrido ao nascer.
E o mais curioso é perceber que esta repulsa pelos indivíduos masculinos do povo-peixe surge invariavelmente de uma mera questão de aparências. Por uma mutação, uma primeira pessoa-peixe nasceu com uma forma mais parecida com um humano comum, sem a característica cabeça de peixe. Ninguém menos que a Otohime original. Maltratada pelos seus companheiros de espécie, ela apenas encontra refúgio entre os humanos, por ser quase humana, tirando as orelhas, as quais são guelras.
Uma curiosa abordagem do ponto de vista biológico, visto que o povo-peixe seria uma regressão às origens dos seres humanos, já que todo embrião é um pouco peixe, pois na maiorias das espécies, inclusive a humana. O embrião até certa idade possui cauda e guelras, eliminando progressivamente para dar espaço aos pulmões. Ou seja, é eliminando naturalmente tudo o que não será usado.
Esse “regresso” evolutivo se deu justamente por culpa das interferências climáticas pelos humanos, ocasionando o degelo das calotas polares e a rápida subida dos níveis do mar. Mostrando, novamente, que o ser humano é uma criatura destrutiva, a qual não sabe conviver em harmonia com o seu ambiente.
O conceito de viagem temporal também foi devidamente trabalhado, explorando certas nuances que só acrescem benefícios ao enredo, como a ótima ideia em explicar o mito folclórico japonês da Otohime, por meio de uma viagem temporal! Deixando claro que o Castelo do Dragão veio do Século XXIII. É sempre gratificante ver um enredo de viagem no tempo bem trabalhado.
O final de Ryuuguuden também merece crédito! Foi de certa forma um final triste, embora necessário. Envolvendo a já mencionada viagem temporal, encerrando, provavelmente de uma forma definitiva, a bonita história de amor de Bo com Tama, a princesa de Ryuuguuden. Mostrando que é necessário fazer sacrifício para restabelecer a ordem das coisas.
Fim dos spoilers.
Ryuuguuden se mostrou uma história bastante interessante, dada a progressiva intensificação da densidade do enredo, passando de uma aparente fantasia non sense, para um thriller de ficção científica com direito a viagens no tempo e sabres de luz. É uma obra recomenda para aqueles que gostam de um mangá bastante diferente, com uma premissa bem maluca, que pode assustar um pouco os leitores desavisados.
Contudo, fora a imagem externa de ser uma obra simplesmente maluca, Ryuuguuden se mostra um mangá bastante sério, abordando temas bastante relevantes, principalmente a relação do ser humano com o meio ambiente e consigo mesmo. Tirando isso, a história, partir da metade do primeiro volume consegue engrenar como uma boa história, com direito a cenas de ação bem trabalhadas e bastante emoção.
Espero que tenha gostado, essa análise termina por aqui, até uma próxima.